Cláudio Messias*
Só Deus sabe quando uma mão
humana, mortal como toda criatura criada por Ele, fará uma intervenção e
impedirá que o Mercado Modelo Municipal feche integralmente as portas. Sim, sou
cristão, tenho minha fé, desenvolvi devoção a Nossa Senhora em 2010, mas, peço perdão
ao Criador e desculpas a você, raro e exceto leitor, para tirar a letra “d”
maiúscula da frase que abre este texto, este parágrafo, e substituí-la por uma
minúscula. “Só deus sabe quando uma mão humana fará uma intervenção e impedirá
que o Mercadão feche integralmente as portas”.
Quem está aí, do outro lado da
tela, e tem mais de 20 anos de idade viu o Mercadão em pleno funcionamento.
Aqueles nascidos em 1983 puderam testemunhar uma das tantas reformas por que
aquele espaço passou sob intervenção pública, especialmente nos anos 1990. Já
os nascidos até 1980 sabem que o eixo central de Assis, por muito tempo, foi
aquele centro comercial que com o tempo, dado o abandono, virou sinônimo de
boemia. Chegamos ao ponto de pejorativamente criar o jargão “fazer ponto no
Mercadão”.
A maior desgraça da história do
Mercadão foi o incêndio que na segunda metade dos anos 1980 destruiu quase que
totalmente as instalações. A necessária reforma descaracterizou totalmente o
prédio, eliminando o vão livre interno e, com paredes de alvenaria, dando
aspecto de shopping ao que nasceu para ser mercadão. Tanto é verdade que não
temos vocação para shopping que até hoje vimos três projetos nesse sentido
fracassarem na cidade. E ainda tem um quarto projeto que é lindo, moderno, tem
requintes de faraônico, mas não consegue sair do papel há anos.
O fogo desestabilizou e destruiu
famílias que tinham sólidos negócios no Mercadão. A mais popular loja de
calçados da cidade era a São José Calçados, do não menos popular Baianinho.
Tudo o que se precisasse para a casa era encontrado bem em frente ao Mercadão,
no Laurindo, dono da Casa das Variedades. Peixaria nenhuma na cidade conseguia
concorrer com os preços e a qualidade dos pescados do Mercadão. A feira livre
sequer era uma tradição, tamanha era a qualidade de verduras, legumes, secos e
molhados encontrados em variedade infinita no Mercadão.
Ouso dizer que na época áurea do
Mercadão havia duas Assis. A primeira funcionava de segunda a sexta-feira. E
sexta-feira até o meio-dia, pois a partir da tarde de sexta começava a
funcionar a segunda Assis. E essa outra cidade de Assis girava em torno do
Mercadão. Em uma época em que 75% da população da cidade era rural, os
sitiantes e trabalhadores rurais cá vinham fazer compras. E não era só de
alimentos. Comprova-se de tudo. Daí a variedade de mercadorias que
caracterizava o nosso Mercadão. Ouvi testemunhos do saudoso Maurício Nucci de
que havia propostas milionárias por pontos, por menores que fossem, naquelas
quadras que ficavam no entorno do Mercadão, nos anos 1960 e 1970. Ter sucesso
nos negócios era manter um ponto comercial naquelas imediações.
Posso falar, aqui, da experiência
que tive com o Mercadão. Coincidência, mas hoje, 25 de junho, faz 19 anos que
casei-me com Rozana, a quem comecei a namorar quando éramos colegas de trabalho
na loja de discos A Sertaneja, no Mercadão. Era 1989 e havia um ano o complexo
de lojas havia sido reinaugurado após o incêndio de dois anos antes. Passávamos
sonolentos dias de baixo movimento, de segunda a quinta-feira. A partir da
sexta começavam a chegar os consumidores que vinham de sítios, fazendas e
outros pequenos municípios da região. Fechávamos a loja ao meio-dia de domingo,
mas se ficássemos abertos com certeza venderíamos ainda mais.
