Cláudio Messias*
Eu tinha 13 anos de idade quando via, na TV, notícias sobre
o movimento Diretas Já!. Na leitura de meus parentes mais velhos, um bando de
baderneiros querendo que o país cedesse ao comunismo e que a desordem
prevalecesse. Viajei, naquele ano, com um primo que, policial civil em São
Paulo, carregava uma pistola na cintura e outra no porta-luvas da caminhonete
no trajeto até Paloma, no Paraguai, onde buscava xarope de hortelã para revender
na capital paulista. Era dele o discurso mais conciso contra a abertura
democrática.
No ano seguinte eu já trabalhava de office-boy na farmácia
de seo Daniel, na rua João Pessoa, e sentia na pele o silêncio imposto pela ditudura.
Foi numa dessas ocasiões que, voltando para casa depois de uma sessão de cinema
no Cine Pedutti, fui abordado, na esquina da Praça da Bandeira, quase em frente
à igreja presbiteriana, por uma ‘baratinha’. Já contei esse episódio aqui, no
blog, mas, dada a representação forte daquela circunstância, o mantenho
permanentemente em meu discurso. Eu não portava documentos, fui revistado pelos
soldados como suspeito de ser bandido e, portando o canhoto do ingresso do
cinema (havia um carimbo da data), fui liberado. Não sem antes levar uma
senhora cacetada (de cassetete mesmo) na boca do estômago. Não bastassem as
surras que já levara de meu pai até ali na vida, apanhar de um policial foi
marcante para a minha adolescência.
A partir daquela data passei a ler mais sobre o movimento
social que pedia a democratização do país. Minhas revistas Mad, Playboy, Fiesta
e Private deram lugar ao que os jornaleiros diziam ser o mais recomendável na
época: Manchete, Veja, Visão. Interagindo com Vanilda, Maião e Eliane,
estudantes da Unesp que moravam em uma república em frente à minha casa,
refleti sobre uma ditadura que existia na forma de repressão, na rua, e de
representação simbólica, no fechamento de políticas públicas. A democracia que
se pedia, naqueles anos, passava por uma abertura que renovasse o olhar sobre a
importância da participação da sociedade nas decisões relacionadas ao destino
do país, e não somente no expressar.
O Brasil chorou a morte de Tancredo Neves, que seria o
primeiro presidente não militar escolhido para sacramentar a democracia
brasileira. Comprovação, hoje sabemos, que a consciência coletiva acontece a
posteriori, na forma de registros históricos. Lágrimas que escorreram por
rostos hoje arrependidos, pois Tancredo nada mais representou e representa do
que uma oligarquia aristocrata dominante, extensão da política café-com-leite
que provocou o primeiro golpe militar de nossa história republicana. Não por
acaso seu vice, que assumiu a presidência por forçados e nada democráticos 5
anos, era Sarney, a materialização política do coronelismo autoritário
nordestino, capaz de trocar, anos depois, já sob vigor da Constituição que
sentenciaria o fim da repressão, de Estado para sacramentar seu império
político no Maranhão e no Amapá.
Testemunhei essa transição pré e pós 1985 já trabalhando nas
redações da vida. Ouvi, em primeira pessoa, de um Celso Camilo Costa ‘comendador’,
que o país viraria uma baderna sob a égide de um Estado democrático, e que em
não mais do que 5 anos os militares voltariam ao poder “para colocar a casa em
ordem”. Com o fiasco da eleição de Fernando Collor de Melo, dali a exatos 5
anos, confesso que temi que Celsão pudesse, sim, ter razão. Coincidentemente,
eu estava de volta à mesma emissora de
rádio quando os cara-pintadas ocuparam o centro de São Paulo onde 7 anos antes
passara o Diretas Já!. E lá, na redação, tinha de suportar a profetização
permanente de Celsão, dizendo “você vai ver; os militares vão colocar a casa em
ordem”.
