Como definiu um dos cardiologistas que em 13 de fevereiro de 2015 implantaram-me quatro safenas e uma mamária, nosso organismo funciona tal qual um veículo automotor: depois da primeira retífica, haja manutenção periódica!
Por esses dias de São João no Nordeste cá estou, novamente, reparando a carcaça, em manutenção. Algumas alterações daqui, dores dali, mas a vontade continuar vendo nascente e poente do astro maior, de preferência com os pés no chão, sobressai.
Entre um agendamento e outro, nas clínicas da vida, fui, ontem, levar Júlio, o caçula, a Cornélio Procópio, para a derradeira semana de aulas antes do recesso julino. Faço o caminho por Palmital>Andirá>Bandeirante>Santa Mariana>Cornélio. Não só por recusar-me a pagar 40 reais em um único pedágio, em Sertanópolis, no caminho por Sertaneja. Sim, por sentir-me mais em casa no trajeto que passa pelo distrito de Nossa Senhora Aparecida.
Essa localidade é mais um vilarejo do que necessariamente o que as políticas públicas denominam como distrito. Passo, ali, desde os anos 1990, logo após a construção da ponte que, parte das obras de compensação ambiental do complexo hidrelétrico de Canoas, liga os estados de São Paulo e Paraná. Caminho, nosso, para as viagens rumo às praias do litoral Sul.
'Aparecida', como resumidamente é chamada a localidade, é cortada pela rodovia. Um obstáculo faz com que os expressos visitantes a percebam. Não fosse esse redutor de velocidade e as aproximadamente cinco quadras com residências e comércio se resumiriam a uma visualização feita em menos de 10 segundos.
Júlio, o caçula, estuda em Cornélio Procópio desde 2015. Há dois anos, portanto, sempre que posso, o levo por esse trajeto. Sem, contudo, jamais ter parado em Aparecida, apesar de esse desejo sempre ser manifestado a meus acompanhantes de viagem.
Apreciador que sou, com moderação, de uma cerveja (a única bebida alcoólica que consumo, ainda assim misturada, quando possível, com cerveja sem álcool, preferência que explico em outra postagem), sempre imaginei parar em um dos botecos de Aparecida. Não exatamente para beber, pois o compromisso ao volante exige o contrário. Mas, para prosear.
Nas incontáveis vezes por que passei em Aparecida sempre tive a sensação de que os frequentadores de boteco, ali, são diferentes. Ninguém com aspecto de "beber, cair, levantar". O oposto: pessoas que encontram-se mais para comunicar-se do que para beber. Aquelas circunstâncias em que se tiver algo para comer e para beber, ótimo, pois, se não tiver, falta não fará.
Ontem, Júlio estava com tosse e dores no corpo, prenunciando gripe. Em vez de colocá-lo no ônibus, resolvi levá-lo a Cornélio. Saímos de Assis por volta de 17h15, a tempo de ele pegar o início da aula às 19h30. Passamos por Aparecida 35 minutos depois, com a noite já predominando. Avistei, então, os botecos com seus frequentadores, e logo imaginei que, no retorno, se o movimento continuasse aquele, eu enfim pararia em um dos bares.
Viagem tranquila até Cornélio, as malas do filho deixadas no apartamento em que mora, o próprio ficando na universidade e... estrada de volta. Passei por Aparecida por volta de 20h10. Os botecos estavam esvaziados. Com a velocidade bem reduzida fui desistindo da parada, convencido de que ficaria para uma próxima ocasião. Até que o último bar à direita tinha dois senhores ao balcão, sendo atendidos pelo casal proprietário do ponto comercial.
Estacionei o carro, desci e, quando entrei, pairou aquele silêncio que faz lembrar os filmes de faroeste. A conversa cessou e logo um dos clientes já anunciou que tinha esgotado a cota do dia e precisava ir embora. Foi quando pedi um refrigerante e logo anunciei que estava, ali, realizando uma vontade, de parar em Aparecida e dialogar com pessoas daquela localidade. Pedindo, claro, desculpas por interromper a conversa em andamento.
Sentado em uma banqueta, ao balcão, peguei o celular e atualizei a visualização de conversas no whatsapp, tentando garantir a privacidade de quem ali já estava. Olhos no aparelho celular mas ouvido nas conversas, que continuaram. Soube, por exemplo, que ali um frango caipira sai por 20 reais, o quilo da linguiça de porco, "das boas', sai por 12 reais e que é possível encomendar de milho verde a mandioca e banana, desde que passando para pegar um dia depois.
Intrometi na conversa e perguntei se ali havia, também, o hábito que se tem no Nordeste de distinguir galinhas de granja, caipira e de capoeira. Logo meus (novos) colegas de bar já disseram que galinha de capoeira era um costume que se tinha, vindo de Minas Gerais, de definir galinha caipira criada solta. Foi, então, que pontuei que em Campina Grande a galinha de capoeira é aquela que, selvagem, é criada sem qualquer intervenção humana ou urbana. E tive de explicar melhor.
Àquela altura, o colega que dizia estar na hora de ir embora pediu mais uma lata de cerveja. Seu interlocutor, também colega, pediu mais uma dose de Contini. Até o proprietário do bar abriu uma latinha de Skol. Estava, pois, consolidada uma roda de conversa.
Ficar sentado naquela banqueta fazia com que a compressão do meu canal da ureter, que tantas dores tem me provocado nas últimas semanas, tornasse o quadro agudo. Mas, eu insistia naquela tarefa de suportar a dor, mas curtir a conversa. Que meus interlocutores são trabalhadores do campo eu não tinha dúvidas. Mas, eles não sabiam que eu era, o que faço da vida. Não que, claro, eu não visse nos olhos de cada um a curiosidade para perguntar: "o que você faz da vida?".
Esclareci sobre minha profissão, de professor paulista que dá aulas na Paraíba, sob olhares atentos cujos donos repetiram uma pergunta frequente a meus ouvidos há mais de quatro anos: e como faz pra ficar tanto tempo fora de casa sem, sem... você entende, né?! Expliquei, claro, que minha família ora vai a Campina Grande, oras me recebe aqui, como agora, e que levamos muito bem essa vida de cada parte estar num canto desse país continental.
Aquela prosa toda avançou pela noite. Já passava das 21h30 quando a senhora, esposa do proprietário do bar, aproximou-se dele, transparecendo o código de linguagem não-verbal que 'diz' mais ou menos assim: "chega". Minutos antes, um dos colegas que estavam na conversa havia se despedido, dizendo ter um compromisso na casa de um parente. Foi e voltou em questão de 10 minutos, reclamando que haviam combinado algo com ele e 'furado'.
Tomei a iniciativa de ser o primeiro a encerrar aquela deliciosa conversa, constrangido com o fato de a esposa do dono do bar querer o fechamento do ponto. Foi quando esse colega de boteco, que havia ido embora e retornado, assim definiu aquele primeiro encontro com o colega paulista-paraibano: "quando eu vi que meu compromisso em família havia furado, peguei a bicicleta e corri de volta pra cá, pra gente continuar a conversa".
São presentes assim, em forma de amizade, que fazem os botecos ambientes de socialização que remetem ao que a minha prática de professor pesquisador contextualiza como ecossistema comunicativo. O que prevalece, ali, é a comunicação popular, circunstância em que as relações inter-pessoais são baseadas no pertencimento, ou seja, aqueles colegas que lá se encontravam bebendo e conversando tinham e têm a sua própria rotina e seus códigos de vivência, e não abrem isso a qualquer intruso ou estranho. Foi necessário uma ação de intervenção, de gestão da comunicação, para que eu me aproximasse, me apresentasse, tornasse parte do diálogo, comprovasse meus interesses em nada conflituosos com o que aspirava o grupo e, assim, fosse incluído como parte comum daquele coletivo.
As sequelas de episódios anteriores à minha cirurgia cardíaca me impedem, hoje, de guardar alguns dados na memória. É dessa forma que os nomes dos colegas que conheci ontem não foram arquivados na minha cabeça. Importância subjetiva, pois na minha próxima vinda por essas terras lá estarei, novamente, para uma passagem em prosa.
Agora, em vez de forasteiro, chego a Aparecida como convidado desses colegas. Um ofereceu-me almoço com carne de porco, enquanto o outro afirmou que frango caipira igual ao de sua esposa não se encontra nos arredores. Longe, óbvio, essa intenção em meus planos, pois passei em Aparecida, mesmo, para dialogar com pessoas que, sabia, são humildes e encontram-se fora de meu universo de trabalho.
Às vezes (para não dizer 'sempre'), precisamos sair do ninho, romper a cerca ou deixar a zona de conforto para conhecer o novo. O mundo lá fora não é diferente do nosso, é igual. As pessoas têm problemas, choram, lamentam perdas, decepcionam-se com a política, têm desejos diferentes e buscam compensar as frustrações de alguma forma. Nós é que nos auto isolamos do mundo, muitas vezes sob uma arrogância que nos torna desumanos, enquanto entendemos ser o suprassumo da humanidade.
No reino da hipocrisia. boteco é lugar de perdição, por conter bebida e pessoas que as consomem. Mas, não. Boteco é uma empresa como outra qualquer, recolhedora de impostos, empregadora formal. Quem por ali passa faz parte da engrenagem que movimenta o mundo, ou seja, é parte de um sistema a que denominamos capitalismo. Basta olhar para os arredores e, visualizando de cima, entender que há, na sua cidade, mais botecos do que igrejas, supermercados, escolas e restaurantes de luxo. Com o diferencial de que o público, ali, frequenta escolas, igrejas, supermercados e restaurantes de luxo, sem, contudo, a convenção social de que frequentadores de igrejas, escolas, supermercados e restaurantes de luxo admitirem ou conceberem-se enquanto frequentadores de botecos.
E é exatamente isso que faz do boteco um ambiente ímpar. Por mais que você ali adentre e beba um refrigerante, a maior parte da sociedade hipócrita o olhará de esgueio, como se tu fosses um imperfeito. E imperfeitos todos somos, desde que nascemos. O que nos diferencia é que alguns lidam com a imperfeição sob a harmonia da conversa, das relações inter-pessoais, enquanto outros, sob a égide da pseudo busca pela perfeição, isolam-se na amargura que é dialogar com o próprio ego.