Naquele final da década de 1980
já se confirmava a inversão de realidade da densidade demográfica não só de
Assis, mas do país como um todo. Passamos a ter 75% da população residindo na
cidade e, ainda assim, os 25% da população rural passaram a ser essencialmente
trabalhadores. Talvez tenha sido esse o golpe maior no Mercadão, que já tinha
perdido, dez anos antes, o referencial do terminal rodoviário, que passou para
o final da avenida Getúlio Vargas. Aliado a esse fator, o setor de
supermercados deu um salto de remodelação, ampliando a gama de produtos e
tornando-se muito mais atrativo para as necessidades, sejam elas urbanas ou
rurais.
Mas, se o setor de supermercados
modernizou-se, isso não deveria ter afetado o Mercadão. Afinal, dentro dele
sempre houve uma filial da rede Avenida. E isso procede, pois a reforma
pós-incêndio mostrou um mercado depende de um supermercado. Sem o perfil de
mercadão, o nosso Mercado Modelo Municipal mais parecia, internamente, um
camelódromo, com todo respeito que esse segmento merece, pois sou consumidor
confesso dos camelôs, aqui em Assis e nas cidades por onde passo. Mercadão, a
meu ver, tem de vender feijão, arroz, amendoim, enfim, grãos a, com o perdão da
redundância, granel. E tudo distribuído em bancas abertas, visíveis, para facilitar a concorrência saudável.
A arquitetura do Mercadão com
paredes internas foi, a meu ver, mais um fator determinante para que os
usuários perdessem a identidade anterior. Quem frequentou o Mercadão anterior
ao incêndio vai saber entender o que vou afirmar: o Mercadão perdeu cheiro de
mercadão. Aquele Mercadão anterior a 1987 tinha um cheiro característico, que
misturava odor de fumo de corda, maçã, laranja, mexerica, grãos, chulé, enfim,
uma variedade de origens que somada resultava na fragrância “cheiro de Mercadão”.
Com o passar dos anos pós-reabertura o que prevaleceu foi um cheiro de mofo,
por dentro, com o odor de urina, por fora. Era a simbologia do abandono.
Com a inauguração do Avenida
Plus, na rua José Nogueira Marmontel, o movimento de consumidores dos arredores
do Mercadão foi todo concentrado naquela nova loja, que tinha ar condicionado e
se resumia no mais moderno supermercado da cidade. Veja bem, raro e exceto
leitor, estamos falando de 1999 e não tínhamos, ainda, Amigão, nem Max, nem São
Judas Tadeu e Wallmart na cidade. Perdia sentido, pois, manter a loja da rede
Avenida no Mercadão, uma vez que menos de 1 quilômetro dali havia outra loja da
mesma rede, na avenida Dom Antônio. Foi assim que o golpe de misericórdia foi
dado no movimento do Mercadão, perdendo o fundamental fluxo da Casa Avenida.
A teoria existente é que o
movimento de consumidores da filial da rede Avenida favorecia os demais
estabelecimentos comerciais instalados no Mercadão. Não tenho números sobre
isso, mas creio que o espaço antes ocupado pelo supermercado deva corresponder
a quase 1/3 da área interna total. Um espaço cuja concessão pertenceu ao grupo
empresarial que administra a rede Avenida e que não é cedido para outra
finalidade que não sejam feiras beneficentes esporádicas e depósito. Obviamente
que se aquela própria filial podia ser vista como concorrente da própria
empresa, o espaço não seria nem será repassado a outro supermercado.
Dez anos atrás o Mercadão ganhou
novo espaço agregado, com considerável movimentação de usuários. O terminal
urbano chegou a ser anunciado como estratégia de revitalização do Mercadão, mas
os responsáveis não atentaram-se a um detalhe: terminal é usado para embarque e
desembarque de passageiros, que em sua maioria faz baldeação, também conhecida
como escala de transição, entre uma linha e outra da empresa de ônibus
circular. E na ida e volta ao trabalho, em uma cidade cujo tempo de permanência
no transporte coletiva não ultrapassa meia hora, praticamente não se consome. Desce-se de um ônibus e, em questão de minutos, sobe-se em outro.
