segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

PANDEMIA - O dia em que confirmei que, sim, tudo voltou ao normal

 Cláudio Messias*

Nesse domingo, 17 de janeiro, fiz meu trajeto de 15 horas de duração para sair de Assis, SP, e chegar a Campina Grande, PB. Cento e 20 quilômetros de carro até o aeroporto de Presidente Prudente, depois uma conexão relâmpago em Campinas, mais 3 horas até Recife, quase 5 horas de espera e, enfim, a aterrissagem na Rainha da Borborema.

Muitos imprevistos marcam viagens assim, que faço desde 2010, quando vim a Campina Grande, como pesquisador da USP, pela primeira vez. No caso específico desse domingo comi uma tapioca com queijo branco e uma fatia de peito de peru defumado no meu café preto de manhã, junto com Rozana. Seria a única refeição até as 16h20, quando o Airbus A330 da Azul desceu em Recife. A conexão em Campinas permitiu apenas que eu saísse do ATR, desembarcasse e, em conexão, imediatamente embarcasse no Airbus.

Ficar todo esse tempo sem comer, tudo bem, não afeta tanto, pois na vida do jornalismo cansei de trocar almoço por café da tarde à base de pão com presento e/ou mozarela. O que ainda não havia experimentado foi a sensação de sufocamento por que passei dentro do Airbus. Eu estava vendo o filme O Segundo Exótico Hotel Marigold e ria, muito, com a comédia que tem atores/atrizes indianos/as maravilhosos/as.

Em um dado momento, contudo, senti o ar rarefeito. A mesma sensação de que tenho reclamado, principalmente nas madrugadas, desde a cirurgia cardíaca de 2015. Notei que estava suando, apesar da climatização, bem feita, da aeronave. A moça sentada e corredor na poltrona ao meu lado estava desmaiada, de tanto que dormia. Acionei o comando de chamada da comissária de bordo. Ela veio, trouxe-me água (único 'alimento' que a ANAC autoriza servir em voos na pandemia), mas deu conta de que na realidade eu pedia socorro.

Batia, ali, a sensação de que eu precisava respirar ar puro e botar a cara na luz natural do dia. Mas, como fazer aquilo, a que sempre recorro quando estou em casa, nas madrugadas, com sufocamento, com a aeronave a sei lá quantos mil metros de altitude? Dialogando comigo a comissária tratou de traçar o diagnóstico de que eu estava em crise de pânico. Lamentou que não poderia sugerir à pilota (sim, a comandante daquele voo era uma mulher) alteração alguma de rota, mesmo tendo outros passageiros reclamando da mesma crise que eu.

Aceitei o copo de água que ela levou, tomei, mas recusei a medicação sugerida. Resisto o quanto posso aos ansiolíticos, tipo de medicação ao qual fui por vezes submetido desde a cirurgia cardíaca, principalmente em 2015, quando tive diagnóstico de Síndrome de BornOut, submetido que estava a situações de assédio moral em meu ambiente de trabalho. E, inclusive, até tinha na mochila, junto com meus medicamentos cotidianos, o frasco de ansiolítico. Optei, apenas, por adotar a estratégia do autocontrole, à base da meditação.

A cada 20 minutos ou meia hora a mesma comissária de voo passava e perguntava se estava tudo bem, ao que eu sinalizava que sim. Entre uma prosa e outra a observação da profissional sobre o índice elevado de passageiros, na pandemia, que apresentam estado semelhante ao meu naquele voo. Teoria dela, o temor decorrente da pandemia faz as pessoas desesperarem quando dão conta de que encontram-se aglomeradas dentro de uma aeronave e, pior, sem opção alguma de mudar o curso da situação.

Dei uma pausa no filme e, quando meditava, desconectei do mundo real por alguns minutos. Um cochilo mesmo. Despertei, terminei de ver o filme e, na sequência, vendo o painel mostrar que estávamos a 1 hora de Recife, decidi ver documentário do National Geographic sobre o duelo "Humanidade x Inteligência Artificial", de 40 minutos. A comédia deu lugar a uma séria reflexão acerca da suficiência que a humanidade terá para gerir as máquinas no ano 1 milhão, quando a vida poderá ser eternizada por androides programados, de maneira que o corpo, sim, morra, mas os dados da vida de cada um, não, podendo, esses, serem recarregados em uma representação engenhosa da pessoa morta, que fica, assim, eternizada.

