sexta-feira, 27 de agosto de 2021

POLARIZAÇÃO - A mania que se tem de definir outrem

 Cláudio Messias*



Dia desses vi a reprodução de uma foto de muro (sim, muro desses que findam uma parte das calçadas) que trazia os dizeres, em grafite: "você achar não quer dizer que eu seja". Parece uma dessas bobagens que postam-se diariamente, principalmente nos inícios das manhãs, nas redes sociais. E pode mesmo ser, pois a vi no Twitter.

Esse enunciado, contudo, representa, e bem, o quão as pessoas têm, nos últimos anos, tentado interferir na identidade de outras pessoas. Pior ainda é quando algumas pessoas tentam interferir na identidade de quem sequer são amigas ou com quem têm afinidade.

Desde 2019, quando o Brasil iniciou seu pior período histórico de exercício do estado democrático de direito, fruto das eleições gerais do ano anterior, tenho evitado o uso das redes sociais. Sim, já fui um chato confesso do Facebook, especialmente no tocante a futebol. E numa eleição caracterizada pela polarização das linhas de frente, claro, minha chatice aguçou.

Na semana seguinte ao segundo turno das eleições de 2018 fiz uma limpa em meu Facebook. Perfis com bandeirinha do Brasil, tchau. Observava o status "amigos" e só via o marcador baixar. E quando eu deletava alguns perfis, confesso, me perguntava sobre o porquê de aquela pessoa estar ali na condição de minha "amiga", se não o era. Poderia, sim, ser um/a conhecido/a. Mas, amigo/a é outra esfera, outro clima, outro pega.

Sempre que levo puxões de orelha, os recebo de amigos/as. São eles/as, os/as amigos/as, que nos puxam e dizem: "desça daí". E quantas vezes, nas situações em que evitamos passar por carões ou tragédias, olhamos para trás e vemos que nosso trajeto foi alterado a partir de uma conversa ou de um conselho de um/a amigo/a!

Na vida nunca fui de muitos/as amigos/as. Construí as tais amizades sólidas por onde passei, mas não com a frequência e o quantitativo que possa dizer, hoje, que sou uma pessoa rodeada por amigos. E é interessante ver o quanto o tempo é quem nos sinaliza quem sejam os/as amigos. Passe o tempo que passar, o/a seu/ua amigo/a, no reencontro, mostrará que é e sempre foi... seu/sua amigo/a.

Dos tempos de escola no Clybas, onde estudei até o segundo colegial (ensino médio) e no Henrique Zolner, onde concluí o ensino médio em curso supletivo, aos tempos do futebol no Buracanã, nome que demos a um campo de futebol que existe até hoje ao lado do prédio de Letras da Unesp, as amizades persistem.

Igualmente, boas amizades advêm da iniciação profissional, desde os tempos em que entregava medicamentos para a farmácia do seo Daniel, na rua João Pessoa, e era cobrador dos escritórios ServTec, em frente ao antigo Cine Pedutti, e Alevato, que ficava em prédio em frente às atuais instalações da Receita Federal, na Ângelo Bertoncini.

Na imprensa, o que dizer das amizades construídas nas mais de duas décadas de redações da vida, começando pela dupla função sonoplasta/redator na Cultura AM/FM, em 1985, e chegando até a mesma emissora, em 2006, ano de minha última passagem formal pelo jornalismo, antes de iniciar minha trajetória acadêmica de sala de aula!

Reconheço não ser dos seres mais empáticos. Me satisfaço, nesse sentido, com a empatia que é a marca registrada da mulher da minha vida, Rozana, cujo sorriso é a marca de sua identidade. Eu, de poucos sorrisos, sempre fui dos mais reservados, menos faladores e, por conseguinte, mais discreto e, inevitável, observador.

Até hoje, docente em universidade pública, mantenho relações interpessoais de vivência mais próxima com o mesmo perfil que tinha nos tempos de redações da vida. Talvez influenciado pela exploração que sofria nos escritórios de contabilidade, onde tinha de fazer faxina todos os sábados pela manhã e nos banheiros, diariamente, sempre olhei com mais atenção para os/as profissionais dos serviços gerais.

