sexta-feira, 27 de agosto de 2021

POLARIZAÇÃO - A mania que se tem de definir outrem

 Cláudio Messias*



Dia desses vi a reprodução de uma foto de muro (sim, muro desses que findam uma parte das calçadas) que trazia os dizeres, em grafite: "você achar não quer dizer que eu seja". Parece uma dessas bobagens que postam-se diariamente, principalmente nos inícios das manhãs, nas redes sociais. E pode mesmo ser, pois a vi no Twitter.

Esse enunciado, contudo, representa, e bem, o quão as pessoas têm, nos últimos anos, tentado interferir na identidade de outras pessoas. Pior ainda é quando algumas pessoas tentam interferir na identidade de quem sequer são amigas ou com quem têm afinidade.

Desde 2019, quando o Brasil iniciou seu pior período histórico de exercício do estado democrático de direito, fruto das eleições gerais do ano anterior, tenho evitado o uso das redes sociais. Sim, já fui um chato confesso do Facebook, especialmente no tocante a futebol. E numa eleição caracterizada pela polarização das linhas de frente, claro, minha chatice aguçou.

Na semana seguinte ao segundo turno das eleições de 2018 fiz uma limpa em meu Facebook. Perfis com bandeirinha do Brasil, tchau. Observava o status "amigos" e só via o marcador baixar. E quando eu deletava alguns perfis, confesso, me perguntava sobre o porquê de aquela pessoa estar ali na condição de minha "amiga", se não o era. Poderia, sim, ser um/a conhecido/a. Mas, amigo/a é outra esfera, outro clima, outro pega.

Sempre que levo puxões de orelha, os recebo de amigos/as. São eles/as, os/as amigos/as, que nos puxam e dizem: "desça daí". E quantas vezes, nas situações em que evitamos passar por carões ou tragédias, olhamos para trás e vemos que nosso trajeto foi alterado a partir de uma conversa ou de um conselho de um/a amigo/a!

Na vida nunca fui de muitos/as amigos/as. Construí as tais amizades sólidas por onde passei, mas não com a frequência e o quantitativo que possa dizer, hoje, que sou uma pessoa rodeada por amigos. E é interessante ver o quanto o tempo é quem nos sinaliza quem sejam os/as amigos. Passe o tempo que passar, o/a seu/ua amigo/a, no reencontro, mostrará que é e sempre foi... seu/sua amigo/a.

Dos tempos de escola no Clybas, onde estudei até o segundo colegial (ensino médio) e no Henrique Zolner, onde concluí o ensino médio em curso supletivo, aos tempos do futebol no Buracanã, nome que demos a um campo de futebol que existe até hoje ao lado do prédio de Letras da Unesp, as amizades persistem.

Igualmente, boas amizades advêm da iniciação profissional, desde os tempos em que entregava medicamentos para a farmácia do seo Daniel, na rua João Pessoa, e era cobrador dos escritórios ServTec, em frente ao antigo Cine Pedutti, e Alevato, que ficava em prédio em frente às atuais instalações da Receita Federal, na Ângelo Bertoncini.

Na imprensa, o que dizer das amizades construídas nas mais de duas décadas de redações da vida, começando pela dupla função sonoplasta/redator na Cultura AM/FM, em 1985, e chegando até a mesma emissora, em 2006, ano de minha última passagem formal pelo jornalismo, antes de iniciar minha trajetória acadêmica de sala de aula!

Reconheço não ser dos seres mais empáticos. Me satisfaço, nesse sentido, com a empatia que é a marca registrada da mulher da minha vida, Rozana, cujo sorriso é a marca de sua identidade. Eu, de poucos sorrisos, sempre fui dos mais reservados, menos faladores e, por conseguinte, mais discreto e, inevitável, observador.

Até hoje, docente em universidade pública, mantenho relações interpessoais de vivência mais próxima com o mesmo perfil que tinha nos tempos de redações da vida. Talvez influenciado pela exploração que sofria nos escritórios de contabilidade, onde tinha de fazer faxina todos os sábados pela manhã e nos banheiros, diariamente, sempre olhei com mais atenção para os/as profissionais dos serviços gerais.

Sempre que reencontro essas pessoas com as quais dividi confidências sobre minha conturbada vida familiar de solteiro (pais divorciados, etc) o abraço é tão ou mais caloroso do que aqueles afagos dos tempos de outrora. A isso eu denomino amizade verdadeira, que sobrevive ao tempo.

Em contrapartida, pessoas com as quais trabalhei e que na minha condição de mais calado e ainda mais observador eram faladoras, badaladas e meramente colegas de trabalho, por vezes reencontro e deparo com duas possibilidades: ou não me reconhecem ou reconhecem e fingem não reconhecer. Quantas foram as vezes, nesses últimos anos, em que um/a ou outra/a por mim passou e apesar do meu esboço de cumprimento, simplesmente não retribuiu! Falta não fez, falta não faltará, mas, confesso, macho isso muito estranho.

Muito dessas reações em reencontros tem a ver com a tal da polarização das vivências passadas. E no jornalismo isso fica ainda mais cristalizado. Você ser neutro, sem declarar seu posicionamento para direita ou para esquerda, já o coloca na posição de suspeição. Logo, a direita o vê como esquerdista disfarçado e, pior, a esquerda o vê como direita declarado, pois em cima do muro é ser, no mínimo, tucano.

Naqueles 21 anos de redações da vida fiz amizades com algumas figuras que, do meu respeito, muito me orientaram. Cito apenas dois, entre tantos: Bentinho, locutor da Cultura AM, e José Santilli Sobrinho, ex-prefeito.

Bentinho abria a programação da Cultura AM às 6 horas da manhã, enquanto eu fazia a sonoplastia da Cultura 2 FM, também às 6h00, reproduzindo gravação de Chico de Assis, o poeta. Chegávamos juntos e muitas vezes, quando dona Linda, a serviços gerais, dava uma atrasada, era eu quem abria a porta do prédio que então ficava na Capitão Francisco Rodrigues Garcia.

Via de regra, quando eu era quem abria a porta, a rádio era colocada no ar pelo menos 5 minutos depois das 6h00. Esses cinco minutos eram o tempo que Bentinho levava para subir todas as escadas do prédio, até chegar ao segundo andar. Nunca o deixei para trás. Subíamos juntos.

Às 8 horas da manhã, todos os dias úteis da semana, Bentinho descia até a redação, no primeiro andar, comigo. Eu começava o dia sonoplasta do FM e depois ]passava manhã e tarde na redação. Era redator dos informativos do AM e do FM e editor do Cultura Notícias, que ia ao ar de meio-dia a 12h50, no AM, com locução de Luiz Luz.

Bentinho sentava em uma cadeira reservada a visitantes/entrevistados e se apropriava dos jornais impressos. Lia página por página do Notícias Populares e dos diários Voz da Terra e Gazeta de Assis. Da Folha de São Paulo lia o primeiro caderno e Cotidiano, que tinha esportes. Do Estadão, o caderno Cultura.

Muitas foram as vezes que acompanhei Bentinho pela região. Foi com ele que conheci, presencialmente, Tião Carreiro, em 1986. Fomos, numa noite, a um rancho no Porto Almeida. Não tenho condições, hoje, de recordar qual rancho era, muito menos os proprietários. Parece-me que eram da família Quintino, com quem o locutor tinha próxima amizade. Mas, não tenho certeza.

É fato que Bentinho era uma referência nacional na música sertaneja. Muitos cantores e duplas lançavam seus discos colocando na rota de divulgação a rádio Cultura de Assis. E foram muitas as vezes em que vi Bentinho marcando na contracapa dos LPs as músicas que, indicava, fariam sucesso. Nós as ouvíamos na discoteca com Magui, o discotecário, e não muitas semanas depois as gravadoras confirmavam o prenúncio de Bentinho, enviando discos promocionais (continham apenas duas faixas de músicas, uma de cada lado), coincidindo com o que o locutor havia marcado muito antes na contracapa.

Nessa amizade com Bentinho vez ou outra sentávamos na lanchonete Ponto Chic, na pastelaria do João Corinthiano ou no Bar da Amizade, na JV da Cunha e Silva, para prosear. Eu tomava um refrigerante e comia um salgado ou um pastel. Bentinho tomava uma ou duas doses de cachaça, chupava laranja sem tirar a casca e comia ou um ovo cozido ou uma salsicha, ambos de conserva.

