Cláudio Messias*
Cada amanhecer prenuncia um
aprendizado. Não recordo de um dia sequer ter ido adormecer sem haver conhecido
o novo. E de tanto aprender, entendo, acostumamos a lidar com o novo. Mas, se
esse novo mexe diretamente com essa rotina de costumes engessados, incomodamos.
Até que, no cotidiano, o novo, em forma de incômodo, seja transformado em
rotina.
Em texto anterior citei, no
contexto dos protestos que assolam o país – calma, não tocarei nesse assunto,
já saturado na agenda settings da mídia, porém presente e necessário em cada ser
ideológico que tenta construir, enfim, uma identidade nacional -, sobre o fato
de cada um saber onde aperta-lhe, no pé, o calo. Retroajamos nesse fenômeno
literalmente orgânico e percebamos que um calo começa como uma incômoda bolha.
De tanto ser raspado e apertado o local, a pele engrossa e passa a resistir
àquele atrito. Dali, com o tempo, vem o calo. Calo, portanto, advém do
conformismo, ou seja, da subjetividade a que rebaixamos determinados desconfortos
que um dia foram objetivos.
Há exatos dois anos era anunciado
um novo projeto de tráfego para a cidade de Assis. Cidade pequena, com quase
100 mil habitantes, não tem lá tantas ruas e avenidas. Mas as poucas que tem,
convenhamos, deram-nos a fama hiperbólica de pior trânsito do mundo. Vem um
paulistano, fluminense, curitibano, enfim, um motorista de outra localidade, e
nos diz que é quase impossível dirigir por aqui. Quando um brasileiro que foi
fazer trabalho forçado em países desenvolvidos cujos habitantes, instruídos,
preterem o serviço braçal, cá volta, sacramenta que, definitivamente, Assis
tem o pior trânsito do planeta.
Pois bem. A cidade de pior
trânsito da galáxia decidiu mudar o que, em reclamação, é consenso dentro e
fora do perímetro urbano que define a Sucupira do Vale. E houve um vociferar
contrário. Já disse isso, aqui, e repito e repetirei sempre: fui um dos
inúmeros chatos que demonizaram as alterações. Fiz isso nas redes sociais, nas
rodas de amigos e até naqueles momentos em que dirigimos e conversamos
sozinhos. Sim, eu falo sozinho. Aliás, sozinho, não, falo comigo mesmo e,
admito, tem hora que nem eu aguento eu mesmo com minhas reclamações. Se tivesse
um terceiro eu, reclamaria de mim a ele nesses momentos introspectivos.
Foi nas mesmas redes sociais que
uma amiga advertiu-me sobre o tempo necessário para, primeiro, tentarmos
adequar nossa rotina à mudança. E, segundo ela, depois, decidir racionalmente
se aquilo foi, no conjunto, socialmente falando como um todo, bom ou ruim para
a cidade, e não para a ponta de cada umbigo. Sábias palavras daquela amiga, uma
psicóloga com quem devaneio em conversas há algumas décadas.
Temos, na nossa rotina,
determinadas intimidades na constituição de nossa agenda. Maluquices mesmo, que
não são exclusividade da vida urbana. Recordo-me de uma situação em que um tio
que tem sítio no Paraná (Barbosa Ferraz) teve um piti porque alguém havia tirado
suas botas de borracha, que usava para tirar leite das vacas, do lugar. Acordei
naquela manhã e estranhei o casal discutindo feio, cena que ainda não
testemunhara. Fui saber, mais tarde – criança jamais participava de conversa de
adultos, ainda mais naquela situação em que faca e pau-de-macarrão estavam
quase digladiando -, que as tais garrochas estavam, na realidade, a dois metros
do local onde tradicionalmente o tio retireiro as guardava. A ira dele estava
centrada no fato de seu trajeto constar da retirada das botinas na varanda da
casa, o caminhar por uma calçada de tijolos até a casinha de guardar
ferramentas (na realidade, uma privada desativada) e, então, o calçar das botas
de borracha de cor branca. Alguém havia deixado as botas distante, dali, 2
metros. E fora da calçada de tijolos, exigindo que meu tio pisasse na terra
molhada pelo orvalho, encharcasse as meias e perdesse o conforto de ir retirar
leite com os pés sequinhos e quentes. Não posso encerrar esse relato sem dizer
que o responsável por aquelas botas estarem lá, a dois metros do local ‘certo’,
sou eu, que as usei na noite anterior para pescar e, convenhamos, as enchi não
só de água, mas barro, lama e qualquer outro elemento que contenha na barranca lá
do rio Corimba.