Bastou o cenário futurista mexer com a cabeça, com o raciocínio e lá veio, de novo, a sensação de pânico. Estava em meu semblante e a comissária, quando passou pelo corredor, parou e afirmou, em vez de perguntar: "o senhor não está bem de novo". Mas, a situação já estava mais administrável e consegui reencontrar o equilíbrio, sem ter a sensação de que precisava levantar e sair do lugar, como ocorrera horas antes.

Quando a aeronave desceu em Recife levamos mais de meia hora para desocupá-la por completo. Eu estava na fileira 33A e, portanto, fui um dos últimos a deixar o Airbus. Aliás, nesse aspecto, as restrições decorrentes da pandemia fazem gerar uma mudança de comportamento que faz da desocupação de aeronaves um problema no mundo todo, e não somente no Brasil. Os/as apressados/as que sequer esperam a aeronave parar por completo e congestionam corredores batendo com bagagem de mão na cabeça de quem está sentado agora têm de esperar. Sentados. Vivi para ver isso acontecer um dia, e nessa viagem de ontem testemunhei a cara de insatisfação dos/as apressados/as por três vezes.

E nessa postagem estou falando diversas vezes dela, a pandemia. Muito bom ver que o comportamento dos passageiros teve de mudar com a pandemia. Mas isso, dentro das aeronaves. Porque fora delas a cultura do desrespeito, da parte de passageiros e da parte de quem faz a gestão de aeroportos, continua idêntica. Máscaras que só cobrem o queixo são vistas aos montes dentro dos aeroportos. E as salas de espera, apesar de terem assentos marcados para que se respeite o distanciamento social, são repletas de pessoas sentadas em todos os lugares, permitidos ou não.

A pior de todas as cenas eu assisti no aeroporto de Recife. Como disse, cheguei pouco depois das 16 horas e sairia para Campina Grande às 22h00. Sempre, nessas ocasiões, antes da pandemia, eu aguardava na sala de embarque, onde há opções de alimentação. caras, mas estão lá, fazendo evitar que se saia do embarque e, depois, tenha-se de fazer todo o procedimento de revista, necessário, de embarque.

Assustei quando vi aquela multidão, no final da tarde de domingo, ou nas filas de embarque em frente aos respectivos portões, ou sentados. Outras filas ainda eram formadas nos quiosques de alimentação. Tive, ali, não uma crise de pânico, mas uma revolta imensa. Pessoas de todos os estados e de outros países aglomeradas, usando porcamente as máscaras, enfim, em um ecossistema perfeito para o contágio por Coronavírus. 

Não titubeei e saí, pelo portão de despacho de bagagens. Minha esperança era que a praça de alimentação do piso 3 estivesse menos congestionada, pois recebe passageiros que estão chegando para embarcar e têm pouco tempo para comer. Sentei, comi um filé de frango à bolonhesa, tomei  mais de um copo de 500 ml de chope, dialoguei com a família e alguns amigos, enfim, relaxei. 

Perto das 21 horas fiz novamente o embarque e deparei com um saguão menos cheio. Nas poltronas de espera conheci padre Pedro, um jovem com menos de 40 anos de idade pároco no centro histórico de São Luiz, capital do Maranhão. Como lá estive em 2019, em São Luiz, proseamos sobre a maravilha que é o centro histórico da capital maranhense, com sua história de relação com os negros e lamentamos as cenas que, apesar do número reduzido de passageiros, se repetiam: brasileiros e estrangeiros indo pra lá e pra cá com as máscaras no queixo, como se nada estivesse acontecendo no Brasil e no mundo.

Eu e padre Pedro, então, tivemos consenso na conclusão de que, sim, tudo voltou ao normal. Eu citei a comprovação disso quando comentei a cena que vi, em Viracopos, na manobra do ATR que levou-me de Presidente Prudente. Já no ônibus da concessionária do aeroporto visualizei, algumas dezenas de metros adiante, a aeronave da Azul adesivada para buscar milhões de doses e insumos de vacina na Índia mas que, na realidade, estava ali transportando cilindros de oxigênio para Manaus. A foto está anexada a essa postagem.

A aeronave adesivada para buscar vacinas que não vieram


Para a nossa tristeza, a vida voltou ao normal e comprovamos isso quando vemos aeronave adesivada e locada com dinheiro público sem nunca ter deixado o solo para buscar vacina alguma, dentro de uma estratégia de fazer pioneirismo de saúde pública em um momento em que mil pessoas morrem por dia, desde março passado.