Bentinho confidenciava ser admirador de Fidel Castro e tecia críticas severas à elite assisense. Não era amigo de políticos, não os recebia, jamais os promovia e deixava claro isso à família Camargo, dona da rádio. Profissional, animava um comício ou outro, com shows, a pedido dos artistas que haviam sido contratados. Não raras vezes reclamava não ter recebido cachê, sob a alegação dos políticos contratantes de que o locutor trabalhara bêbado, sendo, na realidade, que havia ocorrido a renúncia de falar o microfone algo que promovesse candidatos.

Era o jeito Bentinho de ser. Um são-paulino roxo, provocador e esquentado, principalmente em situações em que seu time perdia para o Palmeiras de Celsinho Magui ou para o meu Corinthians, que também era de Carlinhos Perandré, Alves Barreto e Maurílio Siqueira.

Bentinho me dizia que bebia todos os dias para ignorar o quão podre era a sociedade aristocrática assisense. Seu sucesso, dizia, acontecia "apesar de...". Não era para ele dar certo, muito menos para ser o principal locutor da emissora. Mas, a programação da Cultura AM clareava o dia com Bentinho no ar e fechava a tarde, no crepúsculo, com a mesma voz.

Nas orientações que me deu na vida, a que talvez mais tenha feito sentido, vejo agora, é aquela em que o locutor dizia que há duas certezas na vida profissional: uma é que nem todos são ou serão seus amigos no trabalho, que é competição, e a outra, é que jamais um patrão será seu amigo. Patrão é amigo de outro patrão, e assim ocorre a exploração, dizia ele. Enquanto os profissionais da comunicação rivalizam no mundo do trabalho quando atuam em empresas concorrentes, o patronato dialoga para dividir o lucro do mercado.

Bentinho criticava o excesso de vaidade dos profissionais de comunicação, fator que desunia a categoria e promovia as empresas. A luta de classes, dizia, dava lugar à luta de vaidades. Trocava-se a resistência à exploração pela porosa promoção individual.

Na estrada rural no prosseguimento do Centro Social Urbano de Assis residia o casal José e Cida Santilli. Certo dia, sob mediação do professor da Unesp José Luís Guimarães, fui até a chácara da família Santilli. Era um sábado à tarde, no ano de 1992. Meu nome circulava como passível de compor a equipe de comunicação que trabalharia a campanha que faria Zeca Santilli retornar à Prefeitura de Assis.

Lá, com a presença, também, de um ex-companheiro de trabalho, José Zancheta Júnior, com quem trabalhei na rádio Antena Jovem três anos antes, participei das conversas e, quando ouvido, me posicionei sobre algo que mantenho até os dias atuais: não desenvolvo trabalho político-partidário. Não tinha nem nunca tive filiação partidária. Apenas tive e tenho minha identidade com a esquerda, ainda assim dentro de uma neutralidade que jamais me fez confundir as coisas quando o assunto é o mundo do trabalho.

Recordo-me da cena em que, naquele dia, seo Zeca estava sentado em uma cadeira de área, na varanda, com os cotovelos apoiados e os dedos das mãos entrecruzados. Pouco falava e, quando falava, pouco se entendia. Mas, ali, ele não precisava falar. Aquele senhor me observava com um olhar que abria oportunidade para novos reencontros, futuro.

Já eleito, seo Zeca pediu que José Luís Guimarães, seu secretário de Educação na gestão da Prefeitura, me convidasse para retornar à chacara. Era também um sábado, o ano era 1993, e lá chegamos com igualmente um número reduzido de pessoas. Além de Zé Luís estavam outros três secretários: o da Fazenda, Reinaldo Teixeira, a da Saúde, Maria Carricondo, e o chefe de gabinete Euclides Nóbile, o Clidão. Além, claro, de Maurício Toni, figura inseparável do prefeito.

Rolava um churrasco, comandado por Pacu, um dos mais competentes churrasqueiros com quem convivi socialmente nessa breve vida. E como chegamos já passando das 15 horas, pois Zé Luís era estratégico e sabia que naquele horário os comedores de carne e tomadores de cerveja já teriam cumprido suas missões e ido embora, pude dialogar com tranquilidade com seo Zeca.

Foi a primeira ocasião em que proseei com aquele velho político. Velho no sentido da experiência, e não pela idade. 

Dona Cida logo sentou-se próximo e mais assistiu à prosa do que dela participou.

Não foi, pra mim, surpresa ouvir de seo Zeca que aquela conversa era desdobramento do encontro anterior, ocorrido na fase anterior ao início da campanha eleitoral. O velho político dizia, então, que eles, da classe política, não são acostumados a receber "não" como resposta, ainda mais a propostas que envolvem remuneração.

Zeca Santilli ficou inquieto, para não dizer incomodado, com o fato de um comunicador ter rejeitado a proposta de trabalhar na campanha dele. E, ali, ele quis saber o que havia levado àquela resposta: a proposta ou a campanha? Eu respondi que nenhum dos dois fatores. Afirmei que, sim, minha renúncia estava relacionada a um posicionamento pessoal de não associar meu trabalho à política partidária.

Afirmei que aquele havia sido o primeiro convite em meus até então 7 anos de radialista para trabalhar diretamente na política partidária. E que renunciei à proposta um tanto incomodado, pois reconhecia em Zeca Santilli um político com histórico de investimento em educação e meio ambiente, bandeiras que sempre defendi, desde a juventude. Recordei, com ele, uma fala sua do final do primeiro mandato, nos anos 1980, quando afirmou, na entregado das quadras e pista de skate do Buracão, que não estava focado no crescimento de Assis, mas, sim, no desenvolvimento.

Seo Zeca afrontava os sonhadores de uma Assis com 100 mil habitantes. Dizia que100 mil habitantes em uma cidade cidade sem infraestrutura são 100 mil problemas. E naquela tarde de sábado ele reafirmou que acidade, com seus quase 90 mil habitantes na época, seria a melhor localidade do país, em qualidade de vida, caso mantivesse a meta de investir na tríade educação-saúde-saneamento básico.

Bentinho e seo Zeca não são recordados como os melhores nomes de suas áreas. Hoje falecidos, talvez em seus últimos dias de lucidez tenham preparado para despedir da vida nem um pouco preocupados ou amargurados com as pessoas que os definiram fora do contexto dos sujeitos maravilhosos que aos meus olhos e meus ouvidos foram.

Ficaria, aqui, por horas e mais horas, páginas e mais páginas, escrevendo sobre as circunstâncias em que os diálogos com Bentinho e seo Zeca renderam reflexões para a vida. São causos interessantes, a meu ver, mas que certamente engrossariam o discurso polarizado de quem insatisfeito/o com a gestão da própria vida, ainda cuide de definir outrem por suas ações e palavras.

Para, pois, encerrar, foi num contexto assim que, dia desses, em grupo de whatsapp criado para apoiar a candidatura de um vereador de Assis, comentei sobre postagem anterior que na universidade pública onde leciono um colega fez comentário, também em grupo, de que alguns países estão proibindo a entrada de brasileiros que receberam a primeira dose da Coronavac. A intenção era observar o quão desinformada é parte da população, pois nem brasileiro nem qualquer outro cidadão do planeta estava autorizado a entrar em determinados países, seja qual for a vacina recebida, pois as fronteiras estavam fechadas no auge da pandemia.

Uma pessoa a quem não conheço ou, ao menos por nome, desconheço, fez comentário sobre minha postagem. Em princípio, entendi que ela estava interpretando que aquele professor citado na minha postagem era eu mesmo. Ratifiquei que me referi a outro professor, que, por sinal, tem o direito de entender o que quiser das vacinas cujo princípio ativo vem da China, não cabendo, tão somente, fazer a infundada afirmação de que vacinados com Coronavac estavam sendo preteridos, em trânsito, por esse motivo.

Na tréplica, em forma de comentário, a pessoa encerrou insinuando esperar que eu tenha me arrependido do voto que dei em 2018, considerando o cenário devastador com o que o país está sendo governado.

Optei por não dar continuidade àquele debate. Primeiro, tenho certeza de que aquela pessoa não me conhece. Se me conhecesse o suficiente, saberia que sequer votei em 2018, tanto em primeiro quanto em segundo turno. Trabalho no Nordeste desde 2014, mas meu título de eleitor continua em Assis. Em 2018 eu havia assumido a coordenação de graduação de meu curso meses antes da eleição e, assim, não tive condições de vir votar no Clybas.

Naquela eleição travei, sim, duas batalhas. A primeira, em família, provocou um racha que até hoje me faz manter distância de familiares alinhados ao bolsonarismo. A segunda eu já citei no início desse texto, pois fiz uma limpeza na lista de "amigos" cujas postagens comemoravam a vitória do Coiso no dia seguinte ao segundo turno.