O terminal urbano é, sim, de uma
logística fundamental para a cidade de Assis. Chegou-se a cogitar sua
transferência para a Praça Arlindo Luz, mas, creio, uma luz de sabedoria e inteligência
indicou que aquilo tornaria ainda mais caótico o trânsito anterior à implantação
do sistema de mão única da avenida Rui Barbosa. O que o terminal não consegue e
nunca vai conseguir é dar movimento ao Mercadão. Resta, somente, a opção
anterior, implícita nesse texto e agora explícita: ocupar o espaço que antes
recebia a loja da rede Avenida.
Li e ouvi entrevistas do novo
presidente da Associação Comercial e Industrial de Assis, João Antônio Binato,
com compromissos que contemplem o comércio da cidade como um todo. Ora, pois,
que maravilha isso. João Binato é da família proprietária da rede Avenida de
supermercados e, como tal, foi responsável por aquele espaço valioso dentro do
Mercadão. É no mandato dele à frente da Acia que a cidade recebeu o Wallmart,
concorrente direto de seu principal negócio. E, vejam que coisa mais linda, é
sob a égide de sua gestão que Assis pode ter uma solução para o problema do
Mercadão.
João Binato é suplente de deputado
estadual e já teve irmão e filho vereadores. Entende o suficiente de política
para chegar ao comando da mais importante instituição representativa do
comércio de uma cidade reconhecidamente pólo regional. E, não tenho dúvidas, cederá
para que o Mercadão, um patrimônio histórico de respeitável apreço daquelas
pessoas que compram na sua rede de supermercados e nas lojas associadas à Acia
que preside, saia do ostracismo e deixe de ser problema das políticas públicas.
Afinal, pretenso deputado já faz, sim, parte dessas mesmas políticas públicas,
não é mesmo? Faz parte como deputado suplente e fez, no passado recente, com a
presença de um representante da família na Câmara Municipal nos últimos longos
anos de nossa história. Vereadores que, por sinal, podiam ter feito algo pelo
Mercadão cujo espaço maior lhes pertence ao menos na representação histórica de um passado recente.
Publiquei, aqui no Blog, sobre
mobilização dos comerciantes instalados no Mercadão. Foi há um ano e meio.
Reunidos, fizeram uma vaquinha e pintaram o prédio. E também foram à
Prefeitura, cobrando ações das políticas públicas. Mas, ouviram o que é certo:
aquele espaço do Mercadão é uma concessão e, portanto, para o município, ali,
trata-se de um recinto de fundo privado. Mais um lindo e maravilhoso motivo
para que a rede Avenida, que é empresa e, portanto, integra a iniciativa
privada, ajude a dar uma solução na parte que lhe compete historicamente, não é mesmo?
Nas últimas semanas fala-se na
possibilidade de instalar, no Mercadão, uma unidade do Poupatempo, do governo
do Estado. Tem-se muito medo de fazer referência àquele espaço dentro do
Mercadão, mesmo em se tratando de uma proposta que tramita na Câmara Municipal,
um poder constituído e autônomo. Fala-se, inclusive, de visita recente ao
Mercadão e surpresa com o estado em que o estabelecimento encontra-se. Ora,
isso é comprovação de que vereador que se surpreende com o estado atual do
Mercadão não passou ali nem o priorizou na campanha eleitoral de, pasmem,
somente 7 meses atrás. Não esteve lá na campanha nem, pelo jeito, nos últimos 7
meses. E se chamado não fosse, também não teria ido?
Sou a favor da vinda do
Poupatempo a Assis, claro. Mas, em um dos espaços mortos da cidade, como, por
exemplo, o galpão que situado ao lado da incubadora de empresas, no antigo
Depósito da Fepasa, está abandonado desde a privatização da Fepasa. Mercadão é
do comércio, de compra e venda de mercadorias, de consumo. O Poupatempo tiraria
totalmente o perfil do local e até compreendo que alguns comerciantes o
entendem como passível de salvar o Mercado Modelo Municipal. Desespero, sim,
pois é melhor ter, ali, o Poupatempo do que continuar com o espaço vazio,
ocioso, acumulando fantasmas.