Naquela tarde de domingo, enquanto um genocida fazia estratégia de guerra que mais lembra o filme dos anos 1980 Top Secret - Super Confidencial para distribuir vacinas pelo país, do outro lado um não menos genocida ignorava comandar o estado da Nação onde mais pessoas são contaminadas e/ou morrem por Covid-19 e vibrava, com semblante de dar medo, ter vacinado a primeira brasileira contra a doença.

Fiz as contas aqui e com os números do tal consórcio de imprensa as 207 mil mortes contabilizadas no Brasil até o final de semana passado permitem concluir que perdemos vidas que correspondem à queda, sem sobreviventes, de 470,45 aeronaves Airbus A330 Neo, cuja capacidade é para 440 pessoas, entre passageiros e tripulação.

Com um ano da pandemia no país prestes a ser completado, é como se 1,2 aeronaves Airbus A330 caíssem a cada dia no Brasil nesses últimos 365 nefastos dias da nossa história contemporânea. E ainda temos que ligar a TV ou acessar as plataformas digitais e deparar com um governador de estado e um presidente da República fazendo das semelhanças pessoais (me recuso a definir a intriga como diferenças) algo maior do que as vidas perdidas e, pior, as que estão por vir.

De ontem para hoje, pelas estatísticas oficiais, enquanto Dória e Bolsonaro faziam seu teatrinho de horror, dois Aribus A330 caíram, imageticamente, sem sobrevivente algum. Eles, governantes, acostumaram com o cheiro da morte. E nós, vítimas, nos acostumamos com isso tudo, pois, como disse, não é que tudo voltou ao normal; nada saiu do normal nessa pandemia toda. A crise da saúde é que está mostrando quem são cada uma das pessoas que foram escolhidas para estarem onde estão, nos cargos que ocupam.

* Professor universitário, historiador, é doutor em Ciências da Comunicação pela ECA/USP.

