Cláudio Messias*
O cumprimento ao serviço militar obrigatório eu defino como três momentos distintos da vida de um homem. O primeiro é de raiva por ser obrigado a ficar submetido a normas que, rígidas, pouco ou nada contribuem para o seguimento da vida. O segundo é de ódio, por ficar um ano inteiro dessa mesma vida submetido à rotina de acordar de madrugada e, por escala, passar o final de semana no quartel. O terceiro e mais contraditório desses momentos é marcado pela saudade desse tempo que, afora a doutrina militar, torna grupos de jovens verdadeiras famílias.
Essas três circunstâncias a que refiro são meu ponto de vista e, óbvio, há quem curta o serviço militar. Conheci pessoas que não viam a hora de completar 18 anos e cumprir com o alistamento na Junta Militar. Outros, faziam do décimo nono ano de vida, de cumprimento do serviço, aquele que parecia o mais importante de suas passagens por essa terra, com direito farda engomada, fivela de cinto reluzente à ouro (essa crase está correta, pois remete ao estilo do metal) e coturnos impecavelmente engraxados e lustrados. Barba, então, parecia nem existir naqueles rostos à bunda de nenê, tamanha era a perfeição do barbear.
Fiz o Tiro de Guerra no ano de 1989. Um ano antes eu passei pela seleção e, torcendo para não precisar mentir e, assim, conseguir liberação, fui ficando entre os militariáveis. Quando vi que estava no grupo que passaria pela perícia do dr. Marcos, médico japonês conhecido clínico geral da cidade, sabia que raspar a cabeça no Salão Candota era questão de tempo. E foi, pois em fevereiro de 1989 lá estava esse que vos escreve, pegando uma farda nova, outra usada, duas camisetas, um par de coturnos, um cinto com fivela de cobre e um boné.
Na primeira instrução soube que estava na Primeira Turma, chefiada pelo Sub-tenente Barcarollo, por sua vez comandante do Tiro de Guerra 02-046. Era 6 horas da manhã e no pátio do TG estavam perfiladas as três turmas que totalizavam 80 atiradores, chefiadas, além de Barcarollo, por Farinon e Souza Dias. Cada um dos chefes de turma transitou por entre os atiradores e olhou fixo na cara de todos. Os três militares maiores afastaram-se da tropa, dialogaram, ficaram ora olhando para um ou outro jovem ingressante, ora concentrando-se na conversa e, então desfizeram o grupo. Estavam escolhidos os monitores de cada turma, também conhecidos como cabos. Eu, para desespero, era um deles.
Naquele ano eu tinha uma moto marca Honda, modelo Turuna, ano 1980, vermelha. Meses antes um larápio a havia roubado em frente à casa de uma namorada, na Vila Glória, mas a abandonou atrás da antiga CAIC, perto da rodoviária, sem algumas peças. Entre as peças furtadas estavam as tampas laterais, que além de estética tinham por função proteger a calça dos motociclistas da água de bateria, corrosiva. Claro, com uma semana de TG minha calça da farda 2, mais velha, primeiro ficou descolorida na região onde respingara o ácido de bateria. Depois, um verdadeiro buraco ali se formou, exigindo intervenção das hábeis mãos costureiras de minha mãe, dona Luzia.
Para um cabo, ou seja, um monitor, concebido pelo militarismo como líder, não ficava bem uma farda remendada. Mas, para quem estava fazendo o Tiro de Guerra forçado, a contragosto, estava de bom tamanho. Principalmente porque o chefe da turma, Barcarollo, passou o ano inteiro sem notar buraco, remendo e outros tipos de desleixo no uniforme de um daqueles que escolhera para ajudar a comandar a tropa. Ele, o comandante, que nas visitas noturnas que fazia ao TG batia continência e conversava com a estátua de Caxias, além de tecer altos e duradouros diálogos com um personagem imaginário em sua sala, parecia não ligar para esses detalhes, digamos, estéticos, que não escapavam à observação de seu substituto hierarquicamente imediato, Farinon, que certo domingo, durante passagem de guarda, definiu-me, pelo aspecto geral (farda remendada, fivela do cinto sem polir, coturno sujo e barba por fazer), como "lixão". Vã definição, pois ele continuou militar, naquela rotina diária, e, depois, nos tornamos amigos na relação imprensa/Tiro de Guerra e rimos relembrando esse e outros episódios.
Aliás, episódio é o que não falta nessa curta passagem pelo serviço militar. Alguns mais dramáticos, como a perda de três amigos de turma naquele ano de 1989, outros mais irônicos, registrados praticamente a cada dia de instrução ou a cada plantão de guarda que viravam a madrugada. Nesse ínterim, pessoas que se conheceram naquela passagem pelo TG e depois tornaram-se amigos o suficiente para ser padrinhos de casamentos e de batizado de filhos que vieram. Ou, ainda, atiradores que foram expulsos do serviço por motivos diversos, outros que se formaram, pegaram a reservista e, na vida que seguiu, também despediram-se da terra em mortes das mais variáveis naturezas.
São tantas as histórias que ficaríamos, aqui, centenas de parágrafos fazendo as narrativas. Fossem esses episódios divididos em postagens, renderiam, reunidos, um livro ou uma série com pelo menos 20 capítulos.
Prefiro citar uma engraçada, pois nesse rol de causos há relatos de todos os gêneros, passando do humor ao drama, da violência psicológica à agressão física, da felicidade à tristeza.
Prefiro citar uma engraçada, pois nesse rol de causos há relatos de todos os gêneros, passando do humor ao drama, da violência psicológica à agressão física, da felicidade à tristeza.
Um acontecimento recente, na cidade, fez-me recordar de Sassá, um atirador que mostra bem a complexidade da origem daqueles selecionados para cumprir com o serviço militar em uma cidade, como era o caso de Assis, com pouco mais de 80 mil habitantes. Filho de agricultores, ele vinha de uma propriedade rural entre Assis e Cândido Mota. Seu apelido devia-se ao personagem interpretado por Lima Duarte na novela O Salvador da Pátria, da Globo. Nosso colega de turma falava muito parecido com Sassá Mutema e, não bastasse isso, marchava lembrando os trejeitos de outro personagem da ficção e do folclore nacional, Mazzaropi.
Em uma definição simples, sem remeter a caretices científicas, da academia, Sassá, nosso amigo, era um caipira legítimo. Tinha sua dificuldade de expressão em público, quando falava não conseguia conjugar todos os verbos e, por fim, abria mão do emprego de plural ou concordâncias verbal e nominal em seus enunciados, o que fazia com que seu estereótipo fosse complexamente estabelecido pelo grupo. Seu arquétipo, ou seja, a construção feita a partir da observação atenta, imagética, de suas particularidades pelo mesmo grupo, era menos danoso, pois Sassá, além de forte fisicamente, tinha uma inteligência invejável e uma capacidade de raciocínio rápido que causava inveja.
Fui comandante de guarda em alguns plantões com Sassá. E saquei, logo no início, que sua timidez o travava quando tinha de se expressar em grupo. Em diálogo simples, ao contrário, contava sobre sua vida no campo, sobre seus sonhos e seus projetos. Não estudava, por dar preferência ao trabalho de ajudar ao pai no sítio. E não tinha vaidades materiais. Quis fazer o Tiro de Guerra por questões de orgulho pessoal e, para escapar da liberação de dispensa por excesso de contingente, garantiu que teria onde ficar, em Assis, durante os 9 meses de serviços diários. Ficava, sim, nas casas de uma tia e uma avó, ali mesmo, nas imediações, mas só no início. A vida urbana o assustava e, com os meses, passou a fazer a rotina de pular da cama ainda mais cedo, antes do sol nascer, pegar o ônibus da J.F. Garcia e chegar ao TG antes mesmo do que todos os que em Assis residiam fixamente.
A exemplo do personagem da novela, o Sassá do Tiro de Guerra tinha uma "professorinha", ou seja, uma paixão imaginária. A mim, pelo menos, nunca confidenciou de quem se tratava. Mas, vivia dando suspiros profundos quando as conversas nas rodas em frente ao portão de acesso ao Tiro de Guerra, nas noites quentes de guarda, giravam em torno de projetos que cada um tinha para o futuro. Claro, cada um sonhava ser um profissional, mas ao lado daquelas que, namoradas à época, queriam que tornassem-se esposas. Alguns, como no meu caso, concretizaram isso e têm como mãe de seus filhos a mesma companheira de juventude da época.
Já no segundo semestre, quando todos contavam os dias para acabar o calendário militar encerrado no dia 19 de novembro, Dia da Bandeira, Sassá, em uma guarda de sexta para sábado, não suportou a amargura do amor recolhido e disse que sairia, pelas redondezas, para beber uma dose de branquinha. Óbvio que consumir bebida alcoólica naquele ambiente era e é proibido. Pior ainda, abandonar o posto e sair para beber, como queria Sassá. De prontidão, contudo, meus amigos de plantão quebram-me o galho, evitando que um atirador abandonasse o plantão (não que isso nunca tenha acontecido naquele ano) e retornasse embriagado. Fizeram, pois, uma sugestão ao apaixonado colega que apesar dos sarrinhos, era muito respeitado e considerado por todos da Primeira Turma.
Em vez de sair para beber pinga, seria melhor Sassá fumar um baseado. Sim, um beque. Essa foi a sugestão/proposta do pessoal, deixando-me em situação ainda pior. Afinal, se bebida já daria punição severa ali, imagine droga! Mas, calma. Dois atiradores saíram da sala de plantão da guarda, enquanto os demais continuaram conversando com Sassá. Os que saíram pularam o baixo muro da frente do Tiro de Guerra e, na rua, recolheram bosta de cavalo que havia dias ressecava sobre o asfalto. Um pedaço de jornal levado por plantonistas de outras turmas completou o que seria, caso real fosse, o maior baseado da história, de fazer inveja de Hendrix a Cliff.
Claro que entre 80 atiradores um ou outro avançava além do vício da cachaça de Sassá, da cerveja minha e da maioria e da erva proibida. Se faziam uso no plantão, difícil saber, pois isso ocorreria fora do olhar da maioria. Mas ali, na frente de um Sassá que suspirava apaixonado sabe-se lá por qual professorinha imaginária, os dois colegas que saíram disseram ir realmente buscar a erva. Trouxeram aquele monte de ciscos que à noite era mais cinza do que esverdeado e começaram a socar dentro de pedaço retangular de papel. Ritual idêntico ao de preparo de um beque legítimo, deram o tufo a Sassá e recomendaram: vá para um lugar isolado, sente-se ao chão e fume, encostando a cabeça na parede, para curtir.
Sassá imediatamente pegou o "beque" de bosta de cavalo seca imaginando que era erva proibida e dirigiu-se ao vestiário anexo ao alojamento do plantão das guardas. Confesso fumante de cigarro de palha, não teve dificuldade para tragar. Mas isso tudo já é imaginação, pois não víamos o colega fumando o tufo. Preferimos ficar do lado de trás da parede, apenas ouvindo e, assim, evitando que nossa presença o inibisse.
Sassá deu um primeiro trago profundo no que imaginava ser um beque. Continuou sussurrando com palavras que remetiam a uma "danada que não me quer", etc. Mas, de repente, ali pela terceira ou quarta tragada, começou a falar para si mesmo que estava correndo um arrepio por todo o corpo. E perguntava: "caramba, o que é isso, meu?!". Nossos risos deram lugar a semblante de preocupação. Afinal, o que ocorria com Sassá? Seria bosta de cavalo seca um tipo de entorpecente perigoso ao ponto de colocar a vida do colega em risco? Resolvemos esperar.
Mais uma tragada e Sassá começou a variar. Dizia bem alto: "cara, deu barato!". Com palavras desconexas, continuava tragando e falando coisas nada-a-ver; algo do tipo "tô doidão...!". Do lado de trás da parede, cada um de nós olhava intrigado para o outro, não entendo nada e desconfiando do teor do tal do beque. Ao passo que os dois que foram buscar o material, na rua, garantiram que o negócio fora retirado do asfalto, que ainda estava quente do sol que havia feito na tarde anterior. Eles, os responsáveis, aliás, juraram, depois, que nunca haviam sequer visto, in loco, a tal erva proibida, quiçá providenciado aquela porção lançada no suposto beque genérico.
A preocupação substituiu a brincadeira e, então, decidi, como chefe da guarda, ir até Sassá e contar que tudo aquilo era uma brincadeira. Quando saí da sala de banho e entrei no vestiário vi o colega sentado ao chão, encostado na parede, pernas esticadas e cabeça levantada como que se olhasse para o teto. Ele não nos enxergava, apenas via. E continuava tragando o que já era um pequeno toco restante. Comportava-se, realmente, como alguém que, sob alucinação provocada por algo entorpecente, sequer sabia onde estava.
Tratei de tirar o toco de 'cigarro' da mão dele, o levantamos e colocamos no beliche do alojamento. Ali Sassá ficou até 5h30, horário em que o sargento Farinon mediava a rendição, pela Segunda Turma, da guarda. Aquele sono profundo intrigou a todos, principalmente pelo fato de no dia seguinte, mesmo tendo dormido horas a fio, Sassá continuava esquisito. Afinal, tinha o sono mais leve entre todos e era conhecido como companheirão de guarda, pois conversava e contribuía para manter acordados os soldados que guardavam a entrada principal do Tiro de Guerra.
Que aquilo, no beque, era bosta de cavalo seca, tenho certeza. Mas, anos depois, ouvi a confidência de colegas daquele plantão que, curiosos, acabaram fazendo o teste com igual dejeto equino. Sem, contudo, repetir o efeito imaginado.
Nem adianta desconfiar de mim nesse time de curiosos pois, avesso a cigarro, o risco de aventurar-me a queimar bosta de cavalo em busca de novas emoções é nulo. Mas que continuo, até hoje, intrigado com aquele efeito do falso beque, ah, isso continuo.
*Professor universitário, historiador e jornalista, é mestre em Ciências da Comunicação pela ECA/USP.
Um comentário :
Grande Claudio, parabéns pelo texto e por me fazer retroceder no passado, saudades grandes desses "causos" da época do Tiro de Guerra. Grande abraço.
Postar um comentário