Sempre que reencontro essas pessoas com as quais dividi confidências sobre minha conturbada vida familiar de solteiro (pais divorciados, etc) o abraço é tão ou mais caloroso do que aqueles afagos dos tempos de outrora. A isso eu denomino amizade verdadeira, que sobrevive ao tempo.

Em contrapartida, pessoas com as quais trabalhei e que na minha condição de mais calado e ainda mais observador eram faladoras, badaladas e meramente colegas de trabalho, por vezes reencontro e deparo com duas possibilidades: ou não me reconhecem ou reconhecem e fingem não reconhecer. Quantas foram as vezes, nesses últimos anos, em que um/a ou outra/a por mim passou e apesar do meu esboço de cumprimento, simplesmente não retribuiu! Falta não fez, falta não faltará, mas, confesso, macho isso muito estranho.

Muito dessas reações em reencontros tem a ver com a tal da polarização das vivências passadas. E no jornalismo isso fica ainda mais cristalizado. Você ser neutro, sem declarar seu posicionamento para direita ou para esquerda, já o coloca na posição de suspeição. Logo, a direita o vê como esquerdista disfarçado e, pior, a esquerda o vê como direita declarado, pois em cima do muro é ser, no mínimo, tucano.

Naqueles 21 anos de redações da vida fiz amizades com algumas figuras que, do meu respeito, muito me orientaram. Cito apenas dois, entre tantos: Bentinho, locutor da Cultura AM, e José Santilli Sobrinho, ex-prefeito.

Bentinho abria a programação da Cultura AM às 6 horas da manhã, enquanto eu fazia a sonoplastia da Cultura 2 FM, também às 6h00, reproduzindo gravação de Chico de Assis, o poeta. Chegávamos juntos e muitas vezes, quando dona Linda, a serviços gerais, dava uma atrasada, era eu quem abria a porta do prédio que então ficava na Capitão Francisco Rodrigues Garcia.

Via de regra, quando eu era quem abria a porta, a rádio era colocada no ar pelo menos 5 minutos depois das 6h00. Esses cinco minutos eram o tempo que Bentinho levava para subir todas as escadas do prédio, até chegar ao segundo andar. Nunca o deixei para trás. Subíamos juntos.

Às 8 horas da manhã, todos os dias úteis da semana, Bentinho descia até a redação, no primeiro andar, comigo. Eu começava o dia sonoplasta do FM e depois ]passava manhã e tarde na redação. Era redator dos informativos do AM e do FM e editor do Cultura Notícias, que ia ao ar de meio-dia a 12h50, no AM, com locução de Luiz Luz.

Bentinho sentava em uma cadeira reservada a visitantes/entrevistados e se apropriava dos jornais impressos. Lia página por página do Notícias Populares e dos diários Voz da Terra e Gazeta de Assis. Da Folha de São Paulo lia o primeiro caderno e Cotidiano, que tinha esportes. Do Estadão, o caderno Cultura.

Muitas foram as vezes que acompanhei Bentinho pela região. Foi com ele que conheci, presencialmente, Tião Carreiro, em 1986. Fomos, numa noite, a um rancho no Porto Almeida. Não tenho condições, hoje, de recordar qual rancho era, muito menos os proprietários. Parece-me que eram da família Quintino, com quem o locutor tinha próxima amizade. Mas, não tenho certeza.

É fato que Bentinho era uma referência nacional na música sertaneja. Muitos cantores e duplas lançavam seus discos colocando na rota de divulgação a rádio Cultura de Assis. E foram muitas as vezes em que vi Bentinho marcando na contracapa dos LPs as músicas que, indicava, fariam sucesso. Nós as ouvíamos na discoteca com Magui, o discotecário, e não muitas semanas depois as gravadoras confirmavam o prenúncio de Bentinho, enviando discos promocionais (continham apenas duas faixas de músicas, uma de cada lado), coincidindo com o que o locutor havia marcado muito antes na contracapa.

Nessa amizade com Bentinho vez ou outra sentávamos na lanchonete Ponto Chic, na pastelaria do João Corinthiano ou no Bar da Amizade, na JV da Cunha e Silva, para prosear. Eu tomava um refrigerante e comia um salgado ou um pastel. Bentinho tomava uma ou duas doses de cachaça, chupava laranja sem tirar a casca e comia ou um ovo cozido ou uma salsicha, ambos de conserva.

Bentinho confidenciava ser admirador de Fidel Castro e tecia críticas severas à elite assisense. Não era amigo de políticos, não os recebia, jamais os promovia e deixava claro isso à família Camargo, dona da rádio. Profissional, animava um comício ou outro, com shows, a pedido dos artistas que haviam sido contratados. Não raras vezes reclamava não ter recebido cachê, sob a alegação dos políticos contratantes de que o locutor trabalhara bêbado, sendo, na realidade, que havia ocorrido a renúncia de falar o microfone algo que promovesse candidatos.

Era o jeito Bentinho de ser. Um são-paulino roxo, provocador e esquentado, principalmente em situações em que seu time perdia para o Palmeiras de Celsinho Magui ou para o meu Corinthians, que também era de Carlinhos Perandré, Alves Barreto e Maurílio Siqueira.

Bentinho me dizia que bebia todos os dias para ignorar o quão podre era a sociedade aristocrática assisense. Seu sucesso, dizia, acontecia "apesar de...". Não era para ele dar certo, muito menos para ser o principal locutor da emissora. Mas, a programação da Cultura AM clareava o dia com Bentinho no ar e fechava a tarde, no crepúsculo, com a mesma voz.

Nas orientações que me deu na vida, a que talvez mais tenha feito sentido, vejo agora, é aquela em que o locutor dizia que há duas certezas na vida profissional: uma é que nem todos são ou serão seus amigos no trabalho, que é competição, e a outra, é que jamais um patrão será seu amigo. Patrão é amigo de outro patrão, e assim ocorre a exploração, dizia ele. Enquanto os profissionais da comunicação rivalizam no mundo do trabalho quando atuam em empresas concorrentes, o patronato dialoga para dividir o lucro do mercado.

Bentinho criticava o excesso de vaidade dos profissionais de comunicação, fator que desunia a categoria e promovia as empresas. A luta de classes, dizia, dava lugar à luta de vaidades. Trocava-se a resistência à exploração pela porosa promoção individual.

Na estrada rural no prosseguimento do Centro Social Urbano de Assis residia o casal José e Cida Santilli. Certo dia, sob mediação do professor da Unesp José Luís Guimarães, fui até a chácara da família Santilli. Era um sábado à tarde, no ano de 1992. Meu nome circulava como passível de compor a equipe de comunicação que trabalharia a campanha que faria Zeca Santilli retornar à Prefeitura de Assis.

Lá, com a presença, também, de um ex-companheiro de trabalho, José Zancheta Júnior, com quem trabalhei na rádio Antena Jovem três anos antes, participei das conversas e, quando ouvido, me posicionei sobre algo que mantenho até os dias atuais: não desenvolvo trabalho político-partidário. Não tinha nem nunca tive filiação partidária. Apenas tive e tenho minha identidade com a esquerda, ainda assim dentro de uma neutralidade que jamais me fez confundir as coisas quando o assunto é o mundo do trabalho.

Recordo-me da cena em que, naquele dia, seo Zeca estava sentado em uma cadeira de área, na varanda, com os cotovelos apoiados e os dedos das mãos entrecruzados. Pouco falava e, quando falava, pouco se entendia. Mas, ali, ele não precisava falar. Aquele senhor me observava com um olhar que abria oportunidade para novos reencontros, futuro.

Já eleito, seo Zeca pediu que José Luís Guimarães, seu secretário de Educação na gestão da Prefeitura, me convidasse para retornar à chacara. Era também um sábado, o ano era 1993, e lá chegamos com igualmente um número reduzido de pessoas. Além de Zé Luís estavam outros três secretários: o da Fazenda, Reinaldo Teixeira, a da Saúde, Maria Carricondo, e o chefe de gabinete Euclides Nóbile, o Clidão. Além, claro, de Maurício Toni, figura inseparável do prefeito.

Rolava um churrasco, comandado por Pacu, um dos mais competentes churrasqueiros com quem convivi socialmente nessa breve vida. E como chegamos já passando das 15 horas, pois Zé Luís era estratégico e sabia que naquele horário os comedores de carne e tomadores de cerveja já teriam cumprido suas missões e ido embora, pude dialogar com tranquilidade com seo Zeca.