REDES SOCIAIS - Falando Cons(m)igo mesmo

 Cláudio Messias*

FALANDO CONS(M)IGO - Em uma década e meia usando essa plataforma já construí amizades, destruí amizades e preteri "amizades". Construí amigos/as no meu amplo ecossistema de vivências cotidianas, destruí relações com amigos/as pelo fanatismo futebolístico e preteri pessoas a quem havia estendido a mão da amizade ,as recebi em troca traição, falsidade, apunhaladas pelas costas. Algumas dessas pessoas eu excluí, dada a impossibilidade de tê-las ali naquele link de "amigos", por sua incompatibilidade com a descrição que a plataforma dá, outros/as aqui estão, na tênue linha que separa colega de amigo/a.
Quem me conhece o suficiente para ter-me como amigo sabe de minha sinceridade, perfil de minha personalidade que constrói, sim, relações, mas, quando destrói... E dessa característica que por uma ótica pode ser virtude mas por outra pode ser defeito tem saído um comportamento, nos últimos anos, de distanciamento das redes sociais. Um certo cansaço de ver o quão as pessoas necessitam, muito antes da pandemia, mostrar a outrem coisas legais de seu cotidiano, como uma nova oportunidade de emprego ou mesmo o início de uma relação amorosa, mas coisas fúteis e profundamente desnecessárias como um prato, intacto, preparado a partir de uma receita vista na internet. Sei de casos em que primeiro veio a foto e depois o primeiro beijo de uma relação e, daí já é um saber coletivo, de inúmeros casos em que primeiro veio a foto e depois o provar/degustar do primeiro pedaço de um bolo. O/a novo/a companheiro/a pode ser, no delongar da vida, uma péssima escolha, mas aquela primeira foto já mostra um amor em chamas, prenunciando um "que dure para sempre". Igualmente, o bolo pode ter ficado massudo, carregado no açúcar, uma verdadeira porcaria, mas a foto, linda, deu água na boca das inúmeras pessoas que comentaram: "quero aprender fazer quando for aí", "pena que ainda não conseguimos sentir cheiro e sabor pela internet" ou "ficou mais bonito do que o que a minha avó faz".
A canseira gerada de expressões, via redes sociais, relacionada ao cotidiano nos faz distanciar de pessoas que quando adicionamos ou fomos fomos por elas adicionadas a grupos de "amigos" proporcionaram aquela sensação de desterritorialização das relações interpessoais que as mídias sociais proporcionaram. Pessoalmente, depois de anos de vivência, você nunca brigou ou discutiu, ou, se assim o fez, nunca rompeu amizade com essas pessoas. E a presença delas no cotidiano, por mais não frequente que fosse, transmitia a paz que as amizades verdadeiras propiciam. Mas, no polarizado mundo contemporâneo que destruiu amizades pela política e, agora, respinga com igual ácido nas acepções individuais sobre os caminhos que levarão ao controle gradativo do Coronavírus, você abre as redes sociais e lá estão as posições. Inevitável, nesse ínterim, não pensar consigo mesmo: como pode fulano/a ter um posicionamento desse?
Nas recentes festas de fim de ano, dentro de um controle de circulação de familiares que rigidamente gerenciamos (8 pessoas por encontro, sob todos os protocolos de higienização) reencontrei parte dessas pessoas a quem chamamos de amigos/as por serem da família e advirem de longa relação, direta ou indireta com nossos patriarcas e matriarcas. E o que vi, em um ou outro caso, felizmente, com essa baixa proporção, foram manifestações que seguem a onda que tanto combatemos e que tanto predomina nas redes sociais. Nem me refiro a fake news, pois esse conceito, poroso, já desfragmentou-se e a nossa ciência da comunicação precisa avançar no virar dessa página precipitada de atribui à audiência a produção de conteúdos falsos que a hegemônica mídia
protagoniza desde Gutenberg. Minha acepção, aqui, condiz a essa cultura factoide de advém da capacidade humana de, na comunicação, como disse Maria Aparecida Baccega, editar-se a visão de mundo. As pessoas estão editando a própria realidade a partir do que "ouvem" de seus igualmente reduzidos grupos de amizades em redes sociais. E quando enunciam algo, fazem transportando pontos de vista. Não têm aquela opinião porque a célere velocidade de fluxo de informações que superlota dispositivos de armazenamento, que precisam ser limpos em tempo cada vez mais curto, não permite parar para pensar, para refletir.
Isso me faz recordar uma cobertura de jogo que fiz em 1996, quando o Palmeiras venceu o Corinthians pelo Campeonato Brasileiro em Presidente Prudente. Eu lá estava como repórter do hoje extinto Oeste Notícias, impresso. Mirandinha, centroa-avante do Corinthians, saiu em disparada do meio de campo e foi em direção a Veloso, goleiro do Palmeiras, a quem driblou com u corte lateral para a esquerda. Um jogador, cujo nome não recordo, estava sozinho em frente ao gol e Mirandinha, na lateral, só precisaria passar-lhe a bola. Mas, não. O atacante continuou correndo, saiu com bola e tudo pela linha de fundo e a derrota de seu time por 1x0 estava consolidada. Na coletiva, perguntado pelos repórteres de rádio, sobre o porquê de não ter passado a bola ao companheiro, o atacante do Corinthians responde: "eu só consigo fazer uma coisa; ou eu corro ou eu penso".
Mirandinha nunca foi meu ídolo no Corinthians, dada a fartura de nomes que passaram pelo clube, inclusive em sua posição (citar Ronaldo Fenômeno, reconheço, seria covardia de minha parte). Mesmo assim, o respeito sobremaneira pela forma espontânea e sincera com que definiu aquele que é o comportamento de massa: faz-se sem pensar, e é melhor fazer do que correr o risco de, ao refletir, tomar as decisões dentro de uma razoabilidade.
Estou, pois, aqui, a falar comigo mesmo. Desde minha infância falo sozinho. E aperfeiçoei isso quando transitando do mestrado para o doutorado na ECA/USP, descobri pelo amigo Alan a meditação como recurso de gestão do meu eu. Dialogar com você mesmo é uma delícia, principalmente quando uma parte de você não concorda com a outra parte. Sim, nossa mente também fica contagiada pela polarização, mas é dessa interação díspar que sai a racionalidade das nossas ações.
Volta e meia, logo, estarei aqui de volta com uma postagem ou outra, já que desde ontem estou de volta a Campina Grande, preparando para repassar a coordenação de meu curso a outro/a colega, em fevereiro, e debruçar-me mais e melhor nas minhas pesquisas e meus pupilos de orientação científica. Cada linha escrita aqui é para mim, dentro do meu falar comigo mesmo, sem a mínima intenção de agradar ou desagradar outrem. Minha máxima continua sendo a mesma: o Facebook pode adestrar seus usuários para o que deva ser consumido, mas a opção de ler ou não postagens como a minha está dentro da autonomia do livre arbítrio de cada um.
Se eu não leio nem visualizo o que a ampla maioria posta aqui, por que me sentirei ou me sentiria afetado ou triste se ninguém ler, curtir ou comentar o que exponho? Como ocorreu em 2018, após o segundo turno das eleições, quando solicitei que "amigos" daqui me excluíssem das listas por não estar alinhado ao que as urnas escolheram, de novo, me excluam de seus perfis. Não há como saber quem assim procedeu e, mesmo que houvesse, com certeza, eu jamais iria atrás para saber disso. Nas eleições presidenciais de 2018 tive mais de 600 baixas, entre pessoas que me excluíram e pessoas a quem excluí.
Esse número pode baixar para 200 ou 20 ou 2. Minha preocupação com isso é tamanha que nesse exato momento não sei nem quantos "amigos" tenho aqui.

