quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

CAUSOS DA SUCUPIRA DO VALE - E a sucuri morreu sem ter comido o cachorro - com atualização


06 Fevereiro 2013 


Cláudio Messias*

Meu amigo Jura, da oficina, além de excelente cozinheiro – os amigos igualmente chegados em cozinha que me desculpem, mas Jura está no topo da excelência – é apreciador de fuga da cidade para, na zona rural, esquecer dos emblemas urbanos. Talvez esteja aí a essência do que nos faz, na amizade, nos identificarmos tanto.

Jura tem mais de uma propriedade fora de Assis, longe da zona urbana. Conta ele que alguns anos atrás, numa das fugas para reequilibrar a alma junto à natureza, foi para o rancho nos arredores do rio Paraná. E, lá, tinha um cachorro que o acompanhava permanentemente. E ele nem ligava tanto assim para o bichinho. Mas, mesmo assim, o companheiro fazia marcação cerrada.

Depois de limpar alguns peixes, fazer a boia, enfim, alimentar-se, Jura sentiu falta do cão. Na hora de tratar do animal doméstico, cadê ele? Assoviou, chamou pelo nome, bateu com os talheres nas panelas, fez som de afiar a faca, e nada. Verificou os cantos onde o bichinho dormia, nem sinal. Mais cuidadoso, verificou as partes do terreiro onde havia pegadas e tinha de tudo: rastros de galinha, de gente, mas não de cachorro.

Passada a digestão, Jura armou as varas e desceu ao rio para pescar. No meio da tarde, quase fim de noite, trocando de lugar em busca de melhor sorte na pescaria, deu de cara com uma sucuri, que adormecia bem junto à margem. Na barriga da danada um imenso volume, que fazia o couro brilhar. Duas emoções distintas no pescador: pernas trêmulas pelo susto e uma raiva incontrolável por ter matado o cachorro do rancho.

Jura sabia que a sucuri levaria muito tempo para conseguir locomover e fugir dali. Subiu até o rancho, chamou o caseiro, pegou um enxadão e voltou ao local. Antes de matar a cobra ouviu do caseiro a recomendação de não bater no meio, mas, sim, apenas na cabeça. Era para não romper o intestino do bicho e, assim, poupar a “parte boa”. Ou seja, o caseiro iria aproveitar a cobra para comer.

Algumas pancadas na cabeça e lá estava a sucuri morta. Jura estava satisfeito por vingar o cão desaparecido e, desde então, curioso sobre aquela novidade. Afinal, comer cobra, sabe-se, muita gente faz. Mas, comer sucuri era inédito. E lá foram os dois arrastar a cobra até o rancho, onde a abriram, fatiaram e guardaram. O cuidado ficou, mesmo, por não romper o estômago e o intestino daquela anaconda, partes essas descartadas longe.

O que surpreendeu Jura foi o cuidado que o caseiro teve de cortar somente a parte traseira da sucuri. Retirado o couro, as postas ficaram com aparência de carne de peixe. Carne clara e consistente. O dia já terminava e os dois, cansados, jantaram e retiraram-se, cada um a seu canto, para o repouso. Não sem antes guardar as postas de carne de sucuri, já temperadas e curtindo.

No dia seguinte, Jura, logo cedo, viu o caseiro complementando o tempero das postas de carne de sucuri. Até havia preparado outro cardápio à base de peixe para o almoço, mas chamou o colega para dividir a refeição. Queria, claro, provar daquela carne, cuja aparência era ótima.

Frigideiras ao fogo, lá foram os caçadores de sucuri comer a caça. Primeiro pedaço à boca e... gosto de peixe. Claro, disse o caseiro, sucuri é cobra mas é peixe. Tanto que nada e mergulha dentro da água, passando horas submersa. E se sucuri tem gosto de peixe e os dois gostam de peixe, o banquete estava servido com fartura.

Refeição feita, Jura separou os restos e lamentou que o cachorro já não existisse mais para aquelas refeições. A raiva fez o dono do rancho voltar a ter ódio da sucuri e, então, até gostar de ter comido a carne de cobra com sabor de peixe. Restos na panela e nos pratos sendo retirados com talheres e eis que Jura ouve um latido ao lado. Era, pois, o cachorro do rancho, abanando o rabo e todo sujo de barro, despertado pelo som característico que diz "tem comida".

Jura olhou para o caseiro e não acreditou. Os dois foram aos restos da sucuri e, então, abriram a parte que haviam preservado. Lá estava uma capivara, já em decomposição. O cão não fora, portanto, comido pela cobra. Tinha, sim, deveras, ido atrás de alguma cadela dos arredores, possivelmente no cio.

Atualização 1 - 23h57: Reencontro Jura, no jantar da bocha do ATC, e ele me corrige: em vez de capivara, a sucuri havia comido um jacaré, que estava inteiro, e não em adiantado estado de putrefação. E o ocorrido foi há mais de dez anos. Hoje, diz Jura, ele não mataria a sucuri; a cativaria!

* Professor universitário, historiador e jornalista, é mestre em Ciências da Comunicação pela ECA/USP.

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