Portanto, as pessoas precisam, primeiro, ter informações claras sobre outrem, antes de tecer comentários em que relação a quem acham que conhecem. Aquela pessoa, infeliz pelo comentário que fez no grupo de whatsapp, sequer imagina que no ápice da minha batalha anti-Bolsonaro, eu pedi e fui atendido que minha mãe, cuja a facultava da obrigatoriedade de de voto, fosse à Escola Francisca, na Vila Glória, e votasse em Haddad.

Ou seja, eu não votei no segundo turno, em 2018, em Assis. Mas, um dos votos que Haddad teve em Assis ele não teria, pois minha mãe, que havia feito uma cirurgia no joelho direito então recentemente, não iria votar. Ela, que faleceu por Covid-19 em 29 de janeiro desse ano, solidarizou comigo, ante a um massacre que passava por parentes bolsominions, e votou 13.

A mania, dentro de uma cultura nefasta, que se tem de definir a outra pessoa sem sequer conhecê-la gera situações assim. Não sou petista, nem lulista, mas, irredutivelmente, sou antibolsonarista. Há algum tempo não tenho mais perdido meu tempo discutindo com bolsominions, muito menos com quem, por saber que não sou petista nem lulista, faz ilações vazias.

É fato que em 2022 voto em qualquer coisa que derrote Bolsonaro e livre o Brasil desse buraco-sem-fundo a que o país foi submetido. Igual a 2018, a tendência é que meu posicionamento seja um no primeiro turno e outro no segundo. Até dia desses eu via em Lula a via que levaria à vitória sobre Bolsonaro no ano que vem. Mas, o flerte dele com o MDB, na sua estada atual pelo meu Nordeste, mostra que meu voto, de esquerda, tende a trilhar por outra legenda. Somente se for com o Coiso para o segundo turno, aí sim, meu voto, sem outra opção, fica assim definido.

Antes que desinformados/as tirem conclusões parciais, apesar de não ter votado, em 2018 meu posicionamento foi por Boullos/Erundina noprimeiro turno e Haddad, no segundo.

E se quiserem tirar as mesmas conclusões, que tirem. Como ilustra o mural, "você achar não quer dizer que eu seja".

* Professor universitário, historiador e jornalista, é doutor em Ciências da Comunicação pela ECA/USP.


sexta-feira, 20 de agosto de 2021

NOSTALGIA - Minha curiosidade com o que havia dentro da máquina de escrever

 

Cláudio Messias*

Hoje decidi retomar minha escrita aqui nesse espaço do blog. Sei, claro, que nos tempos atuais de consumo instantâneo de informações os textos longos, minha característica desde os tempos de redações, andam um tanto preteridos.

Não tenho estatística que fundamente isso, mas, parece-me, a maioria prefere os textos curtos. Não por acaso as redes sociais tornaram-se disseminadoras de informações incompletas (não me refiro a notícias falsas). Sabe-se de algo e antes de aprofundar na busca pela informação completa, compartilha-se aquilo que se sabe, nem que seja conhecimento parcial.

Não me abalo. Afinal, nesses 36 anos atuando na ou estudando a comunicação jamais busquei o consenso, a unanimidade ou a aprovação da maioria. Aqui, no blog, sempre me refiro aos raros e excetos leitores.

Mas, não voltei a escrever para patinar nesse assunto. A comunicação, assim como a língua, é viva, mutante e em suas metamorfoses exige adequações, adaptações e renúncias, às vezes. Meus textos longos, são, pois, renúncia.

O prazer pela escrita, de minha parte, remete à infância. Na máxima de que pisando no terreno das Humanidades nunca fui lá sequer mediano nas Exatas meio que faz e fez sentido em minha vida, apesar de ser adepto e por conseguinte simpático às estatísticas, às probabilidades e, por que não, aos algoritmos.

Na pesquisa científica meus passos perpassam, não por acaso, pelas abordagens quali-quantitativas. Tornei-me um fascinado, no doutoramento, pela meta-análise e no estudo das variáveis. Escrever, pois, uma tese no terreno das ciências sociais aplicadas tendo por base números que sinalizam probabilisticamente para certa razão no comportamento humano de consumo é, nesse prisma, um fascínio.

Na infância um mecanismo de escrita despertava minha curiosidade: a máquina de escrever. Observava aquelas Olivetti, via as pessoas apertando com certa força as teclas, as fitas de tecido carregadas com tintas nas cores preto e vermelho e as folhas sendo giradas a cada linha preenchida.

Minha curiosidade não estava relacionada ao que era escrito, mas, sim, à forma como aquela geringonça fazia com que o que estava na intenção comunicativa do/a digitador/a saísse na folha de papel.

No meu imaginário era mais ou menos como observar um automóvel. Você o vê em movimento, acostuma-se com isso e o que está em síntese é a estética do sensível, fenômeno fundamentado pelo francês Jacques Rancière e que nos mostra que no cotidiano de repetições das ações humanas ficam submetidos a uma camada invisível da percepção eventos que fundamentam aquilo que por vezes nos comove.

Um/a datilógrafo/a repetia incontáveis vezes, no seu cotidiano, a digitação em folhas de papel que sua comoção sobre o objeto denominado máquina de escrever só era despertada em situações como pequenos defeitos que impediam o funcionamento. Uma tecla travada, a fita bicolor que saía do carrinho de alinhamento ou pura e simplesmente um defeito no mecanismo central.

As antigas máquinas de escrever careciam de manutenção periódica. Substituição da fita bicolor era feita conforme a demanda. A fita ia sendo usada e simplesmente esgotava, chegava ao fim. Em momento assim tinha-se que retirar uma tampa superior e fazer o rebobinamento da fita. Uma fita era passível de ser usada duas vezes. No máximo, três vezes, pois a impressão do que era digitado ia ficando “apagada”, desgastada.

Trabalhar com máquina de escrever significava, ao longo do tempo, duas coisas básicas, na característica estética comum de um/a datilógrafo/a: desenvolver a lesão por esforço repetitivo (LER) e as pontas dos dedos, principalmente os indicadores direito e esquerdo, mesclando as cores preto e vermelho.

Havia quem usasse flanelinhas ou mesmo pedaços de papel na tentativa de fugir do borrão de tinta nos dedos, mas, sem chances, as mãos não ficavam limpas. Para piorar, os rolinhos de fita de tinta bicolor continham um tecido com composição química à base de álcool, ou seja, você sujava os dedos e a tinta secava rapidamente, penetrando nos poros e nas impressões digitais.

Terminou o drama de escrever à máquina e sujar as mãos? Não. Além da fita de tinta bicolor ainda haviam as folhas de papel carbono. Se a folha digitada exigia uma cópia, usava-se uma folha de carbono. Se três cópias, duas folhas de carbono. Mais que isso e uma quarta cópia sairia praticamente ilegível.

Quem desenvolveu lesão por esforço repetitivo usando máquinas de escrever certamente piorou esse quadro se praticou a escrita com folhas em até 3 cópias. Isso porque a força da batida em cada tecla tinha de ser maior em comparação a escrever cópia simples.

Sim, isso que escrevo agora pode representar uma maluquice para quem hoje tem a idade dos meus filhos (25 e 23 anos) ou mesmo meus/inhas alunos/as. Difícil conceber que esses teclados macios, feitos à base de plástico e, em alguns casos, com luzes coloridas de fundo, um dia foram antecedidos por aquelas geringonças. Teclado macio às mãos, tela cuja luminosidade pode ser controlada ante aos olhos, a possibilidade de apagar erros de digitação e, quer coisa!, dar um “control+p” de comando e a impressão de quantas vias for necessário ocorrer sem borrões nos dedos.

Você, raro/a e exceto/a leitor/a, pode estar perguntando onde estava meu fascínio ao observar, na infância, uma máquina de escrever em funcionamento, usando, como usei, o exemplo de ver um automóvel em movimento. Minha curiosidade, pois, era centrada no que estava dentro da máquina, que fazia uma tecla de cada vez atingir o papel.

Certo dia, lá pelos idos de 1981 (eu tinha 11 anos de idade), meu irmão mais velho, Claudinei, que trabalhava no escritório de contabilidade Alevato, em Assis, SP, apareceu em casa um com máquina de escrever Olivetti, portátil. Era verde e, pra mim, uma coisa linda de ver.

Nossa família sempre foi pobre, com condições financeiras bem complicadas. Pai ferroviário, mãe lavadeira, nós não passamos fome, ao menos que eu me recorde, mas, éramos de uma realidade em que as roupas que eu usava, assim como os calçados, eram aquelas e aqueles que meu irmão mais velho havia usado. Roupa nova, só uma peça de cada, no final do ano, comprada nas Casas Pernambucanas e para ser paga no crediário durante o ano. E a roupa nova comprada em dezembro era para ser usada no Natal e no Ano Novo. Depois disso, era usada para “sair”, ou seja, para visitar alguém, ir a um casamento ou festa, enfim, em situações especiais. Usar para ir à escola, jamais, até porque os uniformes eram obrigatórios.

