03 Fevereiro 2013
Cláudio Messias*
Em meus 23 anos de jornalista
‘chão de redação’ cobri 68 tragédias. A ampla maioria delas na SP-270, a rodovia
Raposo Tavares, mais precisamente entre as cidades de Assis e Ourinhos. Até
2002 aqueles 64 quilômetros ficaram conhecidos em todo o país como Corredor da
Morte.
Todas as 68 tragédias
ficaram registradas em meus tradicionais cadernos de anotação. Sim, em vez de
blocos eu usava cadernos. Os blocos eram feitos, via de regra, nas gráficas dos
jornais, com papel-jornal, e facilmente esfacelavam. Já os cadernos podiam ser
organizados em forma de arquivo e, quando necessário, o acesso aos dados guardados
em sequência estava garantido, mesmo em casos de emergência.
Todo jornalista tem os
critérios próprios para classificar determinado acidente como tragédia. Não há
consenso para isso, nem mesmo nos manuais de redação. Uma criança de 9 anos
que, sob a guarda cuidadosa a mãe, é atingida por uma moto aquática e morre na
hora é envolvida em fato considerado como uma tragédia. Três ocupantes de uma
moto aquática que caem em alto mar e morrem afogados, contudo, podem estar envolvidos
em um incidente, e não necessariamente em um acidente ou tão pouco em uma
tragédia. Questões de interpretação que passam em fração de segundos na cabeça
de repórter, revisor e editor e que estampam manchetes a serem lidas e
consumidas por leitores, sejam eles assinantes ou frequentadores de bancas de
jornais.
As tragédias que cobri são
relacionadas a acidentes que mataram mais de duas pessoas, e em circunstâncias
em que a sobrevivência tinha chance nula de ocorrer. Quando isso acontece em
uma rodovia gera cenas que, em fotos, na maioria das vezes repórter, fotógrafo e editor
selecionam e coibem de divulgação. Circunstâncias que envolvem corpos esfacelados, difícil identificação de
idade ou até mesmo sexo das vítimas e a espantosa ferragem retorcida a que se
resume(m) o(s) veículo(s). Situações em que os agentes funerários têm
dificuldade para separar as partes dos corpos e distribuí-las nos caixões
correspondentes.
Sei de ocasiões em que a
pancada entre dois automóveis foi tamanha, em agressividade proporcionada pela
alta velocidade em que eram conduzidos, que tudo formou um monobloco, ou seja,
um objeto só, prensando duas vítimas naquele aglomerado de ferro retorcido.
Nessas circunstâncias o calor gerado em fração de segundos pelo impacto dos metais é tão elevado que
ao resfriamento gradativo tudo forma uma peça só, dificultando ao extremo o
trabalho de bombeiros, policiais rodoviários e agentes funerários. Assim, por
mais cuidadoso que seja o trabalho de cada uma das partes e, ainda por cima, os
jatos de água lançados para a lavagem das carcaças do que um dia foram dois
automóveis, ainda sobram resíduos que lançam mau cheiro por semanas.
Neste domingo, logo cedo,
ouço a viatura de resgate do Corpo de Bombeiros de Assis com o alerta de som
ligado. Antes, por volta de 4h15, eu havia levantado da cama e retirado do quintal a gaiola de meu
canarinho-do-reino para protegê-lo da chuva que estava por vir. Ali por volta
das 4h40 a chuva bateu forte. Fosse vinte anos atrás já ficaria, eu, alerta, sob a
expectativa de o telefone tocar e um fotógrafo me chamar para cobrir
determinados acidentes graves nas rodovias da região. Via de regra eram
acidentes no Corredor da Morte, comuns em dias e/ou noites chuvosas.
Não confirmei isso com meus
amigos bombeiros, mas, creio, o resgate fora acionado, hoje, para atender à colisão
envolvendo automóvel e caminhão, na SP-333, a rodovia Rachid Reyes, por volta
de 8h30. Pelas notícias que chegaram através de amigos que passavam pelo local
no horário, as três pessoas que morreram no acidente perderam as vidas de forma
instantânea. Vi fotos no aparelho celular e não tenho dúvidas de que havia
excesso de velocidade, ou do caminhão, ou do automóvel.
Acompanhei de perto as
obras que reformaram a SP-333, trecho entre Assis e Marília. Trabalhava na
imprensa de Marília, morando como sempre em Assis. A construtora responsável é
a Vale do Rio Novo, de Avaré, a mesma que atualmente reforma a rodovia
Paraguaçu-Rancharia-Martinópolis. Minucioso trabalho de recuperação da via
asfáltica velha e aplicação das novas faixas de rolamento, principalmente as
adicionais. No pacote, ainda, sinalização moderna, com revisão da anterior.
Vejo o acidente deste
domingo ocorrer naquele trecho, entre Assis e Marília. A pista molhada pode ser
um agravante, sim, nessas condições. Mas para provocar o estrago confirmado
através de fotos não há outra conclusão a tirar a não ser que a velocidade de
um dos dois veículos não era adequada às condições da pista. Com pista molhada,
todos sabemos, caminhão ou carro têm de reduzir a velocidade. Uma eventual
necessidade de frenagem é amplamente prejudicada com asfalto molhado ou úmido.