Nunca discuti com os mais velhos sobre a retórica de que na
época dos militares o país estava em ordem e em desenvolvimento. Cada um constrói
sua visão de mundo a partir dos pontos em que o calo aperta. Tenho essa opinião
sobre a consciência coletiva, já externada linhas atrás, ou seja, medir sobre o
que o coletivo como um todo pensa sobre certos episódios a partir do que isso
representará posteriormente enquanto desdobramento em forma de processo, e não
a partir de atos isolados. O discurso histórico materializado em reflexões
coletivas mostra-nos o lado negro da ditadura, e exceções. Exceções como um
professor que, lotado em uma escola pública no Jardim Paraná, em Assis, tentou
convencer a mim e a meu filho Vítor, de 17 anos, menos de um mês atrás, que tempo bom era o tempo em
que os militares estavam no governo e caçavam os comunistas. Um suposto
educador que não concebe a incoerência infinita de seu discurso diante da
comprovação histórica de que aquilo que defende jamais existiu. Jamais existiu
na minha visão, pois na opinião de muitos, agora, entre vocês, raros e excetos
leitores, eu é que posso ser, aqui, o alienado.
Escrevi esses parágrafos anteriores para lançar olhar sobre
o Manifesto Passe Livre, de São Paulo. Algo em torno de 10 mil pessoas foi às
ruas do centro de São Paulo nesse histórico 13 de junho de 2013. Todos os
relatos de amigos que lá estavam mostram que a polícia militar reprimiu à força
os manifestantes que seguiam rumo à avenida Paulista. Não foi a primeira vez.
Assisti, na TV, um policial de comando ser claro em sua fala: “o acordo era não
subir para a Paulista; eles sabem desse acordo e depois não vão poder reclamar
do que vier”. Não foram exatamente essas as palavras, mas a construção de
sentidos é a mesma, e não havia dúvidas na forma discursiva com que o militar desfechou a entrevista quando perguntado o que poderia, então, ocorrer: "fica para a sua imaginação"...
Quando o policial comandante afirma “eles sabem que o acordo
é tal...” está se referindo a quem e a que acordo? O movimento Passe Livre não
tem comando assumido, exatamente para ser não identificado com lideranças
políticas nem de direita nem de esquerda, uma vez que não temos esquerda, no
país, desde 2003. De tanto haver um descontente aqui, outro descontente ali,
outro descontente acolá, de sensação de insatisfação coletiva passou-se à
certeza. Certeza de uma insatisfação, e não somente com os 20 centavos a mais
nas passagens de ônibus ou metrô/trem. Insatisfação com uma política federal
que em quase nada mudou o formato do PSDB de governar o país, capaz de trazer para cá, ao país, o espetáculo da Copa do Mundo e das Olimpíadas, que nada mais são do
que a materialização de políticas públicas para mostrar à hegemonia
internacional que, sim, aprendemos a lição e estamos em condições de atender às
necessidades de que as maiores economias do planeta carecem. Nosso espetáculo
petista de crescimento não contempla condições razoáveis de sobrevivência, mas,
sim, aos interesses para que empresários ELX não quebrem e comprovem, na casca, que nossa
economia sólida é uma farsa.
São Paulo e Rio de Janeiro são as duas cidades mais
importantes do país. E naquelas duas capitais o pau quebrou ontem à noite,
pelos mesmos motivos. E lá, os fluminenses querem que o preço da passagem de
ônibus seja inferior a R$ 2,95. Ora, os paulistanos querem que o preço volte a
R$ 3,00, ou seja, ainda assim, 5 centavos mais caro que o fluminense. Alguma
dúvida, pois, que o eixo da questão não está nos valores, mas no todo? Um todo
social que devolva a Copa do Mundo para a Fifa, as Olimpíadas para o COI e toda
a bancada de política da esquerda parlamentar a uma usina de reciclagem qualquer,
para que voltem à sociedade sabendo entende-la conforme a contemporaneidade
exige.
Teoria e prática fazem do próprio empirismo um fenômeno
questionável. E não seria na política pública que seria diferente. O PT
enquanto oposição em nada se iguala ao PT da prática governista, igualmente ao
que o PSDB hoje de oposição em nada se equipara ao PSDB que selou o acordo
internacional de subserviência do Brasil em 1994. É nessa hora que o cidadão vê um PT
em Brasília, um PT na Prefeitura de São Paulo e um outro PT no comando das
alianças que dão sustentação a essas formas de poder do Planalto Central de João de Santo Cristo. E hoje, exatamente um ano
antes da convenções para as eleições gerais de 2014, o que aparece são nomes
como Eduardo Campos, na representação do coronelismo nordestino, Aécio Neves
como herança do falido café-com-leite, e Dilma como representação de um
continuísmo iniciado em 1994 com FHC. É essa falta de perspectiva o combustível
de todas as formas de manifestação vigentes.