Em uma situação domiciliar como essa não cabia dinheiro para comprar folha de papel. E eu usava, para digitar naquela máquina de escrever, papel de pão, outro artigo que as gerações atuais desconhecem. Sim, os pães eram vendidos em formato bengala, hoje chamados de baguete, e embalados e folha de papel jornal. Alguns eram embalados em folha de papel seda de jornal.

Esse papel jornal era reciclado. Não raro, algumas folhas traziam letrinhas, que nada mais eram do que resultado da reciclagem de papeis usados, entre eles o jornal de notícias. Eu, cuidadoso, antes que o papel fosse manchado por manteiga ou margarina, recolhia aquelas folhas e guardava, pois nela desenhava, enfim, reaproveitava o que já era reaproveitado.

Até hoje sou resistente ao desperdício de papel. Não só pelo fato, hoje sei, de isso ser pensamento sustentável, mas, principalmente, por ter convivido com uma situação socioeconômica em que sequer folha de papel tínhamos em casa. Nossos cadernos eram aproveitados ao máximo, sendo encerrados sem folhas em branco de sobra. Igualmente, nossas canetas esgotavam a tinta e os lápis só eram descartados à base de “toquinhos” que não cabiam mais nas pequeninas mãos de crianças.

A máquina de escrever portátil levada por meu irmão servia para eu registrar meus escritos. Primeiro eu o observava usando e depois, repetia as ações. Lembro que levava mais de um dia para completar uma folha inteira datilografada, sempre cuidadoso para não errar na digitação e não comprometer esteticamente a página.

Avançando na técnica de digitar, escrevi minha primeira história. Um conto sobre o que mais me perturbou na infância, ou seja, vampiros. Não consigo resgatar os motivos de temer tanto os vampiros, mas, sei, foi esse personagem que ilustrou minha primeira historinha digitada.

Não recordo mais do enredo. E nem sei onde foi parar aquela historinha digitada. Guardei parte do meu acerco pessoal até os 21 anos de idade, quando fui morar com minha mãe, então separada de meu pai havia três anos. Três anos depois me casei e, assim, os pertences todos da vida de solteiro foram parar em local que desconheço, podendo, inclusive, ter sido o lixo.

Daquele tempo, nos anos 1980, até hoje fomos sobremaneira influenciados pela tecnologia nos nossos modos de consumo e produção cotidianos. Das máquinas de escrever avançamos para os computadores desktop e notebook. Igualmente, não dei conta de apenas ver o funcionamento estético dessas máquinas.

Cansei, nos anos 1990, de pagar 40 reais para que técnicos de informática viessem à nossa casa para formatar HD ou colocar computadores em rede. Claro, assim como as máquinas de escrever, passei a abrir os computadores. Primeiro, troquei HD, depois, pentes de memória, depois, processador, até que chegou o dia em que troquei uma placa-mãe.

Com o Windows 98, formatar um computador ou simplesmente reinstalar o sistema operacional requeria colocar a máquina em rede. Tive que aprender sobre máscara de rede, gateway e outros elementos que envolvem trabalhar em rede. Ou seja, muito mais que abrir um computador, era necessário entender todo o conjunto de funcionamento.

As versões Windows XP e Vista, assim como as sucessoras, eliminaram esse trabalho todo, fazendo a programação de rede do computador de forma automática, mas, ainda assim, vivíamos em situações em que para não pagar os tais 40 reais em uma visita praticamente semanal dos técnicos, tínhamos de continuar buscando entender o funcionamento.

Hoje, aos 51 anos de idade, recordo disso tudo com esse estilo nostálgico de escrita. Não, não prefiro aquele tempo, jamais, em que o papel era colocado na máquina e a digitação exigia sujar os dedos com tintas. Muito menos tenho saudade da época da impressora matricial, antecessora das janto-de-tinta e laser atuais.

Cada tecnologia teve seu tempo e, sim, precisamos observar o uso desses recursos como nos mostra Jacques Rancière e a estética do sensível. Muitos podem, sim, nascer, viver e morrer sem ter precisado um dia sequer saber como as coisas funcionam, principalmente quando sabem que seja qual for o problema, haverá alguém para repará-lo. Não condeno isso, absolutamente.

Porém, quando não entendemos como as coisas funcionam, ou seja, ficamos observando a caixa de fora da máquina de escrever ou vendo apenas o automóvel em movimento, temos chance maior de desenvolver a ignorância, no sentido de ausência de conhecimento. Ninguém precisa saber como um computador funciona, nem tem por regra aprender a consertar um. Isso está na cultura cotidiana de cada um/a, configurada pelas necessidades, ora por vezes, essas, movidas pela curiosidade.

É com esse olhar que vejo, indignado, a discussão aparentemente encerrada nessa semana, vinda de Brasília, acerca da volta do voto impresso. Que o sistema de voto eletrônico não seja totalmente confiável, disso não tenho dúvida, pois há tecnologia, indústria hegemônica e Estado envolvidos no desenvolvimento dessa tecnologia. Nada que envolva o que denomino, em minha tese de doutorado, hegemonia plena, ou seja, que envolva mercado, Estado e Igreja, é totalmente confiável. Aliás, o totalmente confiável é utópico.

Mas, o que vemos nesse debate é uma parte que renuncia-se a conhecer a tecnologia por trás da caixa da máquina de votação eletrônica e, pior, não viu problemas quando esse mesmo sistema de votação, que nos permite conhecer eleitos/as em questão de horas e até mesmo no própria dia do pleito eleitoral, os elegeu por mais de uma vez no passado dessas últimas duas décadas.

Em momento algum a parte que critica o sistema de votação em urna eletrônica fez uso do exercício de gestão que o regime democrático lhe assegurou, nas mesmas urnas, e publicamente foi visitar a indústria que produz os equipamentos, os tais hardwares, e desenvolve os softwares. A ignorância, no sentido de ausência de conhecimento, se faz mais árdua nesse sentido, pois o pior ignorante não é aquele que diz desconhecer algo, mas, sim, aquele que renuncia conhecer sobre algo.

A Câmara dos Deputados, dentro dos pressupostos do Estado Democrático de Direito, barrou qualitativamente a iniciativa de retomar o voto impresso. Não, não quer dizer que estejamos sob o mais seguro dos sistemas de votação, pois o uso de urnas eletrônicas é uma coisa e o processamento dos dados das votações, fazendo chegar tal fluxo até o Tribunal Superior Eleitoral, é outra coisa. Sabemos que as urnas eletrônicas não trabalham em rede, mas ingênuos seremos se entendermos que via cartórios eleitorais os dados coletados por seções e zonas eleitorais não cheguem a Brasília via rede. Auditorias sérias nos mostram, periodicamente, muitas vezes sob convocação em forma de desafio, público, por parte da Justiça Eleitoral, que esse sistema de votação e coleta de dados até hoje não foi fraudado. E confiamos.

Compreendo o discurso de quem defende o voto impresso, situando os sujeitos dessa voz na citada ignorância advinda de desconhecimento, seja por ausência de conhecimento, seja por renúncia ao mesmo. Inevitável, porém, imaginar tais defensores, em comportamento análogo, com as pontas dos dedos sujas de tinta.

* Jornalista e historiador, tem mestrado e doutorado em Ciências da Comunicação pela ECA/USP.

terça-feira, 2 de março de 2021

VIDA QUE TESTA - A difícil volta a um normal que nunca vai existir

 Cláudio Messias*


Aeroporto de Recife, salão de embarque, em plena tarde de terça-feira

Dona Luzia com Júlio Messias ao colo em 1997

Seo José Messias com Júlio ao colo em 1998



* Professor universitário, tem graduação em História pela Unesp, mestrado e doutorado pela USP.





segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

PANDEMIA - O dia em que confirmei que, sim, tudo voltou ao normal

 Cláudio Messias*

Nesse domingo, 17 de janeiro, fiz meu trajeto de 15 horas de duração para sair de Assis, SP, e chegar a Campina Grande, PB. Cento e 20 quilômetros de carro até o aeroporto de Presidente Prudente, depois uma conexão relâmpago em Campinas, mais 3 horas até Recife, quase 5 horas de espera e, enfim, a aterrissagem na Rainha da Borborema.

