04 Maio 2012
Cláudio
Messias*
Houve um
tempo em que Assis tinha a rotina regida por um apito. Um som mecânico que
ecoava cidade e campo afora, hermeticamente, de segunda a sexta-feira. Pessoas
nasciam, cresciam, viviam, conviviam com aquele barulho que, tal qual os sinos
das igrejas, incomodam alguns, agradavam a outros, não cheiram nem fedem a
muitos ou poucos. Não eram poucas, contudo, as pessoas que, confortadas ou
incomodadas com o som marcado, o utilizavam consciente ou inconscientemente nos
afazeres diários.
O tal
apito é uma das marcas da era industrial. Na TV mesmo a animação Os Flintstones recorria a esse recurso
sonoro não apenas na trilha de abertura, mas para caracterizar o período do dia
de trabalho em que o personagem principal, o comilão Fred, saía para o almoço
deslizando sobre o pescoço do dinossauro em que ‘trabalhava’. No cinema esse
apito era a vapor. Em Assis, acionado com dispositivo elétrico. Em ambos os
casos, marcando horários de labuta.
Sou filho
e neto de ferroviários. Meu pai trabalhou na ‘soca’, ou seja, na manutenção ou
implantação das linhas férreas da antiga Estrada de Ferro Sorocabana, depois
chamada de Fepasa e, hoje, de América Latina Logística. Até os 21 anos de idade
convivi com a realidade de acordar às segundas-feiras, por mais cedo que fosse,
já sem meu pai em casa, vendo-o retornar às sextas-feiras no final da tarde.
Ou, então, quando tínhamos o privilégio de tê-lo trabalhando no trecho de
Assis, vendo-o chegar diariamente aos finais de tarde.
Minha vida
de assisense, já disse aqui, sempre desenrolou nas imediações do Buracão. Até
1977 residíamos na mesma rua Santos Dumont, mas a uma quadra do Assis Tênis
Clube. Era praticamente impossível encontrar uma casa para alugar ou comprar na
Vila Operária, a vila dos ferroviários. O que dava financeiramente para o
momento, então, era morar do outro lado do Buracão.
Nossa casa
estava, em linha reta, a uns 500 metros do depósito da Fepasa. Depois de
Botucatu, Assis tinha a principal central de manutenção de locomotivas da
Sorocabana. Também findava aqui a rede elétrica que vinha desde Santos,
passando pela Júlio Prestes, na capital, e Botucatu. Ou seja, um trem que saía
do porto de Santos vinha, elétrico, até Assis. Aqui, a locomotiva elétrica era
desengatada da composição e dava lugar a outra, movida a diesel. Essa manobra,
como era chamada a operação, durava em média meia hora e permitia que, no caso
de composição de passageiros, todos descessem e consumissem nos bares e
lanchonetes dos arredores.
No
depósito da Fepasa estava o apito. Há inúmeros mitos, lendas e contos que,
relacionados ao tema, merecem outro texto específico, tamanha delonga demandada
pelo ambiente onde estava instalado o mecanismo. Na minha infância o comentário
geral, especulado, focava sobre a dúvida: quem acionava o apito? Tinha de ser uma
pessoa extremamente controlada, pois dificilmente o apito falhava. Digo
dificilmente porque, sim, algumas vezes o apito, com o perdão da redundância,
não apitava.
Minha mãe
era lavadeira. Até hoje ela recorda-se daquela que foi a melhor amiga que já
teve. Marta morava na casa do terreno de cima, à direita da nossa. As duas
amigas, aos finais das manhãs, postavam-se na cerca de madeira para conversar
sobre novela, programa de rádio, enfim, das futilidades e utilidades da vida. A
prosa era interrompida com o apito das 11h00. Sim, o depósito ‘apitava’ lá na
vila Operária e anunciava que era hora de preparar o almoço. Um dia, contudo, o
apito falhou. Interrupção no fornecimento de energia elétrica do depósito. As
duas amigas continuaram a conversa e estranharam o sol quente. Passava de
meio-dia e os apitos das 11h30 e 12h00 também falharam. Resultado: crianças
(oba!) faltando à escola e a rotina doméstica toda atropelada.
O som do
apito, eu já disse, era hermético. Vou relacionar aqueles de que me recordo,
comprometendo-me, nos textos vindouros, a corrigir equívocos ou acrescentar
horários faltantes: 6h30; 6h55; 7h00; 10h30; 10h55; 11h00; 11h30; 12h00; 16h45;
17h00. Eram horários de fechamento e abertura de turnos de trabalhos dos
ferroviários. E coincidiam com a rotina da comunidade em geral.
Minha
falecida avó paterna, Florcela, contava que na Água da Tempestade, onde meu pai
nasceu, o som da explosão das pedras tinha a mesma função que o apito exercia
na cidade. As dinamites eram acionadas, na pedreira Silva, às 11h00 e às 16h00.
Tais explosões, portanto, serviam de referencial para o almoço e o fim da
jornada de um dia de trabalho de quem estava no campo, ou seja, 70% da
população regional, conforme números do IBGE (hoje ocorre o inverso, pois
somente 27% da população está na zona rural).