Sei lá quantos anos meu tio
passou, na vida, levantando cedo, tirando as botinas na varanda, percorrendo a
calçada de tijolos só com meias nos pés e, enfim, calçando as botas de borracha
sobre chão seco. Sei, sim, que um dia nessa vida de, hoje, 80 anos de idade,
ele perdeu linha, carretel, anzol e toda a tralha, ou seja, perdeu o controle
emocional que sempre lhe foi peculiar quando mexeram nessa rotina engessada.
Quem está de fora e vê uma cena dessa define tudo aquilo como desequilíbrio (calma,
meu tio não bateu em ninguém; apenas ficou azedo, mau humorado, durante toda
aquela manhã, saindo de seu perfil pacato, sereno). Mas, como já passaram-se
trinta anos desde aquele episódio, tive tempo suficiente para compreender as
circunstâncias envolvidas. Nossa rotina, social, entendo, está intrinsicamente
relacionada a uma intimidade que remete a um egoísmo que nos faz deixar de
dividir determinadas circunstâncias conosco mesmo. Tanto que dificilmente
reconhecemos esse egoísmo, que é um sentimento de posse definitiva e
inalienável sobre as atividades que cristalizamos em forma de ritual.
Mexer no trânsito de Assis tirou do
lugar as botas de borracha de todos nós. Ruas e avenidas que tinham mão dupla
passaram a ter único sentido de direção. No máximo, condutores de veículos e
usuários do transporte público tiveram de sair uma, duas quadras de seus
trajetos. Metaforicamente falando, são os meus tios com as botas dois metros
fora do lugar. E, claro, todos, principalmente eu, esbravejaram por horas,
dias, semanas e... não, só dias e semanas. Um mês depois a maioria estava
adaptada à mudança e transformou-a em mais uma intimidade intrínseca das
rotinas individuais. Cada um, hoje, já sabe definir a própria calçada de
tijolos que o leve ao destino final, em Assis, sem ter, para isso, de molhar as
meias e esfriar os pés.
Falamos, pois, do interesse
individual que cada um tem para tracejar seu direito constitucional de ir e vir
com liberdade. A aprovação de alterações que atendam a um conjunto de
interesses individuais resume-se, ora, a decisões que contemplem a coletividade.
As rotatórias que vistas de cima pareciam construto alienígena, os canteiros
centrais intermitentes que receberam apelido de muro de Berlim, separando o
lado ocidental do lado oriental da avenida Dom Antônio, e a retirada de
semáforos de cruzamentos de grande tráfego não só afetaram a rotina da cidade
como deram margem a fatalismos como “agora, sim, vai começar a morrer gente no
trânsito de Assis”.
Pessoas continuaram morrendo na
cidade, mas não necessariamente por conta das alterações na engenharia de
tráfego. Dos casos que tive conhecimento pela imprensa local, se alguém morreu foi
por imprudência de algum dos lados envolvidos. Aqui mesmo, perto de casa, no
cruzamento entre a André Perine e a Santos Dumont, onde já vi duas mortes
provocadas por acidentes de trânsito (isso, nos anos 1970 e 1980), as colisões
entre veículos continuam, dois anos após as mudanças feitas no trânsito (a
André Perine passou a subir no sentido centro>barro e a Santos Dumont,
igualmente). Ouve-se o estrondo, os cães latem, todos saímos aos portões para
verificar a gravidade e eventual necessidade de acionar o Resgate, e lá está um
veículo de um lado, outro veículo do outro, com a culpa daquele que, subindo a
Santos Dumont, não estava atento ao sinal de “pare” aéreo, em forma de placa, e
de solo, em forma de pintura na cor branca que toma a rua de um lado a outro,
já que a via tem mão única. A culpa, pois, não é de quem alterou o trânsito; é
de quem faz o trânsito.
Já disse isso aqui e repito.
Proprietários de oficinas como meu amigo Jura, da vila Ribeiro, afirmam que o
movimento de proprietários de veículos que buscam reparos em funilaria caiu
consideravelmente em Assis nos últimos 24 meses. Cai por terra, aí, a piadinha
das rotatórias e do canteiro central da Dom Antônio. Sem cruzamento, o risco de
colisão transversal diminui a patamares irrisórios. Rotatórias tiraram o lugar
de semáforos que mesmo em pleno funcionamento tinham colisões sérias de
veículos e eliminaram o argumento conflitivo de “ah, o sinal estava amarelo e
eu achei que dava” e “ah, não estava amarelo não porque já estava verde para
mim”.