Muitos imprevistos marcam viagens assim, que faço desde 2010, quando vim a Campina Grande, como pesquisador da USP, pela primeira vez. No caso específico desse domingo comi uma tapioca com queijo branco e uma fatia de peito de peru defumado no meu café preto de manhã, junto com Rozana. Seria a única refeição até as 16h20, quando o Airbus A330 da Azul desceu em Recife. A conexão em Campinas permitiu apenas que eu saísse do ATR, desembarcasse e, em conexão, imediatamente embarcasse no Airbus.

Ficar todo esse tempo sem comer, tudo bem, não afeta tanto, pois na vida do jornalismo cansei de trocar almoço por café da tarde à base de pão com presento e/ou mozarela. O que ainda não havia experimentado foi a sensação de sufocamento por que passei dentro do Airbus. Eu estava vendo o filme O Segundo Exótico Hotel Marigold e ria, muito, com a comédia que tem atores/atrizes indianos/as maravilhosos/as.

Em um dado momento, contudo, senti o ar rarefeito. A mesma sensação de que tenho reclamado, principalmente nas madrugadas, desde a cirurgia cardíaca de 2015. Notei que estava suando, apesar da climatização, bem feita, da aeronave. A moça sentada e corredor na poltrona ao meu lado estava desmaiada, de tanto que dormia. Acionei o comando de chamada da comissária de bordo. Ela veio, trouxe-me água (único 'alimento' que a ANAC autoriza servir em voos na pandemia), mas deu conta de que na realidade eu pedia socorro.

Batia, ali, a sensação de que eu precisava respirar ar puro e botar a cara na luz natural do dia. Mas, como fazer aquilo, a que sempre recorro quando estou em casa, nas madrugadas, com sufocamento, com a aeronave a sei lá quantos mil metros de altitude? Dialogando comigo a comissária tratou de traçar o diagnóstico de que eu estava em crise de pânico. Lamentou que não poderia sugerir à pilota (sim, a comandante daquele voo era uma mulher) alteração alguma de rota, mesmo tendo outros passageiros reclamando da mesma crise que eu.

Aceitei o copo de água que ela levou, tomei, mas recusei a medicação sugerida. Resisto o quanto posso aos ansiolíticos, tipo de medicação ao qual fui por vezes submetido desde a cirurgia cardíaca, principalmente em 2015, quando tive diagnóstico de Síndrome de BornOut, submetido que estava a situações de assédio moral em meu ambiente de trabalho. E, inclusive, até tinha na mochila, junto com meus medicamentos cotidianos, o frasco de ansiolítico. Optei, apenas, por adotar a estratégia do autocontrole, à base da meditação.

A cada 20 minutos ou meia hora a mesma comissária de voo passava e perguntava se estava tudo bem, ao que eu sinalizava que sim. Entre uma prosa e outra a observação da profissional sobre o índice elevado de passageiros, na pandemia, que apresentam estado semelhante ao meu naquele voo. Teoria dela, o temor decorrente da pandemia faz as pessoas desesperarem quando dão conta de que encontram-se aglomeradas dentro de uma aeronave e, pior, sem opção alguma de mudar o curso da situação.

Dei uma pausa no filme e, quando meditava, desconectei do mundo real por alguns minutos. Um cochilo mesmo. Despertei, terminei de ver o filme e, na sequência, vendo o painel mostrar que estávamos a 1 hora de Recife, decidi ver documentário do National Geographic sobre o duelo "Humanidade x Inteligência Artificial", de 40 minutos. A comédia deu lugar a uma séria reflexão acerca da suficiência que a humanidade terá para gerir as máquinas no ano 1 milhão, quando a vida poderá ser eternizada por androides programados, de maneira que o corpo, sim, morra, mas os dados da vida de cada um, não, podendo, esses, serem recarregados em uma representação engenhosa da pessoa morta, que fica, assim, eternizada.

Bastou o cenário futurista mexer com a cabeça, com o raciocínio e lá veio, de novo, a sensação de pânico. Estava em meu semblante e a comissária, quando passou pelo corredor, parou e afirmou, em vez de perguntar: "o senhor não está bem de novo". Mas, a situação já estava mais administrável e consegui reencontrar o equilíbrio, sem ter a sensação de que precisava levantar e sair do lugar, como ocorrera horas antes.

Quando a aeronave desceu em Recife levamos mais de meia hora para desocupá-la por completo. Eu estava na fileira 33A e, portanto, fui um dos últimos a deixar o Airbus. Aliás, nesse aspecto, as restrições decorrentes da pandemia fazem gerar uma mudança de comportamento que faz da desocupação de aeronaves um problema no mundo todo, e não somente no Brasil. Os/as apressados/as que sequer esperam a aeronave parar por completo e congestionam corredores batendo com bagagem de mão na cabeça de quem está sentado agora têm de esperar. Sentados. Vivi para ver isso acontecer um dia, e nessa viagem de ontem testemunhei a cara de insatisfação dos/as apressados/as por três vezes.

E nessa postagem estou falando diversas vezes dela, a pandemia. Muito bom ver que o comportamento dos passageiros teve de mudar com a pandemia. Mas isso, dentro das aeronaves. Porque fora delas a cultura do desrespeito, da parte de passageiros e da parte de quem faz a gestão de aeroportos, continua idêntica. Máscaras que só cobrem o queixo são vistas aos montes dentro dos aeroportos. E as salas de espera, apesar de terem assentos marcados para que se respeite o distanciamento social, são repletas de pessoas sentadas em todos os lugares, permitidos ou não.

A pior de todas as cenas eu assisti no aeroporto de Recife. Como disse, cheguei pouco depois das 16 horas e sairia para Campina Grande às 22h00. Sempre, nessas ocasiões, antes da pandemia, eu aguardava na sala de embarque, onde há opções de alimentação. caras, mas estão lá, fazendo evitar que se saia do embarque e, depois, tenha-se de fazer todo o procedimento de revista, necessário, de embarque.

Assustei quando vi aquela multidão, no final da tarde de domingo, ou nas filas de embarque em frente aos respectivos portões, ou sentados. Outras filas ainda eram formadas nos quiosques de alimentação. Tive, ali, não uma crise de pânico, mas uma revolta imensa. Pessoas de todos os estados e de outros países aglomeradas, usando porcamente as máscaras, enfim, em um ecossistema perfeito para o contágio por Coronavírus. 

Não titubeei e saí, pelo portão de despacho de bagagens. Minha esperança era que a praça de alimentação do piso 3 estivesse menos congestionada, pois recebe passageiros que estão chegando para embarcar e têm pouco tempo para comer. Sentei, comi um filé de frango à bolonhesa, tomei  mais de um copo de 500 ml de chope, dialoguei com a família e alguns amigos, enfim, relaxei. 

Perto das 21 horas fiz novamente o embarque e deparei com um saguão menos cheio. Nas poltronas de espera conheci padre Pedro, um jovem com menos de 40 anos de idade pároco no centro histórico de São Luiz, capital do Maranhão. Como lá estive em 2019, em São Luiz, proseamos sobre a maravilha que é o centro histórico da capital maranhense, com sua história de relação com os negros e lamentamos as cenas que, apesar do número reduzido de passageiros, se repetiam: brasileiros e estrangeiros indo pra lá e pra cá com as máscaras no queixo, como se nada estivesse acontecendo no Brasil e no mundo.

Eu e padre Pedro, então, tivemos consenso na conclusão de que, sim, tudo voltou ao normal. Eu citei a comprovação disso quando comentei a cena que vi, em Viracopos, na manobra do ATR que levou-me de Presidente Prudente. Já no ônibus da concessionária do aeroporto visualizei, algumas dezenas de metros adiante, a aeronave da Azul adesivada para buscar milhões de doses e insumos de vacina na Índia mas que, na realidade, estava ali transportando cilindros de oxigênio para Manaus. A foto está anexada a essa postagem.

A aeronave adesivada para buscar vacinas que não vieram


Para a nossa tristeza, a vida voltou ao normal e comprovamos isso quando vemos aeronave adesivada e locada com dinheiro público sem nunca ter deixado o solo para buscar vacina alguma, dentro de uma estratégia de fazer pioneirismo de saúde pública em um momento em que mil pessoas morrem por dia, desde março passado.

Naquela tarde de domingo, enquanto um genocida fazia estratégia de guerra que mais lembra o filme dos anos 1980 Top Secret - Super Confidencial para distribuir vacinas pelo país, do outro lado um não menos genocida ignorava comandar o estado da Nação onde mais pessoas são contaminadas e/ou morrem por Covid-19 e vibrava, com semblante de dar medo, ter vacinado a primeira brasileira contra a doença.

