terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Eu quero o “apito do depósito da Fepasa” de volta, para compensar o não retorno do tempo


04 Maio 2012


Cláudio Messias*

Houve um tempo em que Assis tinha a rotina regida por um apito. Um som mecânico que ecoava cidade e campo afora, hermeticamente, de segunda a sexta-feira. Pessoas nasciam, cresciam, viviam, conviviam com aquele barulho que, tal qual os sinos das igrejas, incomodam alguns, agradavam a outros, não cheiram nem fedem a muitos ou poucos. Não eram poucas, contudo, as pessoas que, confortadas ou incomodadas com o som marcado, o utilizavam consciente ou inconscientemente nos afazeres diários.

O tal apito é uma das marcas da era industrial. Na TV mesmo a animação Os Flintstones recorria a esse recurso sonoro não apenas na trilha de abertura, mas para caracterizar o período do dia de trabalho em que o personagem principal, o comilão Fred, saía para o almoço deslizando sobre o pescoço do dinossauro em que ‘trabalhava’. No cinema esse apito era a vapor. Em Assis, acionado com dispositivo elétrico. Em ambos os casos, marcando horários de labuta.

Sou filho e neto de ferroviários. Meu pai trabalhou na ‘soca’, ou seja, na manutenção ou implantação das linhas férreas da antiga Estrada de Ferro Sorocabana, depois chamada de Fepasa e, hoje, de América Latina Logística. Até os 21 anos de idade convivi com a realidade de acordar às segundas-feiras, por mais cedo que fosse, já sem meu pai em casa, vendo-o retornar às sextas-feiras no final da tarde. Ou, então, quando tínhamos o privilégio de tê-lo trabalhando no trecho de Assis, vendo-o chegar diariamente aos finais de tarde.

Minha vida de assisense, já disse aqui, sempre desenrolou nas imediações do Buracão. Até 1977 residíamos na mesma rua Santos Dumont, mas a uma quadra do Assis Tênis Clube. Era praticamente impossível encontrar uma casa para alugar ou comprar na Vila Operária, a vila dos ferroviários. O que dava financeiramente para o momento, então, era morar do outro lado do Buracão.

Nossa casa estava, em linha reta, a uns 500 metros do depósito da Fepasa. Depois de Botucatu, Assis tinha a principal central de manutenção de locomotivas da Sorocabana. Também findava aqui a rede elétrica que vinha desde Santos, passando pela Júlio Prestes, na capital, e Botucatu. Ou seja, um trem que saía do porto de Santos vinha, elétrico, até Assis. Aqui, a locomotiva elétrica era desengatada da composição e dava lugar a outra, movida a diesel. Essa manobra, como era chamada a operação, durava em média meia hora e permitia que, no caso de composição de passageiros, todos descessem e consumissem nos bares e lanchonetes dos arredores.

No depósito da Fepasa estava o apito. Há inúmeros mitos, lendas e contos que, relacionados ao tema, merecem outro texto específico, tamanha delonga demandada pelo ambiente onde estava instalado o mecanismo. Na minha infância o comentário geral, especulado, focava sobre a dúvida: quem acionava o apito? Tinha de ser uma pessoa extremamente controlada, pois dificilmente o apito falhava. Digo dificilmente porque, sim, algumas vezes o apito, com o perdão da redundância, não apitava.

Minha mãe era lavadeira. Até hoje ela recorda-se daquela que foi a melhor amiga que já teve. Marta morava na casa do terreno de cima, à direita da nossa. As duas amigas, aos finais das manhãs, postavam-se na cerca de madeira para conversar sobre novela, programa de rádio, enfim, das futilidades e utilidades da vida. A prosa era interrompida com o apito das 11h00. Sim, o depósito ‘apitava’ lá na vila Operária e anunciava que era hora de preparar o almoço. Um dia, contudo, o apito falhou. Interrupção no fornecimento de energia elétrica do depósito. As duas amigas continuaram a conversa e estranharam o sol quente. Passava de meio-dia e os apitos das 11h30 e 12h00 também falharam. Resultado: crianças (oba!) faltando à escola e a rotina doméstica toda atropelada.

O som do apito, eu já disse, era hermético. Vou relacionar aqueles de que me recordo, comprometendo-me, nos textos vindouros, a corrigir equívocos ou acrescentar horários faltantes: 6h30; 6h55; 7h00; 10h30; 10h55; 11h00; 11h30; 12h00; 16h45; 17h00. Eram horários de fechamento e abertura de turnos de trabalhos dos ferroviários. E coincidiam com a rotina da comunidade em geral.

Minha falecida avó paterna, Florcela, contava que na Água da Tempestade, onde meu pai nasceu, o som da explosão das pedras tinha a mesma função que o apito exercia na cidade. As dinamites eram acionadas, na pedreira Silva, às 11h00 e às 16h00. Tais explosões, portanto, serviam de referencial para o almoço e o fim da jornada de um dia de trabalho de quem estava no campo, ou seja, 70% da população regional, conforme números do IBGE (hoje ocorre o inverso, pois somente 27% da população está na zona rural).

Recordo dessas histórias para meus filhos e vejo nos olhos deles um ar de desconfiança. Ambos têm 16 e 14 anos de idade e pertencem à geração dos nativos digitais, nascidos incorporados à tecnologia. E desconfiam, claro, da lenda urbana advinda de vivências de 35 ou 40 anos atrás. Difícil para essa geração acreditar que leite e pão eram entregues em casa por carroceiros. Ouvem as piadas de que fulano ou beltrano podem ser filhos do ‘padeiro’, mas não concebem que tal suposta fecundação não teria ocorrido na padaria, mas, sim, na própria casa do bastardo. Conto que a carroça do leite era branca e a do pão, verde. O leite vinha em litro de vidro ou, depois, nos revolucionários saquinhos plásticos que estampavam a data de vencimento carimbada. O pão era chamado de pão-de-sabão, denominação sucedida por bengala. Tudo isso, no portão de casa, onde ficavam, também, as fezes dos cavalos que traziam tais alimentos. E lá íamos nós, filhos, catar a bosta e jogar no terreno baldio da frente. Ainda bem que era bosta em forma de rolinho, raramente mole.

Padeiro e leiteiro tinham uma caderneta, documento que minha mãe assinava diariamente, confirmando a entrega das mercadorias. No papel, lembro-me, havia a especificação do horário em que leite e pão, no compromisso comercial dos mediadores, seriam entregues. No nosso caso, “entre o apito das 6h30 e das 7h00”. Leite e pão fresquinhos para o café da manhã de uma família que estava em pé às 7h00, despertada pelo apito.

Eu e meus irmãos saíamos para brincar em expedições Buracão adentro. Jurávamos à nossa mãe que não entraríamos na voçoroca. Oh, mãe, me perdoe, pois, hoje sei, filhos mentem quando criança. Falávamos que íamos para o lado de cima das imediações do Assis Tênis Clube, mas, na realidade, cinco minutos depois estávamos descendo pelas ‘escadas’ improvisadas na barranca do Buracão. Eram paredões que chegavam a 4 metros de altura. E o que tinha lá embaixo? Nada. Só lama, mato e animais mortos. O barato, mesmo, era vencer o perigo do tão temido Buracão. E conseguir voltar sem que o paredão desmoronasse sobre nós. É... não tínhamos consciência sobre as razões que levavam à fama do Buracão como sendo uma ameaça à segurança coletiva.

Nossas saídas de casa para brincar, seja no Buracão, seja na rua, eram autorizadas para o período entre as 8h00 e... o apito das 11h00. Deveres de casa feitos, podíamos brincar à vontade. Que deveres eram esses? Varrer o quintal, colocar as folhas em uma bacia de alumínio velha e carregar tudo até onde? O Buracão. Era feio jogar aquele entulho no terreno do vizinho. Mas não era feio entupir ainda mais o Buracão de sujeira, que ao final do dia era queimada e fazia subir uma fumaça que caracterizava o ‘cheiro’ do ar aos finais de tarde.

No apito das 11h30 tínhamos de estar de banho tomado. E o apito do meio-dia significava almoço no estômago e saída para a escola. Chegávamos cedo ao Instituto, ou seja, no Clybas, e, nenhuma novidade, até o sinal de entrada já estávamos suados e muitas vezes com o uniforme sujo. O som do último apito do depósito, das 17h00, fazia gerar um friozinho na barriga. Falta só meia hora para acabar a aula e, dependendo da época do ano, poderia sobrar algum tempo para chegar em casa e, antes do banho, brincar um pouco mais na rua.

Essa dependência orgânica do som artificial como regulador do tempo perdurava, perdura. Recordo-me que jantávamos com o som, ao fundo, da trilha de abertura, de intervalos comerciais ou de encerramento da novela Escrava Isaura. Eu tinha medo de Leôncio e, portanto, não via a novela. Mas sabia de tudo sobre aquela ficção, nas narrativas de minha mãe com a vizinha, Marta. E quando ouvia-se a trilha do Jornal Nacional era hora, veja só, de voltar para casa e dormir. Pois é... íamos para a cama antes das 21h00. Daí a explicação do por quê de, se meu sono falhasse e eu perdesse o apito das 6h30, com certeza estaria de olhos abertos e fora da cama no apito das 7h00.

Com a privatização da Fepasa, o apito do depósito foi desligado. Uns dizem que, com a aposentadoria do funcionário cuja função, entre outras, era dar manutenção ao instrumento, o apito calou-se em 1997. Mas, de lá para cá, exatamente em 2003 o apito ecoou Médio Vale afora (podia-se ouvi-lo, quando na ativa, no Horto Florestal). Estava eu aqui em casa, ouvi aquilo e pensei que fosse alucinação. Logo depois, outra vez, o apito. Não era coisa de outro mundo.