Se ficarem 200, 20 ou 2, o que importa é que haja amigos. Os/as amigos/as que tenho, e eles/as sabem muito bem disso, eu prezo, cuido, com a mesma delicadeza com que todas as manhãs coloco água nas plantas, água ração para os passarinhos livres na jabuticabeira de casa. Amigos/as legítimos são como as gatas que temos; quando estão perto de nós, ronronam com a nossa presença, pois, sabem, a acolhida é certa.

* Professor universitário, é doutor em Ciências da Comunicação pela ECA/USP.

Missa de Sétimo Dia seo José Messias - Martinópolis/SP

sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

LUTO - O que aprendi com a morte

 Cláudio Messias*

Seo Messias conosco, sentado debaixo da jabuticabeira que plantou nos anos 1980.


A partir de ontem, 7 de janeiro de 2021, mudei minha postura no lidar com pessoas que estiverem vivenciando a morte de alguém. Palavras que enunciadas docemente, com a melhor das intenções, como "ele/a passou dessa para o melhor", "agora ele/a descansou" ou "do jeito que ele/a estava, agora tem o merecido repouso", não confortam. E digo isso por experiência própria, passada nesse 6 para 7 de janeiro.

Não há palavra que console a perda de uma pessoa, seja qual for a circunstância. Quem encontra-se diretamente no luto aceita, abraça, chora, lamenta, mas, de maneira alguma aceita a morte ou os enunciados que tentam amenizá-la. E por mais que estejamos nos sentindo preparados para a passagem da pessoa querida, não, definitivamente, não estamos. Talvez não haja alguém que consiga administrar essa sensação dolorida de ver uma pessoa querida partir, por mais que estivesse doente ou em estado irreversível conhecido por todos. A morte provoca uma dor, uma angústia, uma vontade incontrolável de reverter aquilo que é dito como a maior de todas as certezas humanas.

Ontem, às 13h25, sepultamos meu pai, José Messias, em Martinópolis/SP. Desde 2010, quando foi submetido ao mesmo procedimento cirúrgico pelo qual eu passaria em 2015, qual seja, correção de isquemia miocárdica grave, com implantação de safenas e ligação de mamária, nosso velhinho percorreu um trajeto doloroso, cruel, provocado por uma doença manifestada pós-operação: a miastenia gravis pseudoparalítica. Perdi as contas, e isso nem tem importância alguma, sobre as viagens feitas de Assis a Martinópolis e a Presidente Prudente nesses mais de 10 anos.

A pior fase, e se é que houve fase que tenha sido mais amena, ocorreu entre 2015 e 2016, quando a desestabilização provocada pela miastenia o levou inúmeras vezes à UTI e, no ápice da crise, a uma trombose de carótidas, sendo necessário um implante de prótese. Assim como das outras vezes, as fatídicas estatísticas das ciências da saúde erraram. Apesar de o implante da prótese ter sido bem-sucedido, no procedimento faltou sangue na parte esquerda do cérebro e pior do que perder os movimentos do lado direito, seo Messias viu comprometido seu bem maior: a fala.

Momentos difíceis, e já lidando com a morte, que rodeava cada vez mais e se mostrava próxima. Eu encontrava-me no período pós-qualificação do doutorado e entre uma página e outra da escrita estava diariamente no Hospital Regional de Presidente Prudente, junto com minha madrasta/mãe Gê e minha irmã Danielle, na época estudante de Odontologia, ou seja, uma mocinha que igualmente tinha de lidar com a formação e a esperança para que o pai não partisse.