Foi a primeira ocasião em que proseei com aquele velho político. Velho no sentido da experiência, e não pela idade. 

Dona Cida logo sentou-se próximo e mais assistiu à prosa do que dela participou.

Não foi, pra mim, surpresa ouvir de seo Zeca que aquela conversa era desdobramento do encontro anterior, ocorrido na fase anterior ao início da campanha eleitoral. O velho político dizia, então, que eles, da classe política, não são acostumados a receber "não" como resposta, ainda mais a propostas que envolvem remuneração.

Zeca Santilli ficou inquieto, para não dizer incomodado, com o fato de um comunicador ter rejeitado a proposta de trabalhar na campanha dele. E, ali, ele quis saber o que havia levado àquela resposta: a proposta ou a campanha? Eu respondi que nenhum dos dois fatores. Afirmei que, sim, minha renúncia estava relacionada a um posicionamento pessoal de não associar meu trabalho à política partidária.

Afirmei que aquele havia sido o primeiro convite em meus até então 7 anos de radialista para trabalhar diretamente na política partidária. E que renunciei à proposta um tanto incomodado, pois reconhecia em Zeca Santilli um político com histórico de investimento em educação e meio ambiente, bandeiras que sempre defendi, desde a juventude. Recordei, com ele, uma fala sua do final do primeiro mandato, nos anos 1980, quando afirmou, na entregado das quadras e pista de skate do Buracão, que não estava focado no crescimento de Assis, mas, sim, no desenvolvimento.

Seo Zeca afrontava os sonhadores de uma Assis com 100 mil habitantes. Dizia que100 mil habitantes em uma cidade cidade sem infraestrutura são 100 mil problemas. E naquela tarde de sábado ele reafirmou que acidade, com seus quase 90 mil habitantes na época, seria a melhor localidade do país, em qualidade de vida, caso mantivesse a meta de investir na tríade educação-saúde-saneamento básico.

Bentinho e seo Zeca não são recordados como os melhores nomes de suas áreas. Hoje falecidos, talvez em seus últimos dias de lucidez tenham preparado para despedir da vida nem um pouco preocupados ou amargurados com as pessoas que os definiram fora do contexto dos sujeitos maravilhosos que aos meus olhos e meus ouvidos foram.

Ficaria, aqui, por horas e mais horas, páginas e mais páginas, escrevendo sobre as circunstâncias em que os diálogos com Bentinho e seo Zeca renderam reflexões para a vida. São causos interessantes, a meu ver, mas que certamente engrossariam o discurso polarizado de quem insatisfeito/o com a gestão da própria vida, ainda cuide de definir outrem por suas ações e palavras.

Para, pois, encerrar, foi num contexto assim que, dia desses, em grupo de whatsapp criado para apoiar a candidatura de um vereador de Assis, comentei sobre postagem anterior que na universidade pública onde leciono um colega fez comentário, também em grupo, de que alguns países estão proibindo a entrada de brasileiros que receberam a primeira dose da Coronavac. A intenção era observar o quão desinformada é parte da população, pois nem brasileiro nem qualquer outro cidadão do planeta estava autorizado a entrar em determinados países, seja qual for a vacina recebida, pois as fronteiras estavam fechadas no auge da pandemia.

Uma pessoa a quem não conheço ou, ao menos por nome, desconheço, fez comentário sobre minha postagem. Em princípio, entendi que ela estava interpretando que aquele professor citado na minha postagem era eu mesmo. Ratifiquei que me referi a outro professor, que, por sinal, tem o direito de entender o que quiser das vacinas cujo princípio ativo vem da China, não cabendo, tão somente, fazer a infundada afirmação de que vacinados com Coronavac estavam sendo preteridos, em trânsito, por esse motivo.

Na tréplica, em forma de comentário, a pessoa encerrou insinuando esperar que eu tenha me arrependido do voto que dei em 2018, considerando o cenário devastador com o que o país está sendo governado.

Optei por não dar continuidade àquele debate. Primeiro, tenho certeza de que aquela pessoa não me conhece. Se me conhecesse o suficiente, saberia que sequer votei em 2018, tanto em primeiro quanto em segundo turno. Trabalho no Nordeste desde 2014, mas meu título de eleitor continua em Assis. Em 2018 eu havia assumido a coordenação de graduação de meu curso meses antes da eleição e, assim, não tive condições de vir votar no Clybas.