Chegamos, enfim, ao trânsito
central. A avenida Rui Barbosa passou a ter mão única em 2012. Parecia, mesmo,
o fim do mundo prenunciado pelos maias. Em dezembro o comércio iria perder, as
pessoas ficariam horas tentando encontrar lugar para estacionar e, depois,
comprar, e a própria Rui Barbosa viraria pista de corrida. Dos três argumentos
que li nas redes sociais ou ouvi de amigos, o único que realmente assusta é o
terceiro. Atravessar a Rui Barbosa de um lado para o outro fora da faixa é
correr o risco de ser atropelado e morrer, dada a velocidade com que alguns
condutores trafegam. Mas, espera lá. Na Europa e nas cidades anunciadas como
tendo um trânsito melhor que o de Assis deve-se atravessar uma rua ou avenida
na faixa de pedestres ou fora dela? Ah, sim, na faixa de pedestre. Então o que
temos a discutir, agora, é somente uma maneira de reduzir a velocidade dos
veículos, problema que radares fixos ou móveis, somados a pesadas multas,
resolve aqui, no planeta e na galáxia.
Falamos que Assis tem o pior
trânsito do mundo porém esquecemos de admitir que quem faz o fluxo do trânsito
são os motoristas. Se dirigimos nesse trânsito somos, portanto, os piores
motoristas paulistas, brasileiros, terráqueos. Estacionar sem, antes, dar seta,
e colocar o carro em fila dupla; virar sem dar seta; meter a mão na buzina sem
compreender que o carro da frente está dando passagem a um pedestre na faixa,
ou aguardar que o subsequente da frente estacione na vaga; falar ao celular dirigindo
e ter a sensação de que trânsito e carrossel de parque de diversão são a mesma
coisa; dirigir a 50km/h porque a placa indica esse limite de velocidade e
ignorar que, na realidade, essa é a velocidade MÁXIMA tolerada e que
racionalmente deve-se, portanto, dirigir abaixo dessa média. Apenas alguns
fatores que, presentes em nossas bizarrices cotidianas distribuídas 24 horas
por diante no tráfego de Assis, fazem a nossa fama de pior trânsito do mundo. E
veja que nem entrei no detalhe dos motociclistas que voam pelo lado direito das
filas de carros e dos ciclistas, que não entendem bicicleta como sendo um veículo
e transitam na contramão.
Falar, pois, que a avenida Rui
Barbosa piorou com a implantação de mão única de direção é fácil. Difícil é
sair da arrogância pessoal que faz de cada um, um coletivo de péssimos
condutores. Um coletivo que dá ao todo a fama de pior trânsito do mundo. Custa
à cultura local compreender que trânsito é feito por pessoas, e não veículos.
Quando um acidente ou incidente trava determinado corredor de tráfego, são
pessoas que atrasam a compromissos, chegam tarde em casa, e não veículos.
Aquela vaga que fica 10 horas por dia ocupada no centrão comercial de Assis
pertence, via de regra, ao mesmo comerciante ou comerciário que reclama que o
movimento caiu depois das mudanças de trânsito. Pessoas que há dez, vinte,
trinta anos não abrem mão do conforto de ter as botas de borracha ao alcance
dos pés, em detrimento do conforto de seus clientes, mas escoram-se no
argumento de que é o trânsito da cidade que barra o desenvolvimento desde 2012.
Ainda há, pasmem, quem apenas
olhe dessa forma ao próprio umbigo e não tenha coragem de romper as cercas que
feudalmente delimitam seu mundo de pequenez que o impede de enxergar que fora
da Rui Barbosa há vida. Com o tráfego distribuído pela Smith de Vasconcelos e
pela Floriano Peixoto houve um elo de ligação comercial com a Nove de Julho,
com a Ana Barbosa, enfim, o centro financeiro de Assis expandiu-se. Ou essa
aristocracia de Assis acorda e reconhece que, hoje, há dezenas de nova lojas e
pontos comerciais sendo instalados fora do eixo central da Rui Barbosa, ou
ficará fadada a vender e manter as portas abertas até que a velha geração tão
ultrapassada quanto ela parta dessa para uma melhor. Se espertos fossem e tino
comercial tivessem, tratariam imediatamente de olhar outros pontos comerciais
alternativos das redondezas e repetiriam o movimento que faz o centro
financeiro distribuir-se de forma homogênea. Comércio heterogêneo, meu amigo,
só nas primeiras décadas da fundação de Assis, cem anos atrás.
É da mentalidade de lideranças
que cobram a revisão do trânsito de Assis que sobrevive uma cultura de falsa
sensação de eternidade da subserviência da comunidade local. Passou da hora de
essas pessoas acordarem para o fato de Assis ter o Amigão, o São Judas, o Max,
a Americanas, o Walmart e, logo, o Confiança e o Makro. Se é para pagar caro
como sempre pagamos literalmente para consumir na cidade, que paguemos caro com
conforto e variedade. Nem cobrar caro é, mais, exclusividade dessa aristocracia
ultrapassada dominante. Dominante, não. Pseudo-dominante, pois a cidade faz uma
leitura da realidade, os aristocratas fazem outra.
