Cláudio Messias*
Nos quatro anos em que
periodicamente vou a São Paulo, a trabalho e por pesquisa, fiz algumas amizades
com comerciantes e comerciários de centros como a Santa Ifigênia e o Butantã. É
no primeiro, no centro velho de São Paulo, fincado na cracolândia, que ouço as
histórias mais absurdas, relacionadas a um domínio do poder paralelo que,
pasmem, existe há décadas. De tudo há um pouco, de maneira que à luz do dia
entrem em ação chineses e coreanos, com o comércio eletrônico e de tecnologias,
e, à noite, o tráfico e o mercado do sexo. Sei que não reinvento a roda falando
sobre isso, uma vez que a pauta tem sido prevalente nas telas e páginas
impressas da grande mídia.
O verbete “máfia” é pesado e
remete a um tipo de crime organizado em que o poder paralelo faz prevalecer seu
domínio à base da imposição do silêncio. Cala-se ou morre-se. O cinema fez
surgir o estereótipo dos mafiosos da Sicília italiana ou da Chicago
estadunidense. Vez ou outra, fora das telonas e telinhas sabe-se de alguém que
morreu por saber demais. Saber demais, logo, remete a um calar eterno. Ou o
contrário trará a morte certa. Tipo de punição que não é exclusividade do poder
paralelo, uma vez que a figura formal do Estado esse traje de carrasco vestiu
quando da vigência dos governos militares recentes. Ali, anteontem, morria quem
calava-se; matava-se para calar aqueles cálices.
Existe um silêncio formal que
faz, e muito, lembrar o clima em que prevalece o domínio das máfias. Nós,
jornalistas, sonhamos com uma gravação que nos mostre o que o presidente que
sai fala ao presidente que entra na Casa Branca, sede do governo dos Estados
Unidos. O que Bush falou a Obama? E o que FHC disse a Lula? O que Fleury disse
a Covas? O que Ezio Spera disse a Ricardo Pinheiro? Esses momentos de transição
no dito poder Executivo são guardados e eternizados em forma de memória. Não a
memória enquanto representação dos registros históricos, mas, sim, na
significação de uma história oral que jamais chega à formalidade.
Quando o dono da história cala-se
com a morte, leva consigo a lacuna eterna da memória. Getúlio Vargas cometeu
suicídio ou foi assassinado? E se atentou contra a própria vida, foi porque não
dava mais conta de atender com políticas públicas à sociedade burguesa que
sustentara sua volta ao poder através do voto popular, ou porque igualmente não
conseguia atender às aspirações do povão que o tornou, mesmo sendo militar, o
primeiro presidente democraticamente eleito no pós-independência? Também na
América Latina faltam certezas sobre a morte do chileno Salvador Allende. As
máquinas de escrever de Vladimir Herzog silenciaram com a corda de lençol a seu
pescoço. Ayrton Senna não deu coletiva para explicar o por quê de seu carinho
com as mãos, sob olhar no infinito, na Williams cuja barra de direção o mataria
uma hora depois na curva Tamborello, em Ímola, na Itália.
Vamos, gradativamente, nos
despedindo dos nossos capítulos vivos da história. Eternizamos nossas expectativas
em torno daqueles em quem confiamos, um dia, nossa esperança. Em reunião na chácara
de seo Zeca Santilli, em 1995, tratávamos do projeto de implantação do curso de
Comunicação Social na Fema. Primeiro viria a habilitação em Publicidade e
Propaganda, depois Jornalismo e, por fim, Artes e Cinema. Cuidávamos da carta
de intenção que seria anexada aos
projetos pedagógicos dos dois primeiros cursos, encaminhados semanas
depois aos conselhos estadual e nacional de educação. Recebi de dona Cida a
incumbência de escrever, como jornalista então havia 11 anos no exercício da
profissão e sem diploma na área, a carta de justificativa sobre a importância
do curso para Assis e toda a região. Seo Zeca, sentado no sofá de couro da
sala, pergunta se eu faria o curso de Jornalismo, caso houvesse aprovação no MEC.
Respondo que sim, faria. Ao que ele comenta: “você tem de fazer História, aqui
na Unesp; não é pago, é de graça e o historiador é tão ou mais importante que
um jornalista, pois tem de olhar o passado livrando-se das ideologias do
presente, o que jornalista não consegue fazer”.