Fiz as contas aqui e com os números do tal consórcio de imprensa as 207 mil mortes contabilizadas no Brasil até o final de semana passado permitem concluir que perdemos vidas que correspondem à queda, sem sobreviventes, de 470,45 aeronaves Airbus A330 Neo, cuja capacidade é para 440 pessoas, entre passageiros e tripulação.

Com um ano da pandemia no país prestes a ser completado, é como se 1,2 aeronaves Airbus A330 caíssem a cada dia no Brasil nesses últimos 365 nefastos dias da nossa história contemporânea. E ainda temos que ligar a TV ou acessar as plataformas digitais e deparar com um governador de estado e um presidente da República fazendo das semelhanças pessoais (me recuso a definir a intriga como diferenças) algo maior do que as vidas perdidas e, pior, as que estão por vir.

De ontem para hoje, pelas estatísticas oficiais, enquanto Dória e Bolsonaro faziam seu teatrinho de horror, dois Aribus A330 caíram, imageticamente, sem sobrevivente algum. Eles, governantes, acostumaram com o cheiro da morte. E nós, vítimas, nos acostumamos com isso tudo, pois, como disse, não é que tudo voltou ao normal; nada saiu do normal nessa pandemia toda. A crise da saúde é que está mostrando quem são cada uma das pessoas que foram escolhidas para estarem onde estão, nos cargos que ocupam.

* Professor universitário, historiador, é doutor em Ciências da Comunicação pela ECA/USP.

REDES SOCIAIS - Falando Cons(m)igo mesmo

 Cláudio Messias*

FALANDO CONS(M)IGO - Em uma década e meia usando essa plataforma já construí amizades, destruí amizades e preteri "amizades". Construí amigos/as no meu amplo ecossistema de vivências cotidianas, destruí relações com amigos/as pelo fanatismo futebolístico e preteri pessoas a quem havia estendido a mão da amizade ,as recebi em troca traição, falsidade, apunhaladas pelas costas. Algumas dessas pessoas eu excluí, dada a impossibilidade de tê-las ali naquele link de "amigos", por sua incompatibilidade com a descrição que a plataforma dá, outros/as aqui estão, na tênue linha que separa colega de amigo/a.
Quem me conhece o suficiente para ter-me como amigo sabe de minha sinceridade, perfil de minha personalidade que constrói, sim, relações, mas, quando destrói... E dessa característica que por uma ótica pode ser virtude mas por outra pode ser defeito tem saído um comportamento, nos últimos anos, de distanciamento das redes sociais. Um certo cansaço de ver o quão as pessoas necessitam, muito antes da pandemia, mostrar a outrem coisas legais de seu cotidiano, como uma nova oportunidade de emprego ou mesmo o início de uma relação amorosa, mas coisas fúteis e profundamente desnecessárias como um prato, intacto, preparado a partir de uma receita vista na internet. Sei de casos em que primeiro veio a foto e depois o primeiro beijo de uma relação e, daí já é um saber coletivo, de inúmeros casos em que primeiro veio a foto e depois o provar/degustar do primeiro pedaço de um bolo. O/a novo/a companheiro/a pode ser, no delongar da vida, uma péssima escolha, mas aquela primeira foto já mostra um amor em chamas, prenunciando um "que dure para sempre". Igualmente, o bolo pode ter ficado massudo, carregado no açúcar, uma verdadeira porcaria, mas a foto, linda, deu água na boca das inúmeras pessoas que comentaram: "quero aprender fazer quando for aí", "pena que ainda não conseguimos sentir cheiro e sabor pela internet" ou "ficou mais bonito do que o que a minha avó faz".
A canseira gerada de expressões, via redes sociais, relacionada ao cotidiano nos faz distanciar de pessoas que quando adicionamos ou fomos fomos por elas adicionadas a grupos de "amigos" proporcionaram aquela sensação de desterritorialização das relações interpessoais que as mídias sociais proporcionaram. Pessoalmente, depois de anos de vivência, você nunca brigou ou discutiu, ou, se assim o fez, nunca rompeu amizade com essas pessoas. E a presença delas no cotidiano, por mais não frequente que fosse, transmitia a paz que as amizades verdadeiras propiciam. Mas, no polarizado mundo contemporâneo que destruiu amizades pela política e, agora, respinga com igual ácido nas acepções individuais sobre os caminhos que levarão ao controle gradativo do Coronavírus, você abre as redes sociais e lá estão as posições. Inevitável, nesse ínterim, não pensar consigo mesmo: como pode fulano/a ter um posicionamento desse?
Nas recentes festas de fim de ano, dentro de um controle de circulação de familiares que rigidamente gerenciamos (8 pessoas por encontro, sob todos os protocolos de higienização) reencontrei parte dessas pessoas a quem chamamos de amigos/as por serem da família e advirem de longa relação, direta ou indireta com nossos patriarcas e matriarcas. E o que vi, em um ou outro caso, felizmente, com essa baixa proporção, foram manifestações que seguem a onda que tanto combatemos e que tanto predomina nas redes sociais. Nem me refiro a fake news, pois esse conceito, poroso, já desfragmentou-se e a nossa ciência da comunicação precisa avançar no virar dessa página precipitada de atribui à audiência a produção de conteúdos falsos que a hegemônica mídia
protagoniza desde Gutenberg. Minha acepção, aqui, condiz a essa cultura factoide de advém da capacidade humana de, na comunicação, como disse Maria Aparecida Baccega, editar-se a visão de mundo. As pessoas estão editando a própria realidade a partir do que "ouvem" de seus igualmente reduzidos grupos de amizades em redes sociais. E quando enunciam algo, fazem transportando pontos de vista. Não têm aquela opinião porque a célere velocidade de fluxo de informações que superlota dispositivos de armazenamento, que precisam ser limpos em tempo cada vez mais curto, não permite parar para pensar, para refletir.
Isso me faz recordar uma cobertura de jogo que fiz em 1996, quando o Palmeiras venceu o Corinthians pelo Campeonato Brasileiro em Presidente Prudente. Eu lá estava como repórter do hoje extinto Oeste Notícias, impresso. Mirandinha, centroa-avante do Corinthians, saiu em disparada do meio de campo e foi em direção a Veloso, goleiro do Palmeiras, a quem driblou com u corte lateral para a esquerda. Um jogador, cujo nome não recordo, estava sozinho em frente ao gol e Mirandinha, na lateral, só precisaria passar-lhe a bola. Mas, não. O atacante continuou correndo, saiu com bola e tudo pela linha de fundo e a derrota de seu time por 1x0 estava consolidada. Na coletiva, perguntado pelos repórteres de rádio, sobre o porquê de não ter passado a bola ao companheiro, o atacante do Corinthians responde: "eu só consigo fazer uma coisa; ou eu corro ou eu penso".
Mirandinha nunca foi meu ídolo no Corinthians, dada a fartura de nomes que passaram pelo clube, inclusive em sua posição (citar Ronaldo Fenômeno, reconheço, seria covardia de minha parte). Mesmo assim, o respeito sobremaneira pela forma espontânea e sincera com que definiu aquele que é o comportamento de massa: faz-se sem pensar, e é melhor fazer do que correr o risco de, ao refletir, tomar as decisões dentro de uma razoabilidade.
Estou, pois, aqui, a falar comigo mesmo. Desde minha infância falo sozinho. E aperfeiçoei isso quando transitando do mestrado para o doutorado na ECA/USP, descobri pelo amigo Alan a meditação como recurso de gestão do meu eu. Dialogar com você mesmo é uma delícia, principalmente quando uma parte de você não concorda com a outra parte. Sim, nossa mente também fica contagiada pela polarização, mas é dessa interação díspar que sai a racionalidade das nossas ações.
Volta e meia, logo, estarei aqui de volta com uma postagem ou outra, já que desde ontem estou de volta a Campina Grande, preparando para repassar a coordenação de meu curso a outro/a colega, em fevereiro, e debruçar-me mais e melhor nas minhas pesquisas e meus pupilos de orientação científica. Cada linha escrita aqui é para mim, dentro do meu falar comigo mesmo, sem a mínima intenção de agradar ou desagradar outrem. Minha máxima continua sendo a mesma: o Facebook pode adestrar seus usuários para o que deva ser consumido, mas a opção de ler ou não postagens como a minha está dentro da autonomia do livre arbítrio de cada um.
Se eu não leio nem visualizo o que a ampla maioria posta aqui, por que me sentirei ou me sentiria afetado ou triste se ninguém ler, curtir ou comentar o que exponho? Como ocorreu em 2018, após o segundo turno das eleições, quando solicitei que "amigos" daqui me excluíssem das listas por não estar alinhado ao que as urnas escolheram, de novo, me excluam de seus perfis. Não há como saber quem assim procedeu e, mesmo que houvesse, com certeza, eu jamais iria atrás para saber disso. Nas eleições presidenciais de 2018 tive mais de 600 baixas, entre pessoas que me excluíram e pessoas a quem excluí.
Esse número pode baixar para 200 ou 20 ou 2. Minha preocupação com isso é tamanha que nesse exato momento não sei nem quantos "amigos" tenho aqui.