Chegou um momento em que tínhamos de brigar com a morte, mas, também, com pessoas que prenunciavam a morte de seo Messias. Aroeira, o velhinho mostrava comunicação somente com os olhos azuis maravilhosos, nos dizendo "eu vou viver". Aquela era a verdade mais absoluta que existia pra mim, apesar de os médicos fatalizarem, diariamente, que não havia mais o que fazer. Meu pai era pele e osso, não falava, tinha uma sonda que o alimentava pelas vias nasais, estava todo roxo de tantas aplicações feitas, mas não cedia. Nos olhava, apertava aos mãos como quem diz "não desistam de mim". E não desistimos.

Por duas vezes a equipe médica pediu para chamar familiares, para a despedida. Nos encontrávamos na entrada do HR, todos/as, coma sensação de que a morte, sim, estava por ali, esperando. Na derradeira das vezes, o pároco foi chamado para o ritual cristão de bênção para a despedida eterna. Só que não. Seo Messias enquadrou-se na estatística de "menos de 5% de chance de sobrevivência". Recebeu alta no dia 16 de outubro de 2016, com a mesma sonda de alimentação via nasal. Se resumia a pele e osso, mas por dentro tinha uma força de vida que o fazia apertar nossas mãos.

No caminho de Prudente a Martinópolis eu dirigia e tinha meu pai ao lado. Dani e Gê estava atrás e tinham de segurar a cabeça dele, que estava deitado no banco, porque o velhinho sequer conseguia controlar o pescoço. Eu via aquela cena e me perguntava se a morte não estaria também ali no carro, só esperando.

Fizemos do quarto de Dani um quarto de hospital. Colocamos cama hospitalar e os aparelhos necessários. Profissionais de saúde diariamente dar o amparo, pois a alimentação era feita por sonda. Uma fonoaudióloga o acompanhava, exercitando para que reaprendesse a falar, depois da paralisia parcial. Uma fisioterapeuta o orientou a reaprender a andar. E como bom aluno da vida, seo Messias enganou a morte, de novo. Nunca mais voltou a falar com a nitidez de antes, mas fazia o suficiente para ser compreendido. Deixou a sonda e passou a alimentar-se normalmente, primeiro auxiliado e, depois, autônomo. E, claro, voltou a andar para pequenas caminhadas dentro do quintal da casa.

Não nos comunicamos com a morte, mas ela, quando manifesta-se, nos ensina a evitá-la. É mais ou  menos como você caminhar à beira de um precipício: se cair, morre, e o jeito é medir melhor os passos para que a probabilidade de ir parar no fundo seja, se não anulada, ao menos reduzida.

Com a cirurgia cardíaca de meu pai, em 2010, passei a monitorar minha saúde, anualmente, com cardiologista. Até passar por dois enfartos, em 2014, em Campina Grande e Recife, e em fevereiro de 2015 ser submetido à cirurgia cardíaca. Não desesperei. Pelo contrário, administrei família e amigos, assustados com a costumeira estatística da morte das ciências da saúde. Assim como meu pai, dada a gravidade do meu caso, carrego a cicatriz no peito por ter 4 ligações safenas e uma mamária. 

Há, pois, uma estratégia para fugir da morte, mesmo quando ela está ali, ao lado, ganhando força nas palavras de pessoas acostumadas com vítimas que por conveniência estacionam na condição de vítimas, sem forças para afrontar a maior das certezas humanas de encerramento de ciclos. E a estratégia, não tem jeito, é querer viver e, sabendo que isso não depende só de suas forças, deixar isso claro a quem tem a sua tutela. Necessário, pois, que esses tutores de sua resistência sejam tão fortes quanto você.

Com meu pai eu aprendi a recorrer a uma força interior que desconhecia. Discuti com médicos, briguei com diretores de hospital e cheguei a fazer boletim de ocorrência quando quiseram dar alta para que meu pai saísse direto da UTI para casa, para "despedir-se da família em casa". Liguei 190, pedi viatura da polícia em outra situação similar. Noutras vezes, acionei amigos e mesmo nosso advogado em família em Assis, por não aceitar que transferissem meu pai do cuidado das ciências da saúde para a tutela da morte.

De tanto lidar conosco, a morte talvez também tenha aprendido algo, já que as relações de ensino e aprendizagem são permeadas pela troca, pelas experiências, de maneira que quem ensina, quando o faz, aprende e apreende com o/a interlocutor/a.

Seo Messias, percebemos, mostrou-se um tanto abatido no Natal de 2020. Em 'live' familiar, já que a pandemia nos cerceou da passagem da ceia natalina com o patriarca, seu semblante era um tanto abatido. Pensei que pudesse ser pela distância de todos/as por conta da Covid-19. No Ano Novo, a primeira recaída de saúde, com dores abdominais. Dias depois, uma ida à Santa Casa e a constatação de líquido no abdômen e a possibilidade de uma diverticulite ou questões do aparelho urinário.