Suponho que a colisão a que
me refiro tenha ocorrido na descida após o Horto (sentido Assis/Marília). Basta
nos recordarmos que era exatamente naquele trecho que ficava um radar, anos
atrás. Se verificarmos os registros, o sujeito que controlava aquele aparelho
de fiscalização eletrônica passou por inúmeras situações de tentativa de
agressão e até mesmo agressão consumada, levando, talvez por isso, à
desativação. Há muito tempo não vejo mais radar naquela altura da rodovia.
Toda instalação de radar
ocorre mediante a critérios técnicos. Lógico que um aparelho desse não será
instalado no topo de uma subida. O será, sim, em trecho com constantes abusos
de velocidade. Basta, pois, para saber que o palco do acidente de hoje pela
manhã é passível de tragédias do gênero.
Estou recorrendo a esse
discurso para alertar que o palco de acidentes envolvendo vítimas mortas
independe, na maioria dos casos, da rodovia envolvida. Passamos décadas
acostumados a saber de tragédias dessa dimensão, matando três ou mais pessoas,
na SP-270. Mas o Corredor da Morte foi duplicado. E parou de matar? Não. Ainda
há acidentes com mortes. Não colide-se frontalmente com quem vem em sentido
contrário, mas perde-se o controle de direção, bate-se na traseira do veículo
da frente ou simplesmente acertam-se pilares de viadutos. E isso só para citar alguns
exemplos. Raros, mas muito raros são os acidentes, ali, em que os veículos estavam sob a velocidade média de 110 km/h.
No caso específico da
SP-333 temos o agravante de desvio de tráfego de caminhões, cujos motoristas
fogem dos 6 pedágios que dão acesso de Presidente Prudente ao início da
Castello Branco. Opta-se por desviar por Martinópolis, passar por Rancharia,
avançar por Paraguaçu Paulista, chegar a Assis e seguir rumo a Marília, onde pega-se
a rodovia Comandante João Ribeiro de Barros até Bauru e, então, desloca-se até
a Castello Branco. O caminho é mais longo, porém sem pedágios. O rastro dessa “economia”
que só contempla os bolsos dos caminhoneiros pode ser visto em ‘costelas’ que
atingem pistas de rolamento e terceiras faixas de rodovias com pouco mais de um
ano de reformo, como a Manílio Gobbi, entre Assis e Paraguaçu. É de dar dó ver
que toda a sinalização e o conjunto da reforma dessas rodovias estão novinhos,
mas incompatíveis com o estado das pistas, todas esburacadas devido ao excesso de trânsito e peso dos caminhões.
É nesse aspecto que tenho
vontade de ver na cadeia os responsáveis por aberrações que atingem há anos a
malha viária regional. Gostaria, mesmo, de ver atrás das grades aqueles que
assinaram o projeto e autorizaram a instalação de duas balanças na rodovia
Raposo Tavares, proximidades do trevo de acesso a Palmital. Fácil saber do que
estou falando. A quem está indo em direção a Ourinhos são as instalações
construídas exatamente depois da praça de pedágio. Foram investidos, ali, 5
milhões de reais. Na época, o DER tratou de acalmar a população regional, que
pensava se tratar de pedágio (a SP-270 ainda não havia sido privatizada).
Hoje as balanças estão desativadas.
Com a privatização, a Cart, que administra o trecho, não aproveitou as duas
balanças. Os prédios estão fechados e sabe-se lá o que o DER fez com os
equipamentos. Eu sei, sim, o que faria: colocaria na rodovia Manílio Gobbi,
entre Assis e Paraguaçu, ou então na Rachid Reyes, entre Assis e Marília. Com
certeza, o excesso de peso seria flagrado, os caminheiros, multados, e a
rodovia, poupada.
Infelizmente, vivemos em um
período em que os governos mais preocupam-se com a vida de quem está preso do
que com a segurança de quem está licitamente solto. Basta ver a situação em que
se encontra a mesma SP-333 que matou três pessoas hoje, só que no trecho entre
Assis e Florínea. Buracos por todos os lados, acidentes matando periodicamente
inocentes, enquanto, na mesma rodovia, quando se transita, vê-se placa com
propaganda do governo do Estado informando o investimento de R$ 32 milhões na
construção de uma penitenciária.
Fossem as nossas políticas
públicas mais justas e corretas, sem contemplar a carteira e as contas
bancárias de nossos políticos, e teríamos uma sociedade que, equânime,
reduziria a população carcerária. E esses R$ 32 milhões ajudariam a melhorar a
qualidade de rodovias e, assim, evitar acidentes que matam, de uma só vez, três
jovens. A mesma política pública, com certeza, renderia uma educação que,
complexa em abrangência, conscientizaria motoristas a dirigir em velocidade
racional e, assim, evitar tragédias nas mesmas proporções.
* Professor universitário,
historiador e jornalista, é mestre em Ciências da Comunicação pela ECA/USP.
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