Prefiro entender que o Mercadão
seja um ponto de comércio e que, portanto, a Associação Comercial e Industrial
de Assis tenha um projeto para o local. Afinal, muitos comerciantes que ali um
dia estiveram instalados ou que ainda estão já tiveram condições de ser
associados à Acia e hoje, suponho, sequer condições financeiras de manter essa
representatividade ativa têm. Basta relembrar que na ação conjunta
Prefeitura/Acia, dez anos atrás, toda a campanha de Natal da cidade
ficou centrada no Mercadão, que recebeu, inclusive, a simbólica Casa do Papai
Noel. O Mercadão ficou lotado, ganhou vida, porém tornou a morrer quando aquele
circo temporário foi desarmado.
Somos, em casa, consumidores de
especiarias que antes eram encontradas no Mercadão. De cereais a frutas
cristalizadas e defumados, fazemos mensalmente o circuito que passa por lojas
como Temperos & Tentações, Feijão & Cia e Casa Norte, além de outras.
Os próprios supermercados têm, hoje, um setor que vende esses tipos de
mercadorias, em especial a granel. Com incentivo e compromisso público por uma
revitalização que contemple medidas severas de segurança e de vigilância
sanitária, é esse o segmento comercial que precisa ser levado para lá. E se tem
um órgão público que falta, em espaço autônomo, à cidade e que poderia ir ao
Mercadão, aí sim, é o Banco do Povo Paulista, canal direto de subsídio a um
setor de serviços contemplado pelo Mercadão com funcionamento pleno.
Tenho amigos que mantêm comércio
no Mercadão e nas adjacências. E monitoro a mobilização que todos fazem há pelo
menos dois anos, em busca de uma solução que passa, necessariamente, pela
ocupação do maior de todos os espaços ociosos no interior do prédio. O
desespero, entendo, favorece a cegueira branca, uma vez que não se enxerga
outra opção que não seja a política. Do lado de cá, admitindo estar
confortavelmente sentado para analisar o caso, teorizo que a solução continue
sendo comercial. O Mercadão, sempre defendi, faz parte da história do comércio
de Assis, mas, infelizmente, fica bonito somente nas fotos antigas impressas em
tamanho gigante e expostas em estabelecimentos que sobreviveram hegemonicamente
no tempo. E se o Mercadão é comércio, compete à Associação Comercial, que é
fundo privado, traçar ações de viabilização comercial do local.
Prefiro acreditar que temos o
privilégio de ainda poder contar com um Mercado Modelo Municipal que abocanhe
uma quadra inteira do coração da cidade. Marília tem um Mercadão que ocupa meia
quadra, na XV de Novembro, e continua sendo lá que volta e meia como o melhor
pastel da cidade. A vocação, ali, é do setor de floriculturas. E quer saber?
Sempre ouvi dos comerciantes com quem fiz amizade, lá, que seria a glória, para
eles, ter um espaço de Mercadão como o de Assis. Eles, lá, sonhando com o nosso
Mercadão e nós, aqui, querendo transformar nosso mercado em Poupatempo.
Sei lá... de repente, a
instalação do Poupatempo dê ao Mercadão, de volta, o movimento que a Casa
Avenida historicamente deu. Queimarei, sim, minha língua, não vendo perfil
consumidor no público que sai de casa especificamente para resolver problemas
formais de documentação nos mais variados aspectos. Preferia ver, ali, naquele
saguão fechado ao fundo do Mercadão, um vão livre em que fossem armadas
barracas tipicamente de mercadão, com bacalhau, roda de fumo de corda, jabá,
carne-de-sol, grão-de-bico, alface e demais verduras e legumes plantados aqui
mesmo nos arredores e, assim, o nosso Mercadão voltar a ter cheiro de Mercadão.
Ou talvez isso tudo seja besteira e eu esteja querendo, mesmo, sentir cheiro de
Mercadão, ouvir o passar das rodas de trem na linha férrea e a cada hora do dia
já claro escutar o apito do Depósito da Fepasa chamando o povo para trabalhar.
*Professor universitário,
historiador e jornalista, é mestre em Ciências da Comunicação pela ECA/USP.
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