Recordo
dessas histórias para meus filhos e vejo nos olhos deles um ar de desconfiança.
Ambos têm 16 e 14 anos de idade e pertencem à geração dos nativos digitais,
nascidos incorporados à tecnologia. E desconfiam, claro, da lenda urbana
advinda de vivências de 35 ou 40 anos atrás. Difícil para essa geração
acreditar que leite e pão eram entregues em casa por carroceiros. Ouvem as piadas
de que fulano ou beltrano podem ser filhos do ‘padeiro’, mas não concebem que
tal suposta fecundação não teria ocorrido na padaria, mas, sim, na própria casa
do bastardo. Conto que a carroça do leite era branca e a do pão, verde. O leite
vinha em litro de vidro ou, depois, nos revolucionários saquinhos plásticos que
estampavam a data de vencimento carimbada. O pão era chamado de pão-de-sabão,
denominação sucedida por bengala. Tudo isso, no portão de casa, onde ficavam,
também, as fezes dos cavalos que traziam tais alimentos. E lá íamos nós,
filhos, catar a bosta e jogar no terreno baldio da frente. Ainda bem que era
bosta em forma de rolinho, raramente mole.
Padeiro e
leiteiro tinham uma caderneta, documento que minha mãe assinava diariamente,
confirmando a entrega das mercadorias. No papel, lembro-me, havia a
especificação do horário em que leite e pão, no compromisso comercial dos
mediadores, seriam entregues. No nosso caso, “entre o apito das 6h30 e das
7h00”. Leite e pão fresquinhos para o café da manhã de uma família que estava
em pé às 7h00, despertada pelo apito.
Eu e meus
irmãos saíamos para brincar em expedições Buracão adentro. Jurávamos à nossa
mãe que não entraríamos na voçoroca. Oh, mãe, me perdoe, pois, hoje sei, filhos
mentem quando criança. Falávamos que íamos para o lado de cima das imediações
do Assis Tênis Clube, mas, na realidade, cinco minutos depois estávamos
descendo pelas ‘escadas’ improvisadas na barranca do Buracão. Eram paredões que
chegavam a 4 metros de altura. E o que tinha lá embaixo? Nada. Só lama, mato e
animais mortos. O barato, mesmo, era vencer o perigo do tão temido Buracão. E
conseguir voltar sem que o paredão desmoronasse sobre nós. É... não tínhamos
consciência sobre as razões que levavam à fama do Buracão como sendo uma ameaça
à segurança coletiva.
Nossas
saídas de casa para brincar, seja no Buracão, seja na rua, eram autorizadas
para o período entre as 8h00 e... o apito das 11h00. Deveres de casa feitos,
podíamos brincar à vontade. Que deveres eram esses? Varrer o quintal, colocar
as folhas em uma bacia de alumínio velha e carregar tudo até onde? O Buracão.
Era feio jogar aquele entulho no terreno do vizinho. Mas não era feio entupir
ainda mais o Buracão de sujeira, que ao final do dia era queimada e fazia subir
uma fumaça que caracterizava o ‘cheiro’ do ar aos finais de tarde.
No apito
das 11h30 tínhamos de estar de banho tomado. E o apito do meio-dia significava
almoço no estômago e saída para a escola. Chegávamos cedo ao Instituto, ou
seja, no Clybas, e, nenhuma novidade, até o sinal de entrada já estávamos
suados e muitas vezes com o uniforme sujo. O som do último apito do depósito,
das 17h00, fazia gerar um friozinho na barriga. Falta só meia hora para acabar
a aula e, dependendo da época do ano, poderia sobrar algum tempo para chegar em
casa e, antes do banho, brincar um pouco mais na rua.
Essa
dependência orgânica do som artificial como regulador do tempo perdurava,
perdura. Recordo-me que jantávamos com o som, ao fundo, da trilha de abertura,
de intervalos comerciais ou de encerramento da novela Escrava Isaura. Eu tinha
medo de Leôncio e, portanto, não via a novela. Mas sabia de tudo sobre aquela
ficção, nas narrativas de minha mãe com a vizinha, Marta. E quando ouvia-se a
trilha do Jornal Nacional era hora, veja só, de voltar para casa e dormir. Pois
é... íamos para a cama antes das 21h00. Daí a explicação do por quê de, se meu
sono falhasse e eu perdesse o apito das 6h30, com certeza estaria de olhos
abertos e fora da cama no apito das 7h00.
Com a
privatização da Fepasa, o apito do depósito foi desligado. Uns dizem que, com a
aposentadoria do funcionário cuja função, entre outras, era dar manutenção ao
instrumento, o apito calou-se em 1997. Mas, de lá para cá, exatamente em 2003 o
apito ecoou Médio Vale afora (podia-se ouvi-lo, quando na ativa, no Horto
Florestal). Estava eu aqui em casa, ouvi aquilo e pensei que fosse alucinação.
