19 Fevereiro 2013
Orelhão na rua Santos Dumont: mudo, abandonado
e sem conexão entre quem quiser falar e quem tiver de ouvir
Cláudio Messias*
Tive um companheiro de imprensa que por volta de 10 horas da
manhã e 3 da tarde parava o carro em frente ao orelhão que estivesse em seu
trajeto e ali gastava algumas fichas. Sim, raro e exceto leitor, ficha. Quem não
se lembra das fichas de metal que comprávamos para fazer as ligações com
duração de três exatos minutos? Sim, quem lembra disso tem, hoje, mais de 40
anos de idade.
Meu amigo de imprensa repetia o hábito de telefonar em
orelhão diariamente. Pela manhã, marcava encontro secreto para o horário do
almoço. À tarde, o encontro era agendado para a noite seguinte. E assim ia
aquele Michael Douglas da Sucupira do Vale. Um doente de amor, que só não
procurava remédio na vida noturna, mas, sim, na vida diuturna.
A geração cara-pintada que até hoje acredita ter cassado
Collor da Presidência já pegou a época dos cartões magnéticos, que mais adiante
podiam ser até recarregados. Tudo para falar e ser ouvido por intermédio de
orelhões.
E já que chutei o pau da barraca parodiando o ‘poema’ de
Joaquim e Manoel, afundo de vez o pé na jaca ao recordar de uma cena, dez anos
atrás, em Marília. O salão de beleza em que cortava mensalmente o cabelo tinha
uma cabeleireira que reclamava permanentemente do marido, um pedreiro nada
carinhoso, segundo ela, e que só queria saber de cinco minutos (wow).
No reprodutor de CD em cima da penteadeira do salão tocava,
sempre, o CD, da época, de Bruno e Marroni. E tinha uma música dessas feito
chiclete grudado no cabelo, que ficam no cérebro e não saem nem à base de gelo,
cânfora e pinga. Não sei o nome daquilo que chamam de melodia, mas a letra
dizia assim “Alô, amor, estou te ligando de um orelhão. Está um barulho, uma
confusão. Mas eu preciso tanto te falar”. E mais adiante a letra ainda dizia
que “Um beijo pra você, não posso demorar, estou numa ligação urbana, vem
correndo me encontrar”.
A cabeleireira do salão da rua São Luiz, sempre que essa
música era tocada, dava suspiros e muitas vezes até parava o corte, olhando
para o nada com semblante de apaixonada. Paixão pelo marido brucutu? Nada.
Paixão por alguém para quem ligava de um orelhão que ficava na mesma quadra do
salão. E quando tocava a danada da música de Bruno e Marroni ela lascava uma
dessa: “tá na hora de ligar pro meu amor”.
Com a privatização da Telesp, nos anos 1990, houve uma
cláusula de contrato que previa a obrigatoriedade não só na manutenção dos orelhões,
mas na ampliação desse tipo de serviço, principalmente na periferia. Até pouco
tempo atrás via-se até um selo etiquetado no interior dos orelhões verde-limão,
informando a data em que houve o processo de higienização.
Nunca mais vi desses selos, até porque não me recordo da
última vez em que usei esse tipo de telefonia. O que ouço dizer é que os orelhões
estão cada vez mais emporcalhados, e abandonados. Peças de museu reduzidas a
essa condição pela explosão de uso dos aparelhos de telefonia celular, os
orelhões até deixaram de ser jabá em emissoras de TV no mês de janeiro, o mês
do ano mais sem-pauta de todos. Basta se esforçar e você, raro e exceto leitor,
se lembrará de algum dia ter visto uma reportagem de TV mostrando pilhas de
orelhões danificados por vândalos, colocando em risco a vida de quem, numa
emergência extrema, mas bem extrema mesmo, tivesse de ligar para a polícia, os
bombeiros ou o(a) amante.
Há dias, com a mudança de direção da rua Santos Dumont, aqui
em Assis/SP, um orelhão me chama a atenção. Ele fica situado na mesma Santos
Dumont, na quadra abaixo do cruzamento da linha férrea. Ou seja, a algumas
quadras da sede da Telesp, que depois passou a Telefônica e hoje responde, por
enquanto, por Vivo. Parei, por curiosidade, lá, na semana passada. E testei o
orelhão, que estava mudo. E o que é mais interessante: mantém a mesma cor
verde-limão da antiga Telefônica, escapando da renovação que levou as cores
azul e roxo aos novos velhos orelhões.
Não sei se a Vivo vai reativar ou padronizar aquele orelhão.
O que sei é que aquele orelhão, cujo design já dá sensação de alguém
cabisbaixo, baixo astral, tem histórias para contar. E assim como os mais
velhos, que são os que mais têm histórias para contar, em quantidade e
qualidade, os orelhões estão esquecidos no tempo, como se já tivessem feito
parte na história e, agora, precisassem cerrar os olhos.
* Professor universitário, historiador e jornalista, é mestre em
Ciências da Comunicação pela ECA/USP.
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