Naquela eleição travei, sim, duas batalhas. A primeira, em família, provocou um racha que até hoje me faz manter distância de familiares alinhados ao bolsonarismo. A segunda eu já citei no início desse texto, pois fiz uma limpeza na lista de "amigos" cujas postagens comemoravam a vitória do Coiso no dia seguinte ao segundo turno.

Portanto, as pessoas precisam, primeiro, ter informações claras sobre outrem, antes de tecer comentários em que relação a quem acham que conhecem. Aquela pessoa, infeliz pelo comentário que fez no grupo de whatsapp, sequer imagina que no ápice da minha batalha anti-Bolsonaro, eu pedi e fui atendido que minha mãe, cuja a facultava da obrigatoriedade de de voto, fosse à Escola Francisca, na Vila Glória, e votasse em Haddad.

Ou seja, eu não votei no segundo turno, em 2018, em Assis. Mas, um dos votos que Haddad teve em Assis ele não teria, pois minha mãe, que havia feito uma cirurgia no joelho direito então recentemente, não iria votar. Ela, que faleceu por Covid-19 em 29 de janeiro desse ano, solidarizou comigo, ante a um massacre que passava por parentes bolsominions, e votou 13.

A mania, dentro de uma cultura nefasta, que se tem de definir a outra pessoa sem sequer conhecê-la gera situações assim. Não sou petista, nem lulista, mas, irredutivelmente, sou antibolsonarista. Há algum tempo não tenho mais perdido meu tempo discutindo com bolsominions, muito menos com quem, por saber que não sou petista nem lulista, faz ilações vazias.

É fato que em 2022 voto em qualquer coisa que derrote Bolsonaro e livre o Brasil desse buraco-sem-fundo a que o país foi submetido. Igual a 2018, a tendência é que meu posicionamento seja um no primeiro turno e outro no segundo. Até dia desses eu via em Lula a via que levaria à vitória sobre Bolsonaro no ano que vem. Mas, o flerte dele com o MDB, na sua estada atual pelo meu Nordeste, mostra que meu voto, de esquerda, tende a trilhar por outra legenda. Somente se for com o Coiso para o segundo turno, aí sim, meu voto, sem outra opção, fica assim definido.

Antes que desinformados/as tirem conclusões parciais, apesar de não ter votado, em 2018 meu posicionamento foi por Boullos/Erundina noprimeiro turno e Haddad, no segundo.

E se quiserem tirar as mesmas conclusões, que tirem. Como ilustra o mural, "você achar não quer dizer que eu seja".

* Professor universitário, historiador e jornalista, é doutor em Ciências da Comunicação pela ECA/USP.


sexta-feira, 20 de agosto de 2021

NOSTALGIA - Minha curiosidade com o que havia dentro da máquina de escrever

 

Cláudio Messias*

Hoje decidi retomar minha escrita aqui nesse espaço do blog. Sei, claro, que nos tempos atuais de consumo instantâneo de informações os textos longos, minha característica desde os tempos de redações, andam um tanto preteridos.

Não tenho estatística que fundamente isso, mas, parece-me, a maioria prefere os textos curtos. Não por acaso as redes sociais tornaram-se disseminadoras de informações incompletas (não me refiro a notícias falsas). Sabe-se de algo e antes de aprofundar na busca pela informação completa, compartilha-se aquilo que se sabe, nem que seja conhecimento parcial.

Não me abalo. Afinal, nesses 36 anos atuando na ou estudando a comunicação jamais busquei o consenso, a unanimidade ou a aprovação da maioria. Aqui, no blog, sempre me refiro aos raros e excetos leitores.

Mas, não voltei a escrever para patinar nesse assunto. A comunicação, assim como a língua, é viva, mutante e em suas metamorfoses exige adequações, adaptações e renúncias, às vezes. Meus textos longos, são, pois, renúncia.

O prazer pela escrita, de minha parte, remete à infância. Na máxima de que pisando no terreno das Humanidades nunca fui lá sequer mediano nas Exatas meio que faz e fez sentido em minha vida, apesar de ser adepto e por conseguinte simpático às estatísticas, às probabilidades e, por que não, aos algoritmos.

