terça-feira, 21 de abril de 2015

MORDAÇA - O devido respeito que a imprensa merece

Cláudio Messias*

Eu havia acabado de chegar a Marília, mais uma das cidades por onde frequentei redações da vida. O ano era 2000 e ainda havia facções de pessoas enfim tranquilizadas porque (i) o mundo não havia acabado na virada do milênio e (ii) o tal do bug dos computadores não passara de mais uma piada dessas que alguém inventa sem muitas intenções mas ganha proporções universais a partir da ignorância cultural da maioria.

Minha rotina na cidade dos belos vales, de Dirceu, era sacrificante. Durante o dia cumpria horário na redação do Jornal da Manhã, entrando às 9h00 e saindo quando a pauta permitisse ou virasse o ponteiro das 20 horas. Noite sim, noite não, eu cumpria expediente na Penitenciária de Marília, onde era agente de ressocialização, nome bonito que as políticas dão para os agentes penitenciários, também chamados por parte da imprensa de, equivocadamente, carcereiros. Sim, por três anos e meio fui agente em um presídio, dentro de um projeto pessoal de ficar, por lá, cinco anos. Ainda crio coragem e, nesse Blog, relato essa experiência e o por quê de reduzir em um ano e meio meu projeto de jornalista metido a besta num presídio.

Tem razão quem fez as contas e concluiu que eu, naqueles anos iniciais de 2000, dormia noite sim, noite não. Mas, durante o dia, assinava o livro de ponto de segunda a sábado. Sim, quando se tem entre 30 e 33 anos de idade há fôlego de sobra para determinadas aventuras da vida. Jornalista, pois, contraria baboseiras como a definição de Idade do Lobo e, ao contrário de uma faixa etária em que se sai à caça de tudo, os profissionais de imprensa estão, nessa altura da vida, no auge da maturidade de suas práxis, colhendo os frutos do que pode ser entendido como credibilidade de seus currículos de vida. Não ficam ricos, pois essa é a função de seus nada éticos patrões e editores, mas têm uma ampla carteira de contatos que permite chegar à pauta pelos atalhos diretos.

E naquela manhã de março de 2000 estávamos eu e o fotógrafo Alexandre Lourenção no Uno cinza do JM, circulando pelo centro de Marília, quando deparamos com uma equipe da Sucen, em parceria com o Corpo de Bombeiros, fazendo serviços nos telhados do Shopping Alto Cafezal. Pedi as fotos a Alexandre e entrevistei o agente sanitário responsável pelo serviço, bem como um lojista do shopping e o comandante do Corpo de Bombeiros. Pauta espontânea cumprida, fechamos as coletas de informações da manhã e voltamos para a redação, para o período de almoço que ia de meio-dia às 14 horas.

No retorno do almoço fui chamado pelo editor até o 'aquário', denominação que dávamos para a sala, feita de divisórias e vidro, onde ficava o mediador entre os interesses políticos e econômicos do jornal e o comportamento produtivo da redação. Havia um rapaz com o editor na sala, e logo soube que era o responsável pela agência de comunicação que tinha a conta publicitária do Shopping Alto Cafezal. E o diálogo entre as três partes ali, na sala do editor, tinha por objetivo decidir se a reportagem feita no período da manhã, a ação conjunta de Sucen e Corpo de Bombeiros, poderia sair na edição do dia seguinte.

O editor, sempre mediador, ouvia do publicitário que eventual divulgação da ação contra a dengue no shopping poderia causar danos à imagem do empreendimento. Eu, de minha parte, discursei que foram ouvidas todas as partes envolvidas e que não se tratava de denúncia, mas de registro de uma ação que foi vista por centenas de pessoas, já que os bombeiros, para colocar agentes sanitários em segurança no telhado, desentupir calhas e tapar uma caixa d´água que estava exposta, utilizaram a escada magirus, que, convenhamos, não é nada discreta. Ao contrário do publicitário, eu entendia que aquela divulgação agregaria positivamente para o shopping, uma vez que demonstrava a colaboração do empreendimento na campanha contra uma doença que historicamente abate Marília nessa época do ano.

Ouvidas as duas partes, o editor encerrou a conversa sem nada decidir. Voltei para a redação justamente para escrever aquela matéria, enquanto o publicitário aproveitou a ida ao jornal para dar a tradicional passadinha no departamento comercial. Assim, sabendo da preocupação do setor de comunicação do shopping, tive a cautela de deixar claro que a ação de bombeiros e agentes sanitários era positiva e que, portanto, ao menos os frequentadores do shopping estavam livres de ameaças de pontos criadouros do mosquito aedes aegypti. Era uma das cinco reportagens que tínhamos de entregar diariamente ao editor e, cumprida essa missão, fui, às 17h30, para meu segundo plantão de trabalho.

Na penitenciária de Marília eu cumpria horário até as 6h00. Saía, na realidade, às 6h30, pois o turno de trabalho que entrava tinha de fazer a contagem da população carcerária, de maneira que o turno que saía não era liberado enquanto o número de presos 'recebido' às 18 horas do dia anterior não conferisse com o número de detentos enclausurados às 6h00 seguinte. Eu chegava na república que dividia com amigos, também funcionários do presídio, por volta de 7h00. Trocava a roupa e, para driblar o sono e o cansaço, saía para dar caminhada de uma hora nas avenidas marginais da Rodovia do Contorno. Banho, café da manhã reforçado na padaria Orly e por volta de 8h45 eu estava na recepção do jornal, onde pegava meu exemplar a que tinha direito.

Na redação, esperando que o computador Penthium II, 100 MHZ, ligasse, folheei as páginas da edição do dia, mas estranhei logo de cara. Não havia chamada nem foto para a reportagem que eu havia feito sobre a ação contra o aedes aegypti no Shopping Alto Cafezal. Virei todas as páginas, e nada. O que havia era uma texto minúsculo sobre o mesmo assunto, mas em nada condizente ao que eu havia escrito. Não precisei ir ao editor mediador para perguntar sobre o ocorrido, nem ele, como é peculiar de sua personalidade, justificou o ocorrido. É fato, apenas, que minha reportagem foi barrada e, no lugar da pauta, saiu um fraco e ridículo texto em que o shopping, via assessoria de comunicação, dizia ser solidário à campanha contra a dengue em Marília.

Isso tudo aconteceu em março de 2000. Quinze anos se passaram e desde então muita coisa mudou. Fui demitido do Jornal da Manhã em junho de 2003 (quatro meses depois de exonerar no cargo de agente penitenciário) por conflito direto com o editor mediador, a quem felizmente nunca mais reencontrei pessoalmente. Um mês depois eu estava novamente empregado e conciliando trabalho e estudos para o vestibular que, na Unesp, fez-me transitar da carreira de jornalista para a de professor, primeiro de ensinos fundamental e médio e, agora, do ensino superior público. Três anos depois de minha saída de Marília passei pelas imediações do Shopping Alto Cafezal e deparei com as portas principais fechadas. O empreendimento havia finalizado as atividades, com os comentários, na cidade, de que não suportou a concorrência vinda do golpe de misericórdia, comercial, chamado Esmeralda Shopping, recém inaugurado. E Marília, não é de hoje, carrega a imagem de cidade do Oeste Paulista com epidemias anuais de dengue.

Não tenho força holística suficiente para jogar praga e fechar um shopping. Mas, em se tratando de comunicação, qualquer divulgação que envolva uma organização precisa ser administrada com cautela, para não surtir efeito contrário. Proibir a divulgação da reportagem sobre a ação de bombeiros e agentes de saúde no combate ao mosquito aedes aegypti representou uma forma equivocada de administração da relação com a imprensa por parte do Alto Cafezal. Se uma ação daquela, simples, teve o desdobramento que teve, pode-se concluir que, realmente, predominava uma cegueira branca entre o que pensavam aqueles que decidiam em nome do shopping e o que realmente precisava ser feito para mantê-lo em condições de igualdade na concorrência com Aquarius, Esmeralda e Galeria Atenas..

Desde o ano passado acompanho os passos dados pelo Vocem na retomada de sua trajetória no futebol profissional. E observo, mesmo estando, via de regra, a 2.800 km de distância, maneiras nada democráticas de relação com a imprensa, fazendo lembrar, e muito, situações caóticas como a que relatei vindo de Marília. Um clube que nasceu do povo, da força operária e da crença religiosa de um padre, em nada combina com arbitrariedades. Basta relembrar e ver que as melhores temporadas da história do Esquadrão da Fé advêm de parcerias e harmonia de relação entre os dirigentes do clube e a imprensa local, em especial as emissoras de rádio.

Vi, ano passado, vociferações de quem produzia o que era para ser noticiado pelo Vocem e testemunhei grosserias sobre quem, na melhor das intenções, queria apenas divulgar a rotina do clube mais tradicional dessa Sucupira do Vale. Para minha surpresa, no auge da empolgação do projeto Vocem Forte 2015, postagens feitas por diretores do clube no aplicativo Whatsapp, com denominações ofensivas a emissoras de rádio e, indiretamente, a profissionais da imprensa da cidade, mostraram que pouco mudou em relação ao que defino como ditadura da comunicação, comportamento nada democrático em que uma organização centraliza e controla o que divulgado sobre suas atividades.

Decidi, pois, afastar minha relação, que vinha sendo harmoniosa com parte da diretoria. Sem rompimentos nem discussões, optei por continuar à distância. Não compactuo de agressões verbais e não concordo que emissoras de rádio queiram cobrar do Vocem para cobrir as partidas de futebol. Sou de uma época em que jornalistas, jogadores e dirigentes de Vocem e Atlético Assisense se encontravam e reencontravam em restaurantes de beira de estrada ou nas cidades em que os times jogavam, fora, cada qual ganhando o seu pão. Desconheço uma pessoa sequer que ficou rica ou ganhou dinheiro do Vocem para trabalhar na cobertura dos jogos.

Tomo como exemplo a minha postura de jornalista esportivo. Jamais usei minhas credenciais da ACEESP (Associação dos Cronistas Esportivos do Estado de São Paulo) para entrar no Tonicão. Pelo contrário, meu acesso ao estádio de Assis sempre aconteceu pelo portão de entrada, pagando ingresso, mesmo estando ali para trabalhar. E conheço outros profissionais de imprensa que fazem o mesmo, já que a proposta é ajudar aos clubes, e não tirar-lhes dinheiro.

O Vocem tenta colocar em prática o projeto Sócio-Torcedor, seguindo o exemplo de outros clubes da Segundona, como o Grêmio Prudente. Precisará, sobremaneira, de divulgação de suas ações para obter êxito nesse projeto, mas, pelas postagens que vi no Whatsapp, a denominada imprensa vampiresca, que teria intenção de sugar dinheiro do Esquadrão da Fé, está mais afastada do que atraída. Se já tinha dono de rádio querendo distância do futebol, quiçá agora, com essa forma desequilibrada e nada profissional de dialogar com e sobre os profissionais de comunicação.

Fala-se, nesse ínterim, de uma parceria do Vocem com a Fema. Parece haver fundamento, pois domingo passado a Rádio Fema FM foi a José Bonifácio e transmitiu o confronto José Bonifácio 0x1 Vocem. E se a estratégia era firmar parceria com uma rádio que não tira dinheiro do Vocem, deu certo, pois a Rádio Fema é uma concessão universitária, o que a priva de veiculações de anúncios comerciais. Assim, os jogos do Vocem são transmitidos sem que anúncios ou patrocínios sejam veiculados. E, dentro do acordo coletivo entre patrões e empregados do meio rádio, os profissionais escalados têm de receber proporcionalmente ao que estabelece o piso salarial dos radialistas profissionais. E, claro, a Fema, por ser uma instituição de ensino superior formadora de comunicadores, faz contrato com profissionais escalados portadores de diploma. Assuntos que, acredito, estejam fazendo parte do interesse, legal, do Ministério Público e da Câmara Municipal.

Relacionar-se bem com a imprensa não é tarefa das mais árduas. Definições ignorantes, como a que ouvi, pessoalmente, do ex-prefeito de Marília, Abelardo Camarinha, no Torneio Imprensa de 2002, dizendo que "para calar um jornalista basta dar-lhe um prato de comida", referindo-se ao fato de ser de suas empresas de comunicação a doação da carne e da cerveja consumidas na confraternização, aconteceram e continuarão a acontecer. Camarinha era proprietário da Central Marília de Notícias, a CMN, grupo que se desfez após sua saída da Prefeitura daquela cidade. E assim prevalece a história cíclica em que quem se equivoca na gestão da comunicação, perde-se na própria história.

Professor universitário, historiador e jornalista, é mestre e doutorando em Ciências da Comunicação pela ECA-USP.



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