Haddad e Alckmin adotam o mesmo discurso de tolerar, sim, o
protesto, mas não o vandalismo. E de que vandalismo eles falam? Provoco com
outra pergunta: existe vandalismo pior do que o de políticas públicas inconsequentes,
que submetem o trabalhador assalariado a custos de produção intoleráveis? E se
em vez de ir às ruas os mais de 10 milhões de trabalhadores paulistanos
decidissem ficar em casa, ligassem para o emprego e dissessem que não têm
dinheiro para pegar ônibus porque precisam, primeiro, comer, ter infraestrutura
urbana condizente aos impostos que recolhem, um sistema de saúde que lhes
garanta a aptidão e uma educação que assegure vida futura mais digna aos seus
filhos? Sim, claro, Haddad e Alckmin os chamariam de inconsequentes e
irresponsáveis, ignorando que a coletividade inteira o fora assim,
inconsequente, ao, nas urnas, os colocarem para governar as máquinas estatais
que conduzem esse país. Uma parada silenciosa, vejamos, seria uma alternativa.
Paulistas, cariocas, paranaenses, gaúchos, enfim,
insatisfeitos de todo o país começam a ler que 20 centavos a menos fazem a
diferença na mesa de cada brasileiro, independente do Estado da nação em que
estejam sobrevivendo. Caramba, saí de Assis na quinta-feira da semana passada
com destino a Dourados, em Mato Grosso do Sul. Paguei R$ 2,69 por cada litro de
gasolina aqui, mas em Nova Alvorada do Sul o preço era de R$ 3,49. Era a mesma
gasolina, vendida pela mesma rede BR de distribuição que, por sinal, é estatal,
pertence à Petrobrás e, portanto, pratica essa disparidade de preços sob a
papada da presidente Dilma e, no passado, igualmente abaixo do bigode de Lula. Dourados e demais cidades sulmatogrossenses têm
todos os motivos do país para também ocupar as ruas e dar um basta nisso, pois
combustível caro implica em uma cascata de prejuízos que só faz por aumentar o
custo de vida de quem? Da classe assalariada, claro.
Haddad conheceu a Revolução teorizando a partir das páginas
que leu em seu histórico de discente da USP. Está acordando para a prática
amarga da revolução vendo-a bater à porta de seu Palácio da Hipocrisia
Vermelha. As máscaras dos revolucionários são imaginárias e dão face única aos
descontentes. Em menos de 24 horas vi, nas redes sociais, petistas históricos
condenando o alinhamento de discurso de Haddad a Alckmin, pregando a intolerância.
A elite intelectual a que, reconheço,
pertenço, está ignorando o prenúncio de inverno, arregaçando as mangas e
dispondo-se a ir às ruas. Mas o povo, esse sim, enxerga cada vez mais que de continuísmo do PSDB o PT adquiriu a autonomia de formar, no pacote, a farinha do mesmo saco.
Retomo a trajetória histórica da pseudodemocracia que
vivemos hoje no Brasil para fundamentar a necessidade de tolerância ao
movimento que ganha corpo não só em São Paulo, mas no país como um todo. Se a
própria acefalia truculenta da ditadura aceitou o Diretas Já!, na primeira
metade da reprimida década de 1980, não será a estrategista imposição militar
midiatizada que irá segurar a massa trancada em locais de trabalho ou em suas
casas. Digo isso porque não tenho dúvidas de que a Polícia Militar que atuou
ontem à noite em São Paulo teria inviabilizado o movimento Diretas Já! de 1983.
Sim, aquela polícia de ontem foi, comprovadamente, muito mais repressora do que
PM e Exército da ditadura juntos.