Se ficarem 200, 20 ou 2, o que importa é que haja amigos. Os/as amigos/as que tenho, e eles/as sabem muito bem disso, eu prezo, cuido, com a mesma delicadeza com que todas as manhãs coloco água nas plantas, água ração para os passarinhos livres na jabuticabeira de casa. Amigos/as legítimos são como as gatas que temos; quando estão perto de nós, ronronam com a nossa presença, pois, sabem, a acolhida é certa.

* Professor universitário, é doutor em Ciências da Comunicação pela ECA/USP.

Missa de Sétimo Dia seo José Messias - Martinópolis/SP

sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

LUTO - O que aprendi com a morte

 Cláudio Messias*

Seo Messias conosco, sentado debaixo da jabuticabeira que plantou nos anos 1980.


A partir de ontem, 7 de janeiro de 2021, mudei minha postura no lidar com pessoas que estiverem vivenciando a morte de alguém. Palavras que enunciadas docemente, com a melhor das intenções, como "ele/a passou dessa para o melhor", "agora ele/a descansou" ou "do jeito que ele/a estava, agora tem o merecido repouso", não confortam. E digo isso por experiência própria, passada nesse 6 para 7 de janeiro.

Não há palavra que console a perda de uma pessoa, seja qual for a circunstância. Quem encontra-se diretamente no luto aceita, abraça, chora, lamenta, mas, de maneira alguma aceita a morte ou os enunciados que tentam amenizá-la. E por mais que estejamos nos sentindo preparados para a passagem da pessoa querida, não, definitivamente, não estamos. Talvez não haja alguém que consiga administrar essa sensação dolorida de ver uma pessoa querida partir, por mais que estivesse doente ou em estado irreversível conhecido por todos. A morte provoca uma dor, uma angústia, uma vontade incontrolável de reverter aquilo que é dito como a maior de todas as certezas humanas.

Ontem, às 13h25, sepultamos meu pai, José Messias, em Martinópolis/SP. Desde 2010, quando foi submetido ao mesmo procedimento cirúrgico pelo qual eu passaria em 2015, qual seja, correção de isquemia miocárdica grave, com implantação de safenas e ligação de mamária, nosso velhinho percorreu um trajeto doloroso, cruel, provocado por uma doença manifestada pós-operação: a miastenia gravis pseudoparalítica. Perdi as contas, e isso nem tem importância alguma, sobre as viagens feitas de Assis a Martinópolis e a Presidente Prudente nesses mais de 10 anos.

A pior fase, e se é que houve fase que tenha sido mais amena, ocorreu entre 2015 e 2016, quando a desestabilização provocada pela miastenia o levou inúmeras vezes à UTI e, no ápice da crise, a uma trombose de carótidas, sendo necessário um implante de prótese. Assim como das outras vezes, as fatídicas estatísticas das ciências da saúde erraram. Apesar de o implante da prótese ter sido bem-sucedido, no procedimento faltou sangue na parte esquerda do cérebro e pior do que perder os movimentos do lado direito, seo Messias viu comprometido seu bem maior: a fala.

Momentos difíceis, e já lidando com a morte, que rodeava cada vez mais e se mostrava próxima. Eu encontrava-me no período pós-qualificação do doutorado e entre uma página e outra da escrita estava diariamente no Hospital Regional de Presidente Prudente, junto com minha madrasta/mãe Gê e minha irmã Danielle, na época estudante de Odontologia, ou seja, uma mocinha que igualmente tinha de lidar com a formação e a esperança para que o pai não partisse.

Chegou um momento em que tínhamos de brigar com a morte, mas, também, com pessoas que prenunciavam a morte de seo Messias. Aroeira, o velhinho mostrava comunicação somente com os olhos azuis maravilhosos, nos dizendo "eu vou viver". Aquela era a verdade mais absoluta que existia pra mim, apesar de os médicos fatalizarem, diariamente, que não havia mais o que fazer. Meu pai era pele e osso, não falava, tinha uma sonda que o alimentava pelas vias nasais, estava todo roxo de tantas aplicações feitas, mas não cedia. Nos olhava, apertava aos mãos como quem diz "não desistam de mim". E não desistimos.

Por duas vezes a equipe médica pediu para chamar familiares, para a despedida. Nos encontrávamos na entrada do HR, todos/as, coma sensação de que a morte, sim, estava por ali, esperando. Na derradeira das vezes, o pároco foi chamado para o ritual cristão de bênção para a despedida eterna. Só que não. Seo Messias enquadrou-se na estatística de "menos de 5% de chance de sobrevivência". Recebeu alta no dia 16 de outubro de 2016, com a mesma sonda de alimentação via nasal. Se resumia a pele e osso, mas por dentro tinha uma força de vida que o fazia apertar nossas mãos.

No caminho de Prudente a Martinópolis eu dirigia e tinha meu pai ao lado. Dani e Gê estava atrás e tinham de segurar a cabeça dele, que estava deitado no banco, porque o velhinho sequer conseguia controlar o pescoço. Eu via aquela cena e me perguntava se a morte não estaria também ali no carro, só esperando.

Fizemos do quarto de Dani um quarto de hospital. Colocamos cama hospitalar e os aparelhos necessários. Profissionais de saúde diariamente dar o amparo, pois a alimentação era feita por sonda. Uma fonoaudióloga o acompanhava, exercitando para que reaprendesse a falar, depois da paralisia parcial. Uma fisioterapeuta o orientou a reaprender a andar. E como bom aluno da vida, seo Messias enganou a morte, de novo. Nunca mais voltou a falar com a nitidez de antes, mas fazia o suficiente para ser compreendido. Deixou a sonda e passou a alimentar-se normalmente, primeiro auxiliado e, depois, autônomo. E, claro, voltou a andar para pequenas caminhadas dentro do quintal da casa.

Não nos comunicamos com a morte, mas ela, quando manifesta-se, nos ensina a evitá-la. É mais ou  menos como você caminhar à beira de um precipício: se cair, morre, e o jeito é medir melhor os passos para que a probabilidade de ir parar no fundo seja, se não anulada, ao menos reduzida.

Com a cirurgia cardíaca de meu pai, em 2010, passei a monitorar minha saúde, anualmente, com cardiologista. Até passar por dois enfartos, em 2014, em Campina Grande e Recife, e em fevereiro de 2015 ser submetido à cirurgia cardíaca. Não desesperei. Pelo contrário, administrei família e amigos, assustados com a costumeira estatística da morte das ciências da saúde. Assim como meu pai, dada a gravidade do meu caso, carrego a cicatriz no peito por ter 4 ligações safenas e uma mamária. 

Há, pois, uma estratégia para fugir da morte, mesmo quando ela está ali, ao lado, ganhando força nas palavras de pessoas acostumadas com vítimas que por conveniência estacionam na condição de vítimas, sem forças para afrontar a maior das certezas humanas de encerramento de ciclos. E a estratégia, não tem jeito, é querer viver e, sabendo que isso não depende só de suas forças, deixar isso claro a quem tem a sua tutela. Necessário, pois, que esses tutores de sua resistência sejam tão fortes quanto você.

Com meu pai eu aprendi a recorrer a uma força interior que desconhecia. Discuti com médicos, briguei com diretores de hospital e cheguei a fazer boletim de ocorrência quando quiseram dar alta para que meu pai saísse direto da UTI para casa, para "despedir-se da família em casa". Liguei 190, pedi viatura da polícia em outra situação similar. Noutras vezes, acionei amigos e mesmo nosso advogado em família em Assis, por não aceitar que transferissem meu pai do cuidado das ciências da saúde para a tutela da morte.

De tanto lidar conosco, a morte talvez também tenha aprendido algo, já que as relações de ensino e aprendizagem são permeadas pela troca, pelas experiências, de maneira que quem ensina, quando o faz, aprende e apreende com o/a interlocutor/a.

Seo Messias, percebemos, mostrou-se um tanto abatido no Natal de 2020. Em 'live' familiar, já que a pandemia nos cerceou da passagem da ceia natalina com o patriarca, seu semblante era um tanto abatido. Pensei que pudesse ser pela distância de todos/as por conta da Covid-19. No Ano Novo, a primeira recaída de saúde, com dores abdominais. Dias depois, uma ida à Santa Casa e a constatação de líquido no abdômen e a possibilidade de uma diverticulite ou questões do aparelho urinário.

