Cláudio Messias*
A distância física, geográfica de Assis pesa, mais, nos momentos de despedida definitiva das pessoas com quem convivi nesses, até agora, 45 anos de vida. Não poder dar o toque derradeiro de mãos, compartilhar com as famílias igual momento de dor, enfim, certificar de que ali parte o corpo de uma alma inesquecível, potencializa essa sensação de tristeza. E é dessa maneira que recebo a notícia de que horas atrás a boa alma de meu amigo Josias Gomes deixou seu surrado e debilitado corpo em um leito do Hospital Regional.
O meio rádio não perde a voz de Josias Gomes, como fataliza-se em momentos como o de agora. Um profissional do rádio é eternizado tecnologicamente com seu capital simbólico maior, que é a voz. Afinal, o meio rádio é o único em que, não for a qualidade do áudio gravado, a veiculação de uma voz não pode ser definida, pela audiência, como vinda de uma mídia de arquivos ou de microfone aberto. Um programa gravado hoje na íntegra pode ser executado amanhã, exatamente no mesmo horário, com a encenação de que seja novamente ao vivo. E, não obstante, temos áudios arquivados de locutores de quem nos despedimos há décadas e que, se ouvidos, executados, nos permitem ouvi-los como se nos estúdios estivessem.
Josias foi voz marcante no rádio de Assis na década de 1970. Um jovem sonhador, que comandava programas na rádio Cultura de Assis e comovia multidões. Era comparado por Luiz Luz, com quem, nesse momento, deve estar a atualizar as conversas naquela outra dimensão que acreditamos existir, a Lourival Servilha, que chegou ao céu mais precoce. Talento que seguiu o caminho de outros grandes donos de microfones, que saíram do Interior e foram ser chamados de caipiras bons de voz na capital. O sonho de Josias foi eterno enquanto durou. Bem sabia ele que seu lugar era aí, na nossa Assis, ao lado da família que nunca o abandonou.
Conheci Josias em 1985, quando de meu ingresso nesse universo maravilhoso do rádio. Era a materialização do meu sonho, ou seja, de ouvinte fanático por rádio, ser um radialista. E Josias foi um dos interlocutores com quem abri, logo de início, aquela realização de um sonho. Numa tarde, na apertada copa da Cultura AM, no antigo prédio da Capitão Francisco Rodrigues Garcia, eu, ele e Linda, a copeira, tomávamos chá mate e lanchávamos pão com presunto. Linda é sogra de meu irmão Claudinei e naquela época via a filha, Solange, há então alguns meses de início de namoro. Mas era sabedora da minha vontade, realizada, de estar lá, na emissora da família Camargo. Eu queria, sim, trabalhar em rádio, mas teria de ser na Cultura. Identidade de fã, de ouvinte. Hoje, uma parte de meu currículo que conto e eternizo como orgulho.
Josias, ouvindo minhas histórias (ah, esse blogueiro contador de histórias...!), revelou-me a sua. Não sei precisar a idade dele na época, mas uma paralisia parcial em um os lados do corpo o fazia ter, se não estou enganado, os dedos da mão direita um pouco atrofiados, da mesma forma que ao caminhar, puxava uma das pernas. O locutor havia sofrido um AVC, ou, simples e complexamente, um derrame cerebral. Estava vivo, saudável, porém herdava as consequências desse tipo tão temido de anomalia. A voz continuava linda, forte, brilhante, mas o organismo não correspondia, mais, ao necessário equilíbrio que desse estabilidade à construção de longos enunciados.
De locutor com horário na grade de programação da Cultura AM Josias passou à condição de agente comercial, que vendia propagandas. Tinha o privilégio de vender o anúncio e gravar com a própria voz a propaganda veiculada na emissora. Como bico, ou seja, complementando a renda já reduzida que tirava na emissora, ia regularmente ao estúdio de Rodolfo Hansted, ex-integrante da banda MacRybel, onde gravava profissionalmente para empresas numa época em que ainda não existiam agências de publicidade.