Não escondo minha admiração por
seo Zeca, um homem exemplar, sem escândalos que envolvessem ou envolvam o seu
nome. Um prefeito que quando assumiu o segundo mandato abriu portas e janelas
de todas as repartições públicas municipais. O ar e a luz precisavam adentrar,
dizia ele, fazendo uso de uma figura de linguagem que mostrava, bem, o mundo de trevas
em que se encontravam departamentos e corredores do paço municipal. Os
adversários políticos o definiam como ranzinza por isso, dando-lhe um arquétipo
de revanchista, perseguidor, justamente por abrir para a sociedade assisense a
real situação dos cofres públicos que encontrara ao reassumir a Prefeitura.
Havia pouco a investir na cidade, justamente por não haver dinheiro em caixa.
Seo Zeca saiu do segundo e
derradeiro mandato com poucos feitos. Investiu, sim, fortemente em saúde e
educação, e em infraestrutura. Um exemplo é o parque de exposições “Jorge Alves
de Oliveira”, à época o segundo maior recinto de exposições do país – atrás apenas
de Uberlândia/MG -, que recebeu naquele mandato os melhores investimentos de
sua história. Expositores e leiloeiros que entrevistei quando fiz assessoria de
imprensa na VIII Ficar, em 1995, consideravam o nosso parque de exposições o
melhor do Brasil nos quesitos profissionalismo e condições sanitárias. Saúde, educação,
infraestrutura e Ficar viraram, metaforicamente, latinha. De uma época em que
havia outra cidade de Assis; a cidade em que “lá tinha: educação, saúde,
abertura de avenidas marginais com canteiros centrais e a Ficar”.
Seo Zeca não elegeu sucessor. Naquele
tempo presente, ou seja, no momento em que ocorreram as eleições, foi tachado
de velho, superado e dono de um mandato inexpressivo. Assis precisou viver
cinco, dez anos para ver que os investimentos em saúde e educação têm
resultados a médio prazo. Foi das políticas públicas da época de seo Zeca que a
cidade adotou a cultura de prevenção a gravidez na adolescência. Espelhando-se
(e não repetindo, o que é diferente) o modelo cubano, Assis implantou o
Programa Saúde da Família e passou a ter o “médico na família”, com atendimento
de profissionais de saúde diretamente nas residências. Algo semelhante ao que
os governos continuam a fazer, atualmente, com a ida de agentes de saúde às
casas para fiscalizar o controle de criadouros do mosquito aedes aegypti. Com
orientação profissional dentro de casa as famílias passaram a adotar o controle
de natalidade em conformidade com sua realidade socioeconômica, o que em muito
explica o por quê de os tão propagados 100 mil habitantes não chegarem logo.
Crescer com qualidade não combina com crescer em quantidade, já sentenciava seo
Zeca.
Mas, o assunto aqui são as
condições com que as contas públicas são repassadas quando da troca de
gestores, também conhecidos como prefeitos. Seo Zeca, reafirmo, era um homem
honesto e de valores. Mas, seu último mandato foi pauta no Tribunal de Contas
do Estado. Foram visualizadas irregularidades administrativas que, transformadas
em processo, levaram a um desgaste político. Ninguém, pois, governa sozinho.
Seo Zeca, outrossim, falhou ao confiar demais. Atribuiu poderes a despreparados
para o poder. Agentes multiplicadores que não replicaram na totalidade as suas
propostas com uma “Assis com mais qualidade de vida”. E quando acaba um
mandato, cerra-se o espetáculo. Na política, quem está fora do poder está
sozinho, à frente de um palco sem plateia. Comparo esses sanguessugas do poder,
verdadeiros parasitas, que assessoram prefeitos, a prostitutas; hoje estão na cama do poder com um
mandante, mas amanhã, precisando sobreviver, deitar-se-ão à cama daqueles
outros mandatários que lhes garantirão as cédulas.
Meu camarote nesse espetáculo
foram as redações por onde trabalhei. Assisti e me enojei muito. Carrego – e
quem me conhece sabe disso – a premissa de separar distintamente a tríade
conhecido>colega>amigo. Não faço a mínima questão de ser cumprimentado ou
retribuir com cumprimento a esses “conhecidos” que vi passando pelo poder nas
três décadas em que trabalhei como jornalista. Ganho deles, claro, o rótulo de
arrogante, antissocial, metido, falso, etc. Óbvio que não me incomodo com tais
definições, pois preocupado estaria caso um colega ou um amigo assim pensassem
de mim. Esses conhecidos não avançaram para a condição de colegas e amigos
justamente pelo fato de terem um histórico de comportamento com a vida pública
que não condiz ao que eu espero de agentes com tais incumbências.