O comando do policiamento paulista carece de saber que
aquela abertura democrática de 1983 culminou, cinco anos depois, no vigor da
Constituição Federal que, entre tantas liberdades, garantiu o direito livre de
ir e vir em qualquer canto desse território nacional. Sair do Teatro Municipal
e ir para a avenida Paulista, portanto, era, ontem, um direito constitucional,
individual, de cada “vândalo” ali presente. Não existe acordo verbal entre um
brucutu fardado e qualquer líder de movimento que seja soberano à Constituição
de um país. E se ocupar ruas e avenidas centrais não pode, então por que
jogadores da alienadora Seleção Brasileira de futebol não foram igualmente
espancados quando subiram em carros da mesma polícia militar, na representação
dos bombeiros, e desfilaram pelo país quando das conquistas de títulos
mundiais? O cortejo do corpo de Ayrton Senna, em 1994, igualmente parou a mesma
São Paulo, e não recordo de cavalaria nem fardados descendo o cacete no
público. Claro, era hora de mostrar flores no lugar de cassetetes.
A Copa das Confederações é, segundo a hegemônica Fifa, um
evento teste que mostra ao mundo as condições de determinado país-sede de
organizar evento “tão importante”. Ao que parece, com o Manifesto ganhando
corpo em todas as capitais, tão importante quanto os jogos entre seleções será
mostrar ao planeta que somos um país pensante, crítico e, a partir de agora,
intolerantes. Intolerantes, e não vândalos. Sabemos distinguir a importância de
um bilionário estádio Mané Garrincha no meio do Nada Central e a insuficiência
das políticas públicas nacionais para atender, sequer, os candangos que
construíram a capital federal com uma vida digna. A mesma Brasília desfigurada
por favelas que assombram a paisagem urbana projetada pelo comunista Oscar
Niemeyer, comprovação da desigualdade que assola não somente, SP, RJ, RS, PR e
SC, mas o próprio Distrito Federal, no berço do governo do PT.
Vamos depender, daqui por diante, de uma compreensão da sociedade como um todo
sobre os reais motivos que levam o povo às ruas. A resposta tem vindo e de
maneiras discretas e sucintas, porém importantíssimas. Que o diga José Luiz
Datena e a Band subserviente da Globo, cujo Brasil Urgente quebrou as pernas,
ao vivo, nessa quinta-feira, 13 de junho. Crente de que a enquete sobre o que o
telespectador achava do manifesto em transcurso na capital paulista naquele
momento mostraria uma audiência contrária ao Passe Livre, o apresentador
engoliu a seco que quase o dobro de telespectadores era a favor do protesto.
Produção e apresentador, então, mudaram a construção de sentidos da pergunta e
a recolocaram no ar, na estaca zero. Na nova votação, apoio massacrante ao
protesto novamente, o que fez Datena render-se ao falido discurso de que “o
povo realmente está revoltado”. A enquete foi, então, definitivamente retirada do ar.
Foto: Reprodução/TV Bandeirantes
Na primeira enquete, Datena busca votos contra o protesto: não consegue.
Foto: Reprodução/TV Bandeirantes
Na segunda enquete a produção do Brasil Urgente adiciona "protesto com BADERNA"
na pergunta e amarga votação ainda maior a favor do manifesto: enquete é retirada do ar.
Mudamos, sim, nosso modo de entender o mundo. Mas, para
colocar em prática esse jeito de comprovar a insatisfação, continuamos lançando
olhar a partir do que o falido discurso midiático de estabelecimento da ordem
impõe. Basta rever a maneira como o protesto de ontem foi noticiado no Jornal
Nacional, da Globo, depois no Jornal da Globo e, enfim, nos Bom Dias São Paulo
e Brasil. A emissora com um discurso, mas seus repórteres, no front, com outro
discurso, tendo de encarar policiais com literalmente sangue nos olhos. Sonho eu, com utopia, ter acesso, um dia, ao conteúdo integral do que foi registrado, por
exemplo, pelo repórter Fábio Turci.
Ou mudamos, primeiro, o jeito de entender esse filtro de
interpretação sobre os fatos ou continuaremos acreditando que em Istambul, na
Turquia, a revolução está começando porque pura e simplesmente não se quer que
uma árvore dê lugar a um shopping center. Porque dessa forma a notícia não tem
de chegar escrita, mas, sim, acompanhada de desenho que a ilustre.
*Professor universitário, historiador e jornalista, é mestre
em Ciências da Comunicação pela ECA/USP.
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