Acionado, agendei atendimento com dr. Ravísio, urologista que nos atende desde 2016 em Prudente e responsável por meu pai ter saído com vida do HR. Seo Messias seria atendido no estacionamento da clínica, para não expô-lo à Covid, já que Prudente é a única região de São Paulo em fase vermelha de isolamento. Às 13h40 do dia 6 de janeiro, anteontem, meu pai desfaleceu em meus braços quanto tentávamos colocá-lo no carro e levá-lo a Prudente.

Minutos antes, quando cheguei à casa deles, deparei com nosso velhinho com um semblante que ainda não havia testemunhado nele. Os olhos azuis estavam baixos, o rosto, pálido. Pegou em minhas mãos e quando Gê perguntou "quem é ele?", não soube responder, o que era considerado normal, pois entre as sequelas da cirurgia de setembro de 2016, nas carótidas, estavam apagões momentâneos de memória, ora reconhecendo ora não reconhecendo as pessoas, mesmo as mais próximas.

Pegou em minhas mãos e, como sempre, mesmo não me reconhecendo, as alisou com as dele, em manifestação de carinho. Mal erguia os braços. Em um momento fixou os olhos em mim e assim ficou, ouvindo o que eu dizia: "tudo vai ficar bem, fique tranquilo". Dessa vez, contudo, seo Messias parecia não acreditar. Gê o chamou para sentar no sofá, erguermos suas calças de agasalho e irmos para o carro, mas ele não reagia. Em frações de segundos só passava pela minha cabeça uma estratégia para, sim, continuar driblando o fim, a que administrava havia anos.

A distância entre o sofá e o carro parecia quilométrica e eu já me dava conta de que não, não iríamos para Prudente. O correto era ir para a Santa Casa de Martinópolis. No entanto, quase com as pernas arrastadas por nós, seo Messias desmoronou. Começou a babar, não respondia nem respirava. O segurei nos braços e com auxílio de Gê o deitamos no sofá. Os olhos estavam paralisados, a dentadura ficou atravessada na boca, os braços renderam. Gê quase desmaiou e tive que intercalar socorrê-la e intervir no velhinho. Os olhos fecharam, mas, de repente, reabriram. De pálido ele retomou a pele corada, aos poucos movimentou as mãos, suficiente para acariciar minha mão e uma das cachorras de estimação.

Acionamos o Resgate, que chegou rápido. Na avaliação preliminar um dos três bombeiros chamou-me do lado e comunicou que os sinais vitais do velhinho estavam fracos demais. O imobilizaram e no transporte recomendaram que Gê fosse comigo de carro, e não na viatura. Meia quadra depois da saída a viatura parou por quase um minuto, e depois seguiu. Na chegada à Santa Casa, quando da abertura da ficha de paciente, o bombeiro chamou-me novamente, comunicou a necessidade de intervenção no meio do caminho. Seo Messias, quando adentrou de maca na emergência, encontrava-se com olhos fechados, imóvel.

Quarenta minutos depois, a jovem médica que o atendeu chamou a mim e Gê pela segunda vez. Na primeira, havia informado que a pressão arterial estava um pouco baixa mas que o preocupante eram os batimentos cardíacos, abaixo de 90. Como sou muito de comunicação visual entendi um semblante de preocupação por trás de todo um discurso que pedia tranquilidade a nós. No segundo diálogo, a confirmação de que a estratégia de driblar o fim havia cessado. Todas as tentativas foram feitas, disse a médica. Quando perguntamos o que aquilo queria dizer, a confirmação: "seo Messias não resistiu e faleceu".

Nesses momentos difíceis não sei de onde tiro forças para manter o equilíbrio, e dessa vez não fugi à minha própria regra. Gê desmoronou novamente e a própria médica emocionou-se. Dei a notícia usando o carregador de celular da médica, na sala dela. Um a um dos grupos de família de Whatsapp e meu irmão e minhas duas irmãs. Segurei firme, talvez ainda não entendendo a dimensão de que a aroeira havia cedido.

Nos permitiram fazer uma despedida imediatamente após a morte. O coração de meu pai parou de bater às 15h06. Às 15h30, depois de ir buscar Danielle no consultório odontológico onde atende, entramos os três na sala de enfermagem. O corpo estava coberto por lençol, estático. Debaixo, um rosto de quem repousava. Apenas a dentadura, de novo, ficara com uma parte para fora.

Inevitável pedirmos para ele acordar, abrir os olhos como sempre fez. Mas, não. Não tinha semblante de sofrimento, nem de tristeza. Parecia o mesmo seo Messias de sempre, quando dormia, com a boca em semblante de pessoa feliz que ele sempre foi.

Dialogando com a médica e as enfermeiras que tentaram mantê-lo vivo, a informação: morte por parada cardiorrespiratória. Ouvindo a minha narrativa desde o ocorrido na casa dele, a confirmação: o excesso de líquido no abdômen, associado inicialmente a uma diverticulite, na realidade devia-se a uma falência dos órgãos. O coração, enfraquecido, já não tinha mais condições de abastecer aos órgãos vitais, nem alimentar o sistema que oxigena o cérebro.

Todos, a partir de então, aprendemos com a morte. E a morte, não tenho dúvidas, aprendeu conosco através de seo Messias. Ela tentou levá-lo da forma como leva as demais pessoas que não a encaram. Mas meu pai a encarou por mais de 10 anos, e foi aroeira, como ele próprio definia, descartando ser eucalipto.

De tanto perder para meu pai e considerando a inevitável passagem humana final, a morte, como certificou a médica da Santa Casa, proporcionou uma partida sem dores. Seo Messias partiu dentro de um sono profundo e eterno, despedindo-se de nós sem que sequer pudéssemos nos preocupar. Sim, ele nos surpreendeu quando morreu, pois em ocasiões anteriores, muito piores, ele superou.

Nosso José Messias completaria 80 anos de idade no dia 15 de maio de 2021. Estávamos programando uma festa em família para ele, dentro das condições permitidas na pandemia, mas quando se tocava no assunto ele dizia que, primeiro, tinha a festa de aniversário do Cláudio, em fevereiro, recordando que em 2020 comemoramos meus 50 anos em uma chácara alugada de meu amigo Fernando, em Assis, ocasião em que ele, Gê, Dani, Gabriel e o pequeno Enrico aqui estiveram, última ocasião, antes da pandemia, em que parte da família esteve reunida com o velhinho.

Com toda essa experiência, ao longo de 10 anos de luta pela vida, aprendi muitas coisas importantes para fazer prevalecer a vida, mas, igualmente, coisas importantes para administrar melhor a morte. Por exemplo, desconhecia trâmites relacionados velório, sepultamento e documentação para liberação de corpo. Sempre que vamos a velórios vemos a estrutura pronta e, assim, teorizamos o que seja essa vivência. Até nisso a morte nos afeta, pois precisamos deixar a dor da perda de lado e encarar a burocracia da vida civil.

Estamos, sim, todos/as de passagem nessa vida. Se me perguntarem o que seja a vida não tenho dúvidas na resposta: viver é ter boa relação com a morte. Bobagem extrema discutir o início e o fim, ou seja, de onde viemos e para onde vamos após a morte. O simples fato de sabermos que não seremos eternos nos faz colocar a morte como companheira desde o início da vida.

Quando fiz minha cirurgia cardíaca em 2015 tive uma recaída 90 dias depois, já estando em Campina Grande, de volta ao trabalho. No Hospital João XXIII ouvi de um cardiologista algo que é duro, dói nos ouvidos, mas, quando aprendemos a lidar na relação com a morte, entendemos como sabedoria das ciências da saúde: quando nascemos, temos nosso prazo de validade pré-determinado pela nossa natureza humana. A medicina, pois, intervém para que essa regra natural seja quebrada.

O que o médico quis dizer é que eu, aos 45 anos de idade, deveria estar morto. A cardiologia, contudo, fez uma intervenção que me deu uma sobrevida. A lei da natureza estava, assim, contrariada. Se o coração estava consertado, os demais instrumentos da orquestras continuavam desgastados. Não era, pois, para eu ter muita esperança com planos que ultrapassassem os próximos 15 ou 20 anos.

Já se passaram 6 anos, ou 1/4 dessa previsão fatalista. Mal sabe a medicina que aprendi com meu pai a negociar com a morte. Uma interação familiar em que traçamos nossas estratégias para chegar ao limite da possibilidade de existência. Ela, morte, vai entender. E que permita a todos que a encaram uma partida tão serena como foi a de seo Messias, o meu guerreiro de maior respeito.


* Professor universitário, historiador, doutor em Ciências da Comunicação pela ECA/USP.