Aqui, no Blog, já defini esses
membros eternos ou interinos da máfia do poder como sendo abutres, urubus,
carcarás, enfim, predadores da oportunidade e do oportunismo. Não dou brechas
para ser processado por tais maus caráteres, mas não deixa de coçar-me as mãos
para postar o elenco de 5 fotos que mostram eventos políticos públicos da
cidade de Assis nos mandatos dos cinco últimos prefeitos. Lá estão os rostos
dos tais parasitas, capazes de permanecer no poder a qualquer custo, lançando
pedras hoje e colocando grades de proteção nas vidraças amanhã. Uma publicação
nesse sentido e lá estarei, mais uma vez, sendo processado. Confio sobremaneira
na Justiça, onde jamais perdi uma ação, porém considero futilidade demais
permitir que esse tipo de acerto de contas acabe nos tribunais.
Estamos na segunda semana do
segundo semestre de trabalho do prefeito que assumiu a cidade. Seis meses atrás
a pauta da agenda setting da mídia local era a incerteza de dinheiro em caixa
para pagar funcionários municipais. Como pode aquilo? Uma cidade de economia
estável, sem índices alarmantes de inadimplência com os tributos básicos,
padecer de um caos que lhe compromete a folha de pagamento dos funcionários que
menos recebem, em se tratando de valores? Pior do que isso, a equipe que assume
as finanças e participou do processo de transição entre o ex-prefeito e o atual
prefeito especula sobre um tal rombo nos cofres da Prefeitura.
Calma lá. Falei, há pouco, sobre
fotos de eventos políticos públicos dos cinco últimos prefeitos de Assis. Em
ordem temporal crescente, seo Zeca disser ter herdado a Prefeitura com
problemas de seu antecessor Romeu. E Romeu voltou à Prefeitura dizendo tê-la
encontrada sem dinheiro deixado por seo Zeca. O mesmo Romeu sai da Prefeitura e
vê Carlos Nóbile com dificuldades de administrar a Prefeitura nos meses
iniciais por... falta de dinheiro em caixa. Quando sai da Prefeitura, Nóbile
entrega o cargo a Ezio Spera, que divulga à população uma nova situação
preocupante relacionada à condição financeira da Prefeitura. Único prefeito
reeleito da história de Assis, Spera não faz da língua o próprio chicote,
poupa-se do autoflagelamento e não fala em caos. Opa! Pela primeira vez a
cidade vê um início de mandato – na realidade, reinício – sem que se saiba que
os cofres estejam vazios.
Ao que parece, não estavam mesmo.
De todos os prefeitos que citei, ninguém escapou dos relatórios negativos do
Tribunal de Contas do Estado. Casos mais graves, casos menos graves, mas a
retórica continuou a mesma: suspeita de apropriação indevida do dinheiro público
quando do investimento em contratos, obras e serviços. Tal qual os parasitas
que transitaram pelo poder nas últimas décadas, a mídia local segue o ritmo
estabelecido por quem manda mais. Não obstante, parte considerável dos relatórios
que rejeitam contas de ex-prefeitos contêm pagamentos feitos a emissoras de
rádio, TV a cabo e jornais impressos da cidade. Logo, estampar manchetes com a
condenação de contas de determinado ex-prefeito pode significar a arapuca de,
respondendo às perguntas básicas do lead (o que, quem, quando, onde, como, por quê?),
autodelatar-se na podridão abordada. Deixar quieto acaba sendo a melhor opção.
Já há algum tempo a embalagem tem
sido mudada, mas a farinha da política de Assis continua a mesma. Uma farinha
de péssima qualidade, que empelota até bolinho de chuva. Farinha que é
materializada na forma dos parasitas do poder cuja esperteza é suficiente para
que de ex-inimigos passem a aliados atuais e, futuramente, a desertores. Claro,
vão desertar pois, aparentemente, outras lideranças tendem a surgir e ter mais
do que 15 mil votos para chegarem à condição de futuro prefeito. Não sem antes,
contudo, estando hoje no poder, garantir que o sigilo das informações esteja
blindado o suficiente para o que é podre não chegue a público. Se vão
conseguir? Não sei. O que sei é que esses parasitas e seus comportamentos
políticos do passado são tais quais dejetos orgânicos humanos e estão tentando
manter-se debaixo d´água, contrariando uma lei da física que os faz
naturalmente boiar na superfície.