Na pesquisa científica meus passos perpassam, não por acaso, pelas abordagens quali-quantitativas. Tornei-me um fascinado, no doutoramento, pela meta-análise e no estudo das variáveis. Escrever, pois, uma tese no terreno das ciências sociais aplicadas tendo por base números que sinalizam probabilisticamente para certa razão no comportamento humano de consumo é, nesse prisma, um fascínio.

Na infância um mecanismo de escrita despertava minha curiosidade: a máquina de escrever. Observava aquelas Olivetti, via as pessoas apertando com certa força as teclas, as fitas de tecido carregadas com tintas nas cores preto e vermelho e as folhas sendo giradas a cada linha preenchida.

Minha curiosidade não estava relacionada ao que era escrito, mas, sim, à forma como aquela geringonça fazia com que o que estava na intenção comunicativa do/a digitador/a saísse na folha de papel.

No meu imaginário era mais ou menos como observar um automóvel. Você o vê em movimento, acostuma-se com isso e o que está em síntese é a estética do sensível, fenômeno fundamentado pelo francês Jacques Rancière e que nos mostra que no cotidiano de repetições das ações humanas ficam submetidos a uma camada invisível da percepção eventos que fundamentam aquilo que por vezes nos comove.

Um/a datilógrafo/a repetia incontáveis vezes, no seu cotidiano, a digitação em folhas de papel que sua comoção sobre o objeto denominado máquina de escrever só era despertada em situações como pequenos defeitos que impediam o funcionamento. Uma tecla travada, a fita bicolor que saía do carrinho de alinhamento ou pura e simplesmente um defeito no mecanismo central.

As antigas máquinas de escrever careciam de manutenção periódica. Substituição da fita bicolor era feita conforme a demanda. A fita ia sendo usada e simplesmente esgotava, chegava ao fim. Em momento assim tinha-se que retirar uma tampa superior e fazer o rebobinamento da fita. Uma fita era passível de ser usada duas vezes. No máximo, três vezes, pois a impressão do que era digitado ia ficando “apagada”, desgastada.

Trabalhar com máquina de escrever significava, ao longo do tempo, duas coisas básicas, na característica estética comum de um/a datilógrafo/a: desenvolver a lesão por esforço repetitivo (LER) e as pontas dos dedos, principalmente os indicadores direito e esquerdo, mesclando as cores preto e vermelho.

Havia quem usasse flanelinhas ou mesmo pedaços de papel na tentativa de fugir do borrão de tinta nos dedos, mas, sem chances, as mãos não ficavam limpas. Para piorar, os rolinhos de fita de tinta bicolor continham um tecido com composição química à base de álcool, ou seja, você sujava os dedos e a tinta secava rapidamente, penetrando nos poros e nas impressões digitais.

Terminou o drama de escrever à máquina e sujar as mãos? Não. Além da fita de tinta bicolor ainda haviam as folhas de papel carbono. Se a folha digitada exigia uma cópia, usava-se uma folha de carbono. Se três cópias, duas folhas de carbono. Mais que isso e uma quarta cópia sairia praticamente ilegível.

Quem desenvolveu lesão por esforço repetitivo usando máquinas de escrever certamente piorou esse quadro se praticou a escrita com folhas em até 3 cópias. Isso porque a força da batida em cada tecla tinha de ser maior em comparação a escrever cópia simples.

Sim, isso que escrevo agora pode representar uma maluquice para quem hoje tem a idade dos meus filhos (25 e 23 anos) ou mesmo meus/inhas alunos/as. Difícil conceber que esses teclados macios, feitos à base de plástico e, em alguns casos, com luzes coloridas de fundo, um dia foram antecedidos por aquelas geringonças. Teclado macio às mãos, tela cuja luminosidade pode ser controlada ante aos olhos, a possibilidade de apagar erros de digitação e, quer coisa!, dar um “control+p” de comando e a impressão de quantas vias for necessário ocorrer sem borrões nos dedos.

Você, raro/a e exceto/a leitor/a, pode estar perguntando onde estava meu fascínio ao observar, na infância, uma máquina de escrever em funcionamento, usando, como usei, o exemplo de ver um automóvel em movimento. Minha curiosidade, pois, era centrada no que estava dentro da máquina, que fazia uma tecla de cada vez atingir o papel.

Certo dia, lá pelos idos de 1981 (eu tinha 11 anos de idade), meu irmão mais velho, Claudinei, que trabalhava no escritório de contabilidade Alevato, em Assis, SP, apareceu em casa um com máquina de escrever Olivetti, portátil. Era verde e, pra mim, uma coisa linda de ver.

Nossa família sempre foi pobre, com condições financeiras bem complicadas. Pai ferroviário, mãe lavadeira, nós não passamos fome, ao menos que eu me recorde, mas, éramos de uma realidade em que as roupas que eu usava, assim como os calçados, eram aquelas e aqueles que meu irmão mais velho havia usado. Roupa nova, só uma peça de cada, no final do ano, comprada nas Casas Pernambucanas e para ser paga no crediário durante o ano. E a roupa nova comprada em dezembro era para ser usada no Natal e no Ano Novo. Depois disso, era usada para “sair”, ou seja, para visitar alguém, ir a um casamento ou festa, enfim, em situações especiais. Usar para ir à escola, jamais, até porque os uniformes eram obrigatórios.

Em uma situação domiciliar como essa não cabia dinheiro para comprar folha de papel. E eu usava, para digitar naquela máquina de escrever, papel de pão, outro artigo que as gerações atuais desconhecem. Sim, os pães eram vendidos em formato bengala, hoje chamados de baguete, e embalados e folha de papel jornal. Alguns eram embalados em folha de papel seda de jornal.

Esse papel jornal era reciclado. Não raro, algumas folhas traziam letrinhas, que nada mais eram do que resultado da reciclagem de papeis usados, entre eles o jornal de notícias. Eu, cuidadoso, antes que o papel fosse manchado por manteiga ou margarina, recolhia aquelas folhas e guardava, pois nela desenhava, enfim, reaproveitava o que já era reaproveitado.

Até hoje sou resistente ao desperdício de papel. Não só pelo fato, hoje sei, de isso ser pensamento sustentável, mas, principalmente, por ter convivido com uma situação socioeconômica em que sequer folha de papel tínhamos em casa. Nossos cadernos eram aproveitados ao máximo, sendo encerrados sem folhas em branco de sobra. Igualmente, nossas canetas esgotavam a tinta e os lápis só eram descartados à base de “toquinhos” que não cabiam mais nas pequeninas mãos de crianças.

A máquina de escrever portátil levada por meu irmão servia para eu registrar meus escritos. Primeiro eu o observava usando e depois, repetia as ações. Lembro que levava mais de um dia para completar uma folha inteira datilografada, sempre cuidadoso para não errar na digitação e não comprometer esteticamente a página.

Avançando na técnica de digitar, escrevi minha primeira história. Um conto sobre o que mais me perturbou na infância, ou seja, vampiros. Não consigo resgatar os motivos de temer tanto os vampiros, mas, sei, foi esse personagem que ilustrou minha primeira historinha digitada.

Não recordo mais do enredo. E nem sei onde foi parar aquela historinha digitada. Guardei parte do meu acerco pessoal até os 21 anos de idade, quando fui morar com minha mãe, então separada de meu pai havia três anos. Três anos depois me casei e, assim, os pertences todos da vida de solteiro foram parar em local que desconheço, podendo, inclusive, ter sido o lixo.

Daquele tempo, nos anos 1980, até hoje fomos sobremaneira influenciados pela tecnologia nos nossos modos de consumo e produção cotidianos. Das máquinas de escrever avançamos para os computadores desktop e notebook. Igualmente, não dei conta de apenas ver o funcionamento estético dessas máquinas.

Cansei, nos anos 1990, de pagar 40 reais para que técnicos de informática viessem à nossa casa para formatar HD ou colocar computadores em rede. Claro, assim como as máquinas de escrever, passei a abrir os computadores. Primeiro, troquei HD, depois, pentes de memória, depois, processador, até que chegou o dia em que troquei uma placa-mãe.

Com o Windows 98, formatar um computador ou simplesmente reinstalar o sistema operacional requeria colocar a máquina em rede. Tive que aprender sobre máscara de rede, gateway e outros elementos que envolvem trabalhar em rede. Ou seja, muito mais que abrir um computador, era necessário entender todo o conjunto de funcionamento.