Acionado, agendei atendimento com dr. Ravísio, urologista que nos atende desde 2016 em Prudente e responsável por meu pai ter saído com vida do HR. Seo Messias seria atendido no estacionamento da clínica, para não expô-lo à Covid, já que Prudente é a única região de São Paulo em fase vermelha de isolamento. Às 13h40 do dia 6 de janeiro, anteontem, meu pai desfaleceu em meus braços quanto tentávamos colocá-lo no carro e levá-lo a Prudente.

Minutos antes, quando cheguei à casa deles, deparei com nosso velhinho com um semblante que ainda não havia testemunhado nele. Os olhos azuis estavam baixos, o rosto, pálido. Pegou em minhas mãos e quando Gê perguntou "quem é ele?", não soube responder, o que era considerado normal, pois entre as sequelas da cirurgia de setembro de 2016, nas carótidas, estavam apagões momentâneos de memória, ora reconhecendo ora não reconhecendo as pessoas, mesmo as mais próximas.

Pegou em minhas mãos e, como sempre, mesmo não me reconhecendo, as alisou com as dele, em manifestação de carinho. Mal erguia os braços. Em um momento fixou os olhos em mim e assim ficou, ouvindo o que eu dizia: "tudo vai ficar bem, fique tranquilo". Dessa vez, contudo, seo Messias parecia não acreditar. Gê o chamou para sentar no sofá, erguermos suas calças de agasalho e irmos para o carro, mas ele não reagia. Em frações de segundos só passava pela minha cabeça uma estratégia para, sim, continuar driblando o fim, a que administrava havia anos.

A distância entre o sofá e o carro parecia quilométrica e eu já me dava conta de que não, não iríamos para Prudente. O correto era ir para a Santa Casa de Martinópolis. No entanto, quase com as pernas arrastadas por nós, seo Messias desmoronou. Começou a babar, não respondia nem respirava. O segurei nos braços e com auxílio de Gê o deitamos no sofá. Os olhos estavam paralisados, a dentadura ficou atravessada na boca, os braços renderam. Gê quase desmaiou e tive que intercalar socorrê-la e intervir no velhinho. Os olhos fecharam, mas, de repente, reabriram. De pálido ele retomou a pele corada, aos poucos movimentou as mãos, suficiente para acariciar minha mão e uma das cachorras de estimação.

Acionamos o Resgate, que chegou rápido. Na avaliação preliminar um dos três bombeiros chamou-me do lado e comunicou que os sinais vitais do velhinho estavam fracos demais. O imobilizaram e no transporte recomendaram que Gê fosse comigo de carro, e não na viatura. Meia quadra depois da saída a viatura parou por quase um minuto, e depois seguiu. Na chegada à Santa Casa, quando da abertura da ficha de paciente, o bombeiro chamou-me novamente, comunicou a necessidade de intervenção no meio do caminho. Seo Messias, quando adentrou de maca na emergência, encontrava-se com olhos fechados, imóvel.

Quarenta minutos depois, a jovem médica que o atendeu chamou a mim e Gê pela segunda vez. Na primeira, havia informado que a pressão arterial estava um pouco baixa mas que o preocupante eram os batimentos cardíacos, abaixo de 90. Como sou muito de comunicação visual entendi um semblante de preocupação por trás de todo um discurso que pedia tranquilidade a nós. No segundo diálogo, a confirmação de que a estratégia de driblar o fim havia cessado. Todas as tentativas foram feitas, disse a médica. Quando perguntamos o que aquilo queria dizer, a confirmação: "seo Messias não resistiu e faleceu".

Nesses momentos difíceis não sei de onde tiro forças para manter o equilíbrio, e dessa vez não fugi à minha própria regra. Gê desmoronou novamente e a própria médica emocionou-se. Dei a notícia usando o carregador de celular da médica, na sala dela. Um a um dos grupos de família de Whatsapp e meu irmão e minhas duas irmãs. Segurei firme, talvez ainda não entendendo a dimensão de que a aroeira havia cedido.

Nos permitiram fazer uma despedida imediatamente após a morte. O coração de meu pai parou de bater às 15h06. Às 15h30, depois de ir buscar Danielle no consultório odontológico onde atende, entramos os três na sala de enfermagem. O corpo estava coberto por lençol, estático. Debaixo, um rosto de quem repousava. Apenas a dentadura, de novo, ficara com uma parte para fora.

