Cláudio Messias*
Quando adolescente assisti a uma
cena forte na Água da Cruz, bairro rural situado nas proximidades do Tabajara,
entre Assis e Lutécia, aqui no Médio Vale do Paranapanema. Chegava ao sítio de meu tio Miguel Sussel e lá estava
uma vaca sendo executada a marretadas. Iria para a panela, forçadamente. À
força porque havia quebrado uma pata dianteira e, gorda, não acompanharia o
rebanho nos deslocamentos rotineiros e estaria fadada a perder peso, produzir
menos leite e jamais reproduzir.
Era mês de julho, recesso
escolar, e lá para aquele sítio eu ia para curtir o que a zona rural nos dá de
lições de vida. Adorava a conversa com os mais velhos. Ouvir contos, lendas e,
hoje eu sei, mentiras que mais serviam para amedrontar crianças do que
necessariamente para orientá-las. E estávamos em plena estação das secas, período do ano em que o rebanho procurava
os brotos da grama do pasto, pois as folhas, secas, ficavam indigestas. Para
impedir que o gado saísse para a estrada e, assim, acessasse plantações de
milho da propriedade vizinha, fora instalado um mata-burro.
Aos leigos explico de que se
trata um mata-burro. Abre-se um buraco da largura da porteira e com suficiência
para escoar a água da chuva e não formar erosão. Sobre esse buraco é colocada
uma esteira de madeira, cujas vigas têm espaço largo entre si. O som oco e a
falta de visibilidade sobre o que há debaixo dessa estrutura de madeira
intimidam que animais atravessem de um lado a outro. Sei de história de um cão
que passava sob a cerca de arame farpado, no mesmo limite de propriedade, mas
jamais transpunha o mata-burro.
Aquela vaca abatida lá, à minha
frente, havia arriscado aventurar-se além do mata-burro. Seduzida pelo verde
das folhas do milharal ou mesmo pelo aroma das espigas em formação, não olhou
abaixo dos próprios pés, também conhecidos como patas, e quebrou os ossos em
diversas partes. No nada cômico cenário do espetáculo carnívoro uma parte do
mocotó estava perdida. Nas palavras de ‘tio Migué’, “vaca vacilona perde o
mocotó mas rende o filé”. Referia-se, ele, à única circunstância de morte
forçada de um bovino que permite o consumo da carne. Afinal, afora esse tipo de
episódio, até mesmo quando parte de um gado morre em decorrência de queda de raio
enterra-se tudo, sem aproveitar nada.
Eu, adolescente, era afeito a
caçar rolinhas e pombas, especialmente nas férias escolares. Para tanto, usava de estilingue a arapuca. Saía logo
cedo para caçar, não sem antes ouvir de tio Miguel o conselho: “não vá avançar
o mata-burro”. Seguia, portanto, do lado avesso ao que aquela vaca enfiou a
pata dianteira e virou, em partes, carne de panela. Na véspera de voltar para
casa daquelas férias julinas, entusiasmei na caça e não retornei à casa de meus
tios, na sede do sítio, para o almoço. Sem relógio, perdi o tempo no espaço e quando
notei que o sol estava muito, mas muito mais quente, deduzi que havia avançado
no horário. No caminho de volta avistei uma rolinha, preparei o estilingue e
soltei a pedra. Quem já caçou de estilingue sabe bem do mistério que é a pedra,
em vez de passar no meio do “y” da forquilha, acertar uma das hastes laterais
e, claro, estourar no dedo. Quase arranquei a unha do dedão da mão direita e, com
a dor, voltei correndo para a casa de meus tios.
Cheguei e vi que a mesa estava
posta, somente com um prato e um garfo. Sim, só faltava o bonito aqui para
comer. Minha tia Luzia viu meu semblante de dor e em vez de sermão me deu foi
atenção. Quis saber o que havia ocorrido mas eu, com vergonha, escondi a mão,
já lavada e com o sangue seco retirado dos dedos. Lógico que quando eu, destro,
comecei a comer, minha tia viu o machucado, mas preferiu nada falar novamente.
Comi e fui para o quarto, onde, mesmo sujo, cochilei durante o resto de tarde.
No final do dia meu tio e meus primos começaram a chegar da roça. Banho tomado, tinham como missão separar
o gado cujo leite seria retirado no dia seguinte. Tio Miguel chegou, sentou e
perguntou o que havia acontecido com meu dedo. Não, ele não era adivinhão.
Tinha, sim, dialogado com minha tia, que lhe contara sobre o ocorrido no
almoço. E meus olhos esbugalharam quando aquele velhinho, amolando o mesmo
punhal com que tirara o couro da vaca do início desse causo, cobrou: “eu não
disse para você não passar do mata-burro?”. Eu, tremendo, garanti que não havia
passado por aquela estrada, nem por aquele trecho. Tinha, sim, ido caçar em uma mata que, fechada, ficava na propriedade vizinha, distante uns 500 metros
da sede do ‘nosso’ sítio.