Numa tentativa vã, a Secretaria Municipal da Indústria e Comércio, dentro do projeto de revitalização do depósito, ensaiou reativar o apito. De local de concentração de dezenas de ferroviários cujos jalecos eram repletos de graxa, aquele ambiente foi transformado em uma incubadora de empresas. Talvez a função do apito já não se enquadrasse ao perfil de indústria de transformação que a partir de então assumiu aquele espaço.

Minha avó morreu aos 82 anos de idade e nos últimos meses em vida comentava sobre a carroça, em disparada, que passava em frente à casa, aqui na Santos Dumont, às 4 horas da madrugada. Todos os dias. Algumas vezes, narrava ela, era possível ouvir o carroceiro tentando controlar o cavalo. O que acordava a anciã era o choque das rodas de madeira e ferro com as pedras da rua. Cruzamento do imaginário de uma octogenária cuja rua já estava asfaltada.

Quero eu que o tempo também passe e as lembranças do presente, de hoje, representem daqui a 40 anos um imaginário tão rico como o de minha avó e meus pais, ainda vivos. Será com bom grado, pois, que ouvirei, às 6h30, o apito do depósito. Sabendo, claro, que o fim definitivo do turno está por vir.

* Jornalista, historiador, mestre em Ciências da Comunicação pela ECA/USP e professor universitário.



FISCALIZAÇÃO ELETRÔNICA


EM ALTA – Meu amigo Vágner Stautt comemora os 23% de aumento nas vendas no setor de moda íntima feminina no mês de abril. Isso, em comparação com igual período do ano passado. No primeiro quadrimestre de 2012 o comerciante registrou alta em todos os meses.

EM BAIXA – A Segunda Divisão do Campeonato Paulista começa neste final de semana. O Clube Atlético Assisense não foi inscrito pela Federação Paulista de Futebol e, assim, Assis fica sem representante. Os representantes mais próximos são o Tupã e o Grêmio Prudente.

PROJETO – Presidente Prudente conta com a gestão de Antônio Carlos e Adriano Gerlim para, com o Grêmio Prudente, retornar à Série A1. Respectivamente, o ex-zagueiro de Palmeiras, Santos e São Paulo e o ex-lateral do São Paulo estão investindo no projeto. Adriano, além de dirigente, inscreveu-se como atleta e atuará nos gramados. A marca Grêmio Prudente é monitorada pela 9ine, de Ronaldo.

BUGRINO – O empresário Carlinhos ‘da Trevo’ está satisfeito com a classificação do Guarani para a final do Campeonato Paulista contra o Santos. Um de seus filhos, assim, torna-se efetivo na comissão técnica do clube de Campinas.

PARADA – Um agente imobiliário da cidade foi consultado sobre a disponibilidade de venda de um tradicional posto de combustíveis situado na rodovia Raposo Tavares. De olho na completa duplicação até Presidente Prudente, a rede Graal está ampliando os investimentos.

REVITALIZAÇÃO – O Mercadão voltando às origens, com as características do gênero que o consagrou? É a proposta de uma comissão que começa a ser montada, com vistas à alteração no Terminal Urbano.

SEM VOLTA – O espaço antes ocupado pela Andorinha nas imediações do Mercadão está definitivamente fora dos planos da empresa.

BRASILIDADE – Recebo a visita de meu amigo Adílson ‘Alemão’, que trabalha em Frankfurt, na Alemanha. O assisense vem à terrinha nas férias. Desta vez, demonstra preocupação ainda maior com crimes que, cada vez mais bárbaros, mancham a imagem do Brasil no Exterior. É o caso da chacina de Goiás, que dias atrás vitimou a família inteira de um fazendeiro, não poupando amigos e o caseiro, todos degolados.

FORA DO AR – Fui à Cabonnet pagar pelos serviços e perguntei sobre a ausência, na grade de canais da operadora, do canal ESPN HD. Lamentei não ter podido ver o clássico espanhol Barcelona 0 x 2 Real Madrid, transmitido pela ESPN HD. Qual surpresa, ouvi da interlocutora uma resposta em forma de pergunta: “esse canal existe?”. Mal, muito mal.

ESTIAGEM – A chuva mais recente registrada no Médio Vale caiu dia 1º de maio. E começa o plantio da safra de inverno. Recomendação: cautela, pois essa segunda metade do outono abrirá um dos invernos mais secos dos últimos anos.

PERGUNTINHA BÁSICA
Você consegue encontrar sua lista telefônica, impressa, nos próximos 60 segundos?


Um comentário :

Silvia disse...

Que lindo mesmo seu texto! Memórias... embora não pertencente à sua região, os dados me são tão familiares, coisas que a lembrança guarda, discretamente, num cantinho qualquer... doces lembranças que se mesclam a sonhos! Sim , o apito! O tempo!