Inevitável pedirmos para ele acordar, abrir os olhos como sempre fez. Mas, não. Não tinha semblante de sofrimento, nem de tristeza. Parecia o mesmo seo Messias de sempre, quando dormia, com a boca em semblante de pessoa feliz que ele sempre foi.

Dialogando com a médica e as enfermeiras que tentaram mantê-lo vivo, a informação: morte por parada cardiorrespiratória. Ouvindo a minha narrativa desde o ocorrido na casa dele, a confirmação: o excesso de líquido no abdômen, associado inicialmente a uma diverticulite, na realidade devia-se a uma falência dos órgãos. O coração, enfraquecido, já não tinha mais condições de abastecer aos órgãos vitais, nem alimentar o sistema que oxigena o cérebro.

Todos, a partir de então, aprendemos com a morte. E a morte, não tenho dúvidas, aprendeu conosco através de seo Messias. Ela tentou levá-lo da forma como leva as demais pessoas que não a encaram. Mas meu pai a encarou por mais de 10 anos, e foi aroeira, como ele próprio definia, descartando ser eucalipto.

De tanto perder para meu pai e considerando a inevitável passagem humana final, a morte, como certificou a médica da Santa Casa, proporcionou uma partida sem dores. Seo Messias partiu dentro de um sono profundo e eterno, despedindo-se de nós sem que sequer pudéssemos nos preocupar. Sim, ele nos surpreendeu quando morreu, pois em ocasiões anteriores, muito piores, ele superou.

Nosso José Messias completaria 80 anos de idade no dia 15 de maio de 2021. Estávamos programando uma festa em família para ele, dentro das condições permitidas na pandemia, mas quando se tocava no assunto ele dizia que, primeiro, tinha a festa de aniversário do Cláudio, em fevereiro, recordando que em 2020 comemoramos meus 50 anos em uma chácara alugada de meu amigo Fernando, em Assis, ocasião em que ele, Gê, Dani, Gabriel e o pequeno Enrico aqui estiveram, última ocasião, antes da pandemia, em que parte da família esteve reunida com o velhinho.

Com toda essa experiência, ao longo de 10 anos de luta pela vida, aprendi muitas coisas importantes para fazer prevalecer a vida, mas, igualmente, coisas importantes para administrar melhor a morte. Por exemplo, desconhecia trâmites relacionados velório, sepultamento e documentação para liberação de corpo. Sempre que vamos a velórios vemos a estrutura pronta e, assim, teorizamos o que seja essa vivência. Até nisso a morte nos afeta, pois precisamos deixar a dor da perda de lado e encarar a burocracia da vida civil.

Estamos, sim, todos/as de passagem nessa vida. Se me perguntarem o que seja a vida não tenho dúvidas na resposta: viver é ter boa relação com a morte. Bobagem extrema discutir o início e o fim, ou seja, de onde viemos e para onde vamos após a morte. O simples fato de sabermos que não seremos eternos nos faz colocar a morte como companheira desde o início da vida.

Quando fiz minha cirurgia cardíaca em 2015 tive uma recaída 90 dias depois, já estando em Campina Grande, de volta ao trabalho. No Hospital João XXIII ouvi de um cardiologista algo que é duro, dói nos ouvidos, mas, quando aprendemos a lidar na relação com a morte, entendemos como sabedoria das ciências da saúde: quando nascemos, temos nosso prazo de validade pré-determinado pela nossa natureza humana. A medicina, pois, intervém para que essa regra natural seja quebrada.

O que o médico quis dizer é que eu, aos 45 anos de idade, deveria estar morto. A cardiologia, contudo, fez uma intervenção que me deu uma sobrevida. A lei da natureza estava, assim, contrariada. Se o coração estava consertado, os demais instrumentos da orquestras continuavam desgastados. Não era, pois, para eu ter muita esperança com planos que ultrapassassem os próximos 15 ou 20 anos.

Já se passaram 6 anos, ou 1/4 dessa previsão fatalista. Mal sabe a medicina que aprendi com meu pai a negociar com a morte. Uma interação familiar em que traçamos nossas estratégias para chegar ao limite da possibilidade de existência. Ela, morte, vai entender. E que permita a todos que a encaram uma partida tão serena como foi a de seo Messias, o meu guerreiro de maior respeito.


* Professor universitário, historiador, doutor em Ciências da Comunicação pela ECA/USP.