Logo depois, outra vez, o apito. Não era coisa de outro mundo.
Numa
tentativa vã, a Secretaria Municipal da Indústria e Comércio, dentro do projeto
de revitalização do depósito, ensaiou reativar o apito. De local de
concentração de dezenas de ferroviários cujos jalecos eram repletos de graxa,
aquele ambiente foi transformado em uma incubadora de empresas. Talvez a função
do apito já não se enquadrasse ao perfil de indústria de transformação que a
partir de então assumiu aquele espaço.
Minha avó
morreu aos 82 anos de idade e nos últimos meses em vida comentava sobre a
carroça, em disparada, que passava em frente à casa, aqui na Santos Dumont, às
4 horas da madrugada. Todos os dias. Algumas vezes, narrava ela, era possível
ouvir o carroceiro tentando controlar o cavalo. O que acordava a anciã era o
choque das rodas de madeira e ferro com as pedras da rua. Cruzamento do imaginário
de uma octogenária cuja rua já estava asfaltada.
Quero eu
que o tempo também passe e as lembranças do presente, de hoje, representem
daqui a 40 anos um imaginário tão rico como o de minha avó e meus pais, ainda
vivos. Será com bom grado, pois, que ouvirei, às 6h30, o apito do depósito.
Sabendo, claro, que o fim definitivo do turno está por vir.
*
Jornalista, historiador, mestre em Ciências da Comunicação pela ECA/USP e
professor universitário.
FISCALIZAÇÃO ELETRÔNICA
EM ALTA –
Meu amigo Vágner Stautt comemora os 23% de aumento nas vendas no setor de moda
íntima feminina no mês de abril. Isso, em comparação com igual período do ano
passado. No primeiro quadrimestre de 2012 o comerciante registrou alta em todos
os meses.
EM BAIXA –
A Segunda Divisão do Campeonato Paulista começa neste final de semana. O Clube
Atlético Assisense não foi inscrito pela Federação Paulista de Futebol e,
assim, Assis fica sem representante. Os representantes mais próximos são o Tupã
e o Grêmio Prudente.
PROJETO –
Presidente Prudente conta com a gestão de Antônio Carlos e Adriano Gerlim para,
com o Grêmio Prudente, retornar à Série A1. Respectivamente, o ex-zagueiro de
Palmeiras, Santos e São Paulo e o ex-lateral do São Paulo estão investindo no
projeto. Adriano, além de dirigente, inscreveu-se como atleta e atuará nos
gramados. A marca Grêmio Prudente é monitorada pela 9ine, de Ronaldo.
BUGRINO –
O empresário Carlinhos ‘da Trevo’ está satisfeito com a classificação do
Guarani para a final do Campeonato Paulista contra o Santos. Um de seus filhos,
assim, torna-se efetivo na comissão técnica do clube de Campinas.
PARADA –
Um agente imobiliário da cidade foi consultado sobre a disponibilidade de venda
de um tradicional posto de combustíveis situado na rodovia Raposo Tavares. De
olho na completa duplicação até Presidente Prudente, a rede Graal está
ampliando os investimentos.
REVITALIZAÇÃO
– O Mercadão voltando às origens, com as características do gênero que o
consagrou? É a proposta de uma comissão que começa a ser montada, com vistas à
alteração no Terminal Urbano.
SEM VOLTA
– O espaço antes ocupado pela Andorinha nas imediações do Mercadão está
definitivamente fora dos planos da empresa.
BRASILIDADE
– Recebo a visita de meu amigo Adílson ‘Alemão’, que trabalha em Frankfurt, na
Alemanha. O assisense vem à terrinha nas férias. Desta vez, demonstra
preocupação ainda maior com crimes que, cada vez mais bárbaros, mancham a
imagem do Brasil no Exterior. É o caso da chacina de Goiás, que dias atrás
vitimou a família inteira de um fazendeiro, não poupando amigos e o caseiro,
todos degolados.
FORA DO AR
– Fui à Cabonnet pagar pelos serviços e perguntei sobre a ausência, na grade de
canais da operadora, do canal ESPN HD. Lamentei não ter podido ver o clássico
espanhol Barcelona 0 x 2 Real Madrid, transmitido pela ESPN HD. Qual surpresa,
ouvi da interlocutora uma resposta em forma de pergunta: “esse canal existe?”.
Mal, muito mal.
ESTIAGEM –
A chuva mais recente registrada no Médio Vale caiu dia 1º de maio. E começa o
plantio da safra de inverno. Recomendação: cautela, pois essa segunda metade do
outono abrirá um dos invernos mais secos dos últimos anos.
PERGUNTINHA
BÁSICA
Você
consegue encontrar sua lista telefônica, impressa, nos próximos 60 segundos?
Um comentário :
Que lindo mesmo seu texto! Memórias... embora não pertencente à sua região, os dados me são tão familiares, coisas que a lembrança guarda, discretamente, num cantinho qualquer... doces lembranças que se mesclam a sonhos! Sim , o apito! O tempo!
Postar um comentário