terça-feira, 18 de junho de 2013

A hegemonia por trás da mudança de trânsito na Rui Barbosa


Cláudio Messias*

Cada amanhecer prenuncia um aprendizado. Não recordo de um dia sequer ter ido adormecer sem haver conhecido o novo. E de tanto aprender, entendo, acostumamos a lidar com o novo. Mas, se esse novo mexe diretamente com essa rotina de costumes engessados, incomodamos. Até que, no cotidiano, o novo, em forma de incômodo, seja transformado em rotina.

Em texto anterior citei, no contexto dos protestos que assolam o país – calma, não tocarei nesse assunto, já saturado na agenda settings da mídia, porém presente e necessário em cada ser ideológico que tenta construir, enfim, uma identidade nacional -, sobre o fato de cada um saber onde aperta-lhe, no pé, o calo. Retroajamos nesse fenômeno literalmente orgânico e percebamos que um calo começa como uma incômoda bolha. De tanto ser raspado e apertado o local, a pele engrossa e passa a resistir àquele atrito. Dali, com o tempo, vem o calo. Calo, portanto, advém do conformismo, ou seja, da subjetividade a que rebaixamos determinados desconfortos que um dia foram objetivos.

Há exatos dois anos era anunciado um novo projeto de tráfego para a cidade de Assis. Cidade pequena, com quase 100 mil habitantes, não tem lá tantas ruas e avenidas. Mas as poucas que tem, convenