Cláudio Messias*
O ano era 2005 e eu queria agradecer por ter ingressado no curso de História pela Unesp/Assis, concretização de uma vontade de fazer o ensino superior em uma instituição pública. Ingressei naquele curso em 2004. Mais precisamente, na segunda quinzena de abril daquele ano. E no fechar das cortinas do prazo para convocação daqueles que haviam ficado na lista de espera. Sim, a relação candidato/vaga havia ficado em 9/1, para o período matutino (7/1 no noturno), e aos 33 anos, quando prestei o vestibular, esbarrei nos mais de 15 anos longe dos bancos escolares, concorrendo com uma juventude afiada. Fui o último candidato a ser chamado, em um momento em que já havia desanimado, cessado as esperanças e, inclusive, refeito os planos profissionais (na semana seguinte eu reassumiria função no hoje extinto Oeste Notícias, de Prudente).
Como fui chamado após o 19 de março de 2004, esperei igual data do ano seguinte para cumprir com uma intenção, que para os mais católicos é definida como penitência. O décimo nono dia de março é dedicado a São José Operário, em quem minha avó paterna inspirou-se para nomear meu pai, José Messias, hoje um vívido senhor de 72 anos que reside em Martinópolis. Justo, eu entendia, cumprir com a intenção, uma vez que defendo haver mediação entre as graças que recebemos em terra e as bençãos despachadas por Deus. Tenho muitas críticas à Igreja e suas formas de exploração da fé, mas considero inquestionável o Cristianismo.
Bom. Cristão que era e sou, entendia que fazer a intenção de São José seria tornar o santo um mediador entre o meu agradecimento pelo ingresso em História e o Homem que lá, em cima, encontra-se cuidando por todos nós. E naquele 19 de março de 2005 peguei três pedaços de papel e em cada um deles escrevi o nome de alimentos que mais apreciava. Um deles seria o que, por abstinência forçada, eu ficaria sem consumir durante exatamente 365 dias. Escolha difícil, pois sempre tive uma ampla variedade de 'vícios' alimentares, sejam eles sólidos ou líquidos.
Fiquei os dias anteriores àquele 19 de março decidindo sobre o que mais fazia parte do meu cardápio diário e que provocaria sofrimento caso tivesse de sacrificar da rotina. Cheguei, então, à ordem prioritária que era a seguinte: 1) carne vermelha, 2) café e 3) cerveja. Os dois primeiros eu sempre consumi diariamente, enquanto a cerveja sempre foi a única bebida alcoólica de minha preferência, ainda assim consumida, em dias úteis, somente nas noites de quarta-feira, e aos finais de semana.
Dobrei os pedaços de papel e dei para que Rozana, a esposa, retirasse aquele em que estaria definido o alimento proibido dos então próximos 365 dias. Não sei se é pecado, mas fiquei torcendo para não sair cerveja, ao passo em que também lamentava que, se saísse carne vermelha, sofreria quando fizesse churrasco e tivesse de me contentar somente com frango e peixe. O café, que tomava e tomo todas as manhãs, aparentava ser o menos inofensivo dos alimentos optados para a penitência.
Rozana tirou o pedaço de papel que continha o café como alimento que ficaria fora da minha rotina de um ano. O meu lado bebum comemorou, o meu instinto carnívoro festejou e minha dentista Adriana Funari comemorou que, enfim, minhas limpezas e clareamentos surtiriam efeito. Parecia simples, pois bastaria não comprar mais os pacotes de café Brasileiro, de minha eterna preferência, e pronto. Meu agradecimento a São José, que deveria repassá-lo a Deus, significava acordar pela manhã e não mais colocar água para ferver, lavar o filtro de pano (sim, não gosto do café feito em filtro de papel) e ter tempo de dez minutos para varrer o chão da cozinha enquanto o café, passado, quebrava a temperatura máxima na garrafa.
Troquei o café pelo Toddy, achocolatado preferido até hoje pelos meus filhos, à época com 11 e 9 anos. E saía para a Unesp por volta das 7h45, sofrendo à exaustão quando, no intervalo das 9h00, ia à cantina e sentia o cheiro do café expresso preparado na máquina. Os tomadores de café viciados sabem bem que o alimento tem duas circunstâncias em que é tão ou mais gostoso do que seu resultado final, já pronto para beber: quando está sendo torrado e moído, in natura, e quando está sendo preparado. Sentir, portanto, o cheiro do café sendo processado, seja na cantina da Unesp, seja nos arredores das Pernambucanas, no centro, onde fica a industrialização do Café Paulista, é um castigo para quem não pode, seja qual for o motivo, tomar café.
Ali por volta do final de abril de 2005 tive uma crise de dor na cabeça. Tomava analgésicos vários, mas a dor não passava. Sugeri que poderia estar com defasagem no grau dos óculos (em 1995, quando comecei a usar lentes corretivas, semelhante crise de dor de cabeça desapareceu, pois o problema estava exatamente na vista), fiz consulta com Eduardo Andreghetti, troquei lentes e armação, porém as dores continuavam. E aumentavam a cada dia. Ao ponto de, em uma aula de Filosofia com Cadu, professor, pedi licença e, sem condições de concentração, saí da sala pisando leve ao chão, pois tinha a impressão que quando pisava forte a cabeça iria estourar. Saí da sala diretamente para o ambulatório médico da universidade.
Lá, reencontrei Marcos Elias Nicolau, cardiologista com quem fiz contrato comercial e boas reportagens na época de Oeste Notícias (fui supervisor da sucursal do jornal na região de Assis e repórter). Naquela época, 1995, Marcos Elias estava em início da hoje consagrada carreira médica na cidade. Sócio da então inaugurada clínica Centrocor, foi aprovado em concurso que a Unesp realizou para a contratação de médico, cargo hoje não mais ocupado. Mas em 2005 meu amigo médico lá estava, no posto, e atendeu-me. Colocamos, na medida do possível, as conversas em dia, comigo contando a trajetória de passagem pelo jornalismo em Marília, Campinas e Piracicaba e ele falando sobre sua experiência de dividir a rotina entre clínica, hospitais e Unesp.
Passada quase uma hora e já perto das 11h00, Marcos Elias estava próximo de fazer encaminhamento para que eu realizasse exames com um neurologista, uma vez que no bate-papo da consulta também falávamos, óbvio, daquela dor-de-cabeça sem fim. Foi quando ofereceu-me um café e notou que a garrafa do ambulatório da universidade encontrava-se vazia. Fez, imediatamente, o convite para que eu o acompanhasse até a cantina, onde tomaríamos, por sua vontade, a mais brasileira das bebidas quentes. Agradeci pelo convite para tomar café, mas aceitei acompanhá-lo até a cantina, para continuarmos as sempre agradáveis conversas de reencontro.
Quando levantávamos das cadeiras para ir à cantina, Marcos Elias perguntou se eu tinha alguma restrição a café e perguntou o por quê daquilo. Eu disse que não e confidenciei que, por mais que soubesse que médicos entendem penitências como besteira, tinha de admitir que estava em intenção para São José e havia aberto mão de tomar café por um ano. O médico parou em frente à porta do ambulatório e fez outra pergunta, em forma de afirmação: "mas você então está há mais de um mês sem tomar café?!". Ao que respondi que sim e recebi, então, os tapas nas costas. "Não vai fazer exame nenhum, ao menos por enquanto", completou o médico amigo.
Não nos dirigimos mais à cantina e voltamos a nos sentar nas cadeiras. Recebi a orientação de Marcos Elias para que retornasse para casa imediatamente e antes de almoçar preparasse uma garrafa de chá de mate. Deveria tomar uma boa dose de chá antes do almoço, após a refeição e durante a tarde, de maneira intercalada. Nos cálculos do médico, ali por volta de então 14 horas a dor deveria começar a diminuir, até gradativamente esgotar. Caso isso não ocorresse ainda naquele dia, aí sim eu retornaria e pegaria um encaminhamento para o neurologista.
Retornei para casa e preparei o chá mate, meio incrédulo. Tomei uma caneca antes do almoço, outra depois e, para minha surpresa, antes de tomar a terceira dose a dor-de-cabeça já diminuía. No meio da tarde estava simplesmente livre do incômodo de semanas, com um alívio que sequer consigo explicar ou descrever.
Nos argumentos de Marcos Elias, o que poderia ter provocado aquela crise de dor-de-cabeça foi a abstinência de cafeína em meu organismo. Tomadores compulsivos de café, como eu, submetem o organismo a um vício, ou seja, uma dependência da substância estimulante que também é encontrada em outros alimentos, como o chocolate e o mate. Cessar a dor-de-cabeça, portanto, independeria de eu voltar a tomar café e quebrar a penitência de São José. Bastaria consumir chá de mate ou chocolate.
Confirmei depois, na literatura, a afirmação de Marcos Elias que até então eu desconhecia. O chá de mate tem até dez vezes mais cafeína do que o próprio café. A diferença é que tem efeito menos nocivo no estômago e pode ser tomado quente ou gelado. E foi assim, tomando chá, que cumpri minha intenção durante os 365 dias que separaram o 19 de março de 2005 e o 19 de março de 2006.
Nunca mais, contudo, aderi a penitências. Entendia e entendo que Deus ou Cristo, e, por conseguinte, os seus Santos mediadores, não encontram no sofrimento dos fiéis uma forma de confirmação da cristandade ou de arrependimento/agradecimento. Não condeno ou critico quem faça adesão a penitências. Muito menos emito opinião sobre.
O que posso dizer, mesmo, é que meu respeito e minha admiração por Marcos Elias, hoje meu cardiologista e consultor médico para todos os assuntos relacionados à saúde, fez aumentar o respeito que eu tinha e tenho por sua competência. Afinal, naquele abril de 2005, ele poderia simplesmente me orientar a parar com a bobagem, voltar a tomar café e, assim, igualmente cessar a dor-de-cabeça. Mas, não. Fez jus àquilo que entendo e com o que defino a profissão médica: profissionais que quando curam ou tratam pessoas são transformados, na realidade, em luvas que vestem as mãos de Deus. Ou, no meu, caso, as mãos de São José Operário.
*Professor universitário, historiador e jornalista, é mestre e doutorando em Ciências da Comunicação na ECA/USP.
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