O problema estava exatamente
naquilo. O mata-burro era imaginário, ou seja, não era necessariamente aquele
obstáculo artificial que substituía a porteira e, assim, permitia que se
passasse de carro, caminhão ou moto sem necessidade de descer, abrir/fechar e
continuar o trajeto. O mata-burro a que tio Miguel se referia era o bom-senso
de não distanciar-me da zona de conforto, de segurança, propiciada pelo raio em
torno da casa ora sede do sítio. Queria, ele, ir trabalhar com a sensação de
que o hóspede estaria em segurança, sem que eu me transformasse, vacilão, em filé.
Depois de amolar a faca, tio
Miguel pediu para eu dar a mão direita, cujo dedão estava sem a “tampa”, pela
pedrada. Chorando, eu neguei o pedido. Afinal, se a vaca foi sacrificada por
ter quebrado a pata, morreria, eu, por ter ferido o dedo ao distanciar perigosamente da casa? Tio Miguel insistiu
para que eu desse o dedo para ele, colocando sobre a mesa da varanda. Quase aos
berros, neguei novamente. Com semblante sério, ele disse que eu teria sorte,
pois em vez de ter o mesmo destino da vaca, apenas perderia o dedo machucado.
Acalmei um pouco, mas o desespero continuava o mesmo, pois ter o dedo cortado
por um punhal não deve render a melhor dessa sensações.
Tio Miguel, então, abriu um
sorriso e, tirando um fumo de corda do bolso da calça, fez uma mistura com
cânfora, tirou toda a sujeira do machucado e, finalmente, passou pomada Minâncora.
Recomendou que eu jantasse, deitasse, dormisse e, logo, voltasse à caça na
manhã seguinte. Garantiu que eu não deveria temer que outra pedra acertasse o
mesmo local atingido naquela tarde. Deveria, sim, temer a linha do mata-burro,
a partir de onde se tem cascavéis, jaracuçus e outros animais venenosos que,
caso me atingissem igualmente como a pedra do estilingue, impediriam que eu
chegasse a tempo, na casa, para os necessários socorros. Nem para filé eu serviria.
Uma coisa, porém, me intrigou
naquilo tudo. Por que mata-burro, e não mata-vaca, mata-cavalo, mata-bezerro?
Tio Miguel, usando a narrativa peculiarmente popular, caipira, explicou, entre
um trago e outro de cigarro de palha e numa conversa já amistosamente normal, que inteligente é o burro que não avança
no mata-burro, e burro é aquele, racional ou irracional, que avança o
mata-burro. Voltei, pois, para casa, sabendo que tive meu dia, meu momento de
burro. E com direito a troféu, em forma de um dedão sem tampa.
Em Assis vejo, atualmente, uma
linha imaginária que mostra até em que ponto pode-se, com segurança, avançar. A
prefeitura da 28ª melhor cidade brasileira para se viver começou 2013, o ano da
serpente no calendário chinês, com declarada dívida de milhões de reais.
Primeiros meses do mandato do ‘novo’ prefeito e sequer todos os secretários
foram nomeados, sob o argumento de não onerar os cofres públicos. Seria
louvável, caso a adequação ao caos não se estabelecesse. Natural, pois de tanto
doer, uma pedrada no dedo tem o sangue estancado e a dor, assim, nem é a pior
das consequências. Feridas ganham casca, cicatrizam, aos olhos do dono do dedo. O olhar do espetáculo, de outrem, busca somente o sangue, a ferida aberta. Cicatrização e cura não fazem parte do espetáculo.
Tem uma, várias serpentes além da
linha imaginária do mata-burro que delimita o mundo do bom senso e o mundo da
corrupção. Ter boa intenção quando se assume uma prefeitura corresponde,
inversamente, à pedrada no dedo. Administrar uma cidade como Assis e com uma
dívida como a declarada é fazer das tripas, coração; do limite de gasto do
dinheiro público, um mata-burro.
O trocadilho, reconheço, é forte,
mas na metáfora que marcou minha adolescência advirto que inteligente é o gestor
público que não avança o mata-burro. E o que não tem faltado, no passado
recente, são burros públicos, racionais ou irracionais, que têm ultrapassado a
linha imaginária do mata-burro. Esses, todos sabemos, encontraram as serpentes
ou quebraram as pernas, passíveis que são, agora, da execução que, pública, choca, surpreende. Afinal, a ferida está permanentemente aberta e não falta quem queira uma parte do filé.
*Professor universitário,
historiador e jornalista, é mestre em Ciências da Comunicação pela ECA/USP.
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