Digo não saber sobre o reino de
impunidade e falta de investigação sobre as políticas públicas municipais dos
últimos anos porque há um verbete digital, em forma de hipertexto, assim
descrito: #vempraruaassis. Não é de esquerda, não é de direita, não é de
centro. É das ruas e nasceu no ímpeto da voz que soou a partir do basta à
corrupção. Primeiro foram 6 mil pernas caminhando pela Rui Barbosa. Depois,
cruzes negras plantadas no jardim da Prefeitura. Avante, a palavra na Câmara
Municipal. E, agora, não tem jeito, não só os cofres, mas os processos têm de
ser abertos. Como se abertos e públicos não fossem. São e sempre foram
públicos. Políticos e jornalistas é que não tiveram vontade ou coragem de torna-los
abertos.
Sentado cá, no berço esplêndido
do conforto de quem pode criticar, olho para a equipe de governo do prefeito
Ricardo Pinheiro e vejo figuras que já estavam nas equipes de confiança de
ex-prefeitos que não por acaso levaram surra nas urnas quando tentaram voltar à
Prefeitura. Assinante que sou da Cabonnet, vi o prefeito sendo entrevistado dia
desses e não acreditava nos dois lados que via ali: quem entrevistava e quem era entrevistado. Tivéssemos uma máquina no
tempo e regressássemos para 1998 e aquela entrevista jamais teria
circunstâncias para acontecer em um canal público, uma vez que o PSDB, naquele
ano, não tinha espaço algum na dominada mídia local. Mas ela, a entrevista, aconteceu, vai
continuar acontecendo e as partes que se odiavam ainda ontem, hoje fingem existir
amor eterno. Claro, a arte da poesia do soneto de fidelidade de Vinícius já garantia que não seja importal, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure...
Não precisa trazer Datafolha nem
Ibope para fazer um levantamento sobre o descontentamento da população de Assis
para com os políticos que se propõem a representa-la. Daqui não saem deputados
estadual ou federal há mais de 20 anos. E nem os que vêm de fora têm, mais,
tantos votos como no passado. Nos basta a estatística da eleição municipal do ano passado, em que tivemos o
maior índice de abstenção da história. O eleitor prefere fazer churrasco,
dormir o dia inteiro, ver TV, lavar o carro, dar banho no cachorro, jogar truco
no bar, mas não quer votar. E parte daqueles que saem de casa e vão para as
urnas eletrônicas, ou anulam ou votam em branco. É a maior onda de descrédito da
classe política que já vi nessa terrinha que defino como Sucupira do Vale.
Ricardo Pinheiro e todos os
vereadores, sejam eles seus parceiros de pactos ou não, precisam tirar esses
dias de folga para pensar no que será feito com a cobrança popular para que as
contas da Prefeitura nos últimos anos sejam abertas. Formar uma equipe provisória que envolva
representantes do movimento #vempraruaassis, vereadores e funcionários da
Prefeitura é o que considero ideal. Determine-se um período de trabalhos com
total acesso ao que foi levantado pelo Tribunal de Contas do Estado. Se houve
equipe de transição que trabalhou desde dezembro, reunindo funcionários de Ezio
Spera e funcionários de Ricardo Pinheiro, existe algum tipo de relatório, que precisa aparecer. Saiu,
em janeiro, um tal rombo de R$ 25 milhões nas contas da Prefeitura. Meu amigo,
25 milhões é dinheiro demais. Mas, muito dinheiro. Grana suficiente para acabar
com os problemas do pronto-socorro, com a falta de estrutura da rede municipal
básica de educação. Desde, claro, que os parasitas não estejam envolvidos nas
licitações e que a divulgação da entrega de tais obras não seja paga para sair
em rádios, TV e jornais locais.
Existem mortos enterrados debaixo,
no submundo da Prefeitura de Assis. Só desenterrar não basta. Que se retroaja
no tempo e, nem que seja necessário usar carbono 14, venham à tona os fósseis
de relatórios que condenaram as contas dos 5 últimos prefeitos. Trabalho
minucioso, de historiadores e arqueólogos a legistas, pois há corpos recentes,
cujas autópsias geram forte expectativa popular. Parece-me uma ida sem volta esse
caminho. Ou Ricardo Pinheiro viabiliza essa abertura ou tornar-se-á ele,
metaforicamente falando, o próximo enterrado político nas vindouras eleições
municipais. E não tenha, ele, dúvida que se necessário for, aliados de hoje
determinarão, ocasionalmente, sua autópsia futura. Em nome, claro, da
perpetuação da culpa única do prefeito, em detrimento da culpabilidade dos
parasitas transitórios que colocaram, eles sim, a mão na massa de cédulas públicas.
Professor universitário,
historiador e jornalista, é mestre em Ciências da Comunicação pela ECA/USP.
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