Mas, voltando à história contada por Josias, foi vendo o meu sonho realizado que ele falou do dele, interrompido. Não sei especificar se é rádio Globo, rádio Record ou qual de outras grandes emissoras de São Paulo que contratou o assisense, no início dos anos 1980. Colocado em um hotel no centro da capital, ele chegou de trem na estação Júlio Prestes, depois de um período de despedidas em que deixou amigos, família e uma história então recente no radialismo de Assis. Foi acometido pelo derrame num domingo, antes mesmo de estrear seu programa na emissora paulistana. Hospitalizado, ficou entre a vida e a morte, mas, sabemos, tinha uma missão a cumprir. E cumpriu.
Josias não foi amparado pela emissora que o havia contratado. Era um período em que para ter o registro profissional de radialista demandavam-se semanas ou até mesmo meses. Foi buscado pela família e colocado em casa, em Assis, para recuperação. E foi a rádio Cultura, que o revelou, a emissora que o acolheu para que a magia da vivência no rádio fosse restabelecida. Com um olhar característico em que fixava algo no horizonte, no infinito, Josias contou-me sobre aquela mágoa, superada, e deu-me conselhos. Sim, ele era um dos muitos profissionais que me adotaram na Cultura AM, para orientações que valeram e valem pela vida.
Nunca fui adepto a vícios, por uma questão de identidade pessoal. Mas ouvi por mais de uma vez de Josias que deveria primar pela saúde, prioritariamente, e, depois, saber escolher o círculo de amigos pelo qual transitaria na minha vida. Volta e meia, vendo-me aproximar de determinados grupos direta ou indiretamente ligados à rádio Cultura, Josias chamava-me para tomar um café ou um chá na copa da emissora. Era um guardião meu e de minha irmã Marcilene, recepcionista e telefonista na Cultura. Ouvi e atendi à maioria dos conselhos dele, que era irmão de Isaías Gomes, o Gordo, com quem construí uma grande amizade um ano depois de ingressar naquela emissora.
Na década de 1990 fui morar com minha mãe no Parque das Acácias, mesmo bairro onde Josias residia. Nos encontrávamos no ônibus circular ou mesmo nos trajetos a pé. Sim, comigo, Josias saía dos arredores da banca da Catedral e ia até a Cohab caminhando. Levávamos até o triplo do tempo normal, pois meu amigo caminhava com dificuldade. Não importava. Tudo era compensado pelos assuntos diversos e pela jamais escassa variedade de histórias que ele tinha para contar. Travessuras da infância, aventuras da juventude, mas, sempre, um respeito pela família, pela esposa, pelas filhas. Jamais testemunhei uma circunstância em que Josias tivesse faltado com respeito para com qualquer figura feminina. Era, publicamente, um homem de respeito.
Um dos últimos reencontros com Josias aconteceu na avenida Rui Barbosa. Não sei precisar o ano, mas foi no período em que eu fazia o mestrado na USP. Talvez, 2011. Com seu jeito atencioso, educado, fino e eternamente elegante, ele veio e, fazendo o barulho característico com estalar, na boca, disse algo mais ou menos: "tac! - pô, vem cá, dá um abraço, você é um rapaz do meu respeito", em alusão à minha nova função, de pesquisador e professor. Nos despedimos e ele saiu com aquele jeito característico, à Charles Chaplin, transeunte pela 'avenida', acometido ainda mais por outros AVCs que teve.
Josias, soube, passou mais de 30 dias internado. Deus levou mais de um mês para convencê-lo de que é melhor juntar-se aos seus antepassados e aguardar por todos nós ao lado Dele. "Pô, Deus, Você tem certeza que eu tenho que ir?" foi a pergunta que o Pai lá em cima ouviu dele durante longos 30 anos. Hoje chegou a hora do "sim, vem nos brindar com sua presença, Josias Gomes". E o céu ganha mais uma bela voz em forma de alma pura.
* Professor universitário, historiador e jornalista, é mestre e doutorando em Ciências da Comunicação pela ECA-USP.
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