As versões Windows XP e Vista, assim como as sucessoras, eliminaram esse trabalho todo, fazendo a programação de rede do computador de forma automática, mas, ainda assim, vivíamos em situações em que para não pagar os tais 40 reais em uma visita praticamente semanal dos técnicos, tínhamos de continuar buscando entender o funcionamento.

Hoje, aos 51 anos de idade, recordo disso tudo com esse estilo nostálgico de escrita. Não, não prefiro aquele tempo, jamais, em que o papel era colocado na máquina e a digitação exigia sujar os dedos com tintas. Muito menos tenho saudade da época da impressora matricial, antecessora das janto-de-tinta e laser atuais.

Cada tecnologia teve seu tempo e, sim, precisamos observar o uso desses recursos como nos mostra Jacques Rancière e a estética do sensível. Muitos podem, sim, nascer, viver e morrer sem ter precisado um dia sequer saber como as coisas funcionam, principalmente quando sabem que seja qual for o problema, haverá alguém para repará-lo. Não condeno isso, absolutamente.

Porém, quando não entendemos como as coisas funcionam, ou seja, ficamos observando a caixa de fora da máquina de escrever ou vendo apenas o automóvel em movimento, temos chance maior de desenvolver a ignorância, no sentido de ausência de conhecimento. Ninguém precisa saber como um computador funciona, nem tem por regra aprender a consertar um. Isso está na cultura cotidiana de cada um/a, configurada pelas necessidades, ora por vezes, essas, movidas pela curiosidade.

É com esse olhar que vejo, indignado, a discussão aparentemente encerrada nessa semana, vinda de Brasília, acerca da volta do voto impresso. Que o sistema de voto eletrônico não seja totalmente confiável, disso não tenho dúvida, pois há tecnologia, indústria hegemônica e Estado envolvidos no desenvolvimento dessa tecnologia. Nada que envolva o que denomino, em minha tese de doutorado, hegemonia plena, ou seja, que envolva mercado, Estado e Igreja, é totalmente confiável. Aliás, o totalmente confiável é utópico.

Mas, o que vemos nesse debate é uma parte que renuncia-se a conhecer a tecnologia por trás da caixa da máquina de votação eletrônica e, pior, não viu problemas quando esse mesmo sistema de votação, que nos permite conhecer eleitos/as em questão de horas e até mesmo no própria dia do pleito eleitoral, os elegeu por mais de uma vez no passado dessas últimas duas décadas.

Em momento algum a parte que critica o sistema de votação em urna eletrônica fez uso do exercício de gestão que o regime democrático lhe assegurou, nas mesmas urnas, e publicamente foi visitar a indústria que produz os equipamentos, os tais hardwares, e desenvolve os softwares. A ignorância, no sentido de ausência de conhecimento, se faz mais árdua nesse sentido, pois o pior ignorante não é aquele que diz desconhecer algo, mas, sim, aquele que renuncia conhecer sobre algo.

A Câmara dos Deputados, dentro dos pressupostos do Estado Democrático de Direito, barrou qualitativamente a iniciativa de retomar o voto impresso. Não, não quer dizer que estejamos sob o mais seguro dos sistemas de votação, pois o uso de urnas eletrônicas é uma coisa e o processamento dos dados das votações, fazendo chegar tal fluxo até o Tribunal Superior Eleitoral, é outra coisa. Sabemos que as urnas eletrônicas não trabalham em rede, mas ingênuos seremos se entendermos que via cartórios eleitorais os dados coletados por seções e zonas eleitorais não cheguem a Brasília via rede. Auditorias sérias nos mostram, periodicamente, muitas vezes sob convocação em forma de desafio, público, por parte da Justiça Eleitoral, que esse sistema de votação e coleta de dados até hoje não foi fraudado. E confiamos.

Compreendo o discurso de quem defende o voto impresso, situando os sujeitos dessa voz na citada ignorância advinda de desconhecimento, seja por ausência de conhecimento, seja por renúncia ao mesmo. Inevitável, porém, imaginar tais defensores, em comportamento análogo, com as pontas dos dedos sujas de tinta.

* Jornalista e historiador, tem mestrado e doutorado em Ciências da Comunicação pela ECA/USP.