Um plebiscito foi decidido como
forma de medir a aprovação, ou não, da opinião pública sobre mudanças,
novamente, no trânsito de Assis. Aliás, mudanças, não. Retrocesso, pois mudar
seria voltar ao que era antes. Já que não dá, mais, para ter o tradicional e
velho comércio caro que reinava na cidade 10, vinte anos atrás, que o façamos
mediante retomada do que era o trânsito antes de 2012, durante 106 anos. E se
você, raro e exceto leitor, me disser que o resultado do plebiscito deve ser
respeitado por tratar-se da vontade popular, nem assim me convencerá. E explico
por que.
Vivo em Assis há 43 anos. Tudo
bem, em parte considerável desse tempo trabalhei, como jornalista, fora daqui.
Mas, como é sabido, jamais deixei de morar em Assis. Trabalhei fora, residindo
aqui. E olha que ninguém entre meus amigos de fora nunca me acusou de ganhar
dinheiro lá e vir gastar e capitalizar em Assis. Só que isso é outro assunto, é
outra história. Estou falando de plebiscito, que remete a votação, a eleição.
Há mais de uma década olho com receio o movimento eleitoral de Assis, nas urnas
formalmente geridas pela Justiça Eleitoral. Não quero chegar ao ponto de
colocar em xeque esse democrático processo que tanto tempo de história custou.
Mas, a forma como alguns representantes chegam aos poderes legislativo e
executivo causa-me resignação. Não vejo suspeita de fraude, nem corrupção.
Vejo, sim, sinais de poder a qualquer custo.
Já tivemos eleição de prefeito
envolta a escândalo de pesquisa em véspera de eleição. E também já tivemos
eleição com 7 candidatos, ausência massiva de eleitores na urna e prefeito
eleito com menos de 15 mil votos numa Sucupira do Vale com mais de 60 mil
votantes. Isso é fato, está nos arquivos dos jornais locais, em forma de
documento formal. Ora não sabemos votar, ora não sabemos em quem votar. E o
resultado final não corresponde àquilo que a ampla maioria aspira. Um
plebiscito, pois, representaria, nessas condições, o todo? Uma urna colocada no
centro da cidade é capaz de buscar a opinião daquele consumidor que vai ao
centro uma, duas, cinco vezes ao mês, ou contempla quem está diariamente, lá,
porque de lá é?
Algumas empresas reclamam das
mudanças no trânsito e pedem a revisão disso. E isso deve ser respeitado, pois
a história recente mostra empresa chegando ao legislativo na representação de
vereador eleito. Respeitemos, pois, esse poder de compreender suficientemente
um processo eleitoral ao ponto de ocupar uma vaga preciosa na Casa de Leis que
é a base simbólica do estado democrático de direito, uma vez que ali deveriam
estar vereadores que representem os interesses da população consumidora e não
de quem determina o consumo.
Considerada a votação nesse
plebiscito, que se investiguem os mecanismos que levaram aos resultados e,
ponderado aquilo que se pode entender como vontade popular, resolva. Voltar a
Rui Barbosa a mão dupla de direção, que fique bem claro, precisa ser uma
decisão que tenha líderes responsáveis, que assinem e assumam os
desdobramentos, pois são essas pessoas que precisam ser cobradas caso haja
eventual situação adversa, como aumento no número de acidentes no trajeto,
assim como o movimento no comércio central não seja retomado. Reclamações
haverá, todos sabemos, pois as botas de borracha terão sido, novamente, tiradas
do lugar. Só vou ter, agora, de me conter com as reclamações.
*Professor universitário,
historiador e jornalista, é mestre em Ciências da Comunicação pela ECA/USP.
Um comentário :
Ei Cláudio, como vc sabe, não moro mais em Assis mas visito regularmente a cidade. As alterações no trânsito desde o seu início, se não me engano em julho de 2012, foram benéficas. Em todas as minhas passagens por aí, escutava reclamações e, quando dava minha opinião favorável às intervenções viárias, ouvia... mas vc não mora aqui!!! Como sempre, sua análise foi perfeita sem falar que a estória ilustra perfeitamente a situação. Está mais seguro e mais rápido transitar por Assis e diria ainda mais fácil estacionar na Rui Barbosa. O trânsito somos nós, talvez a melhor mensagem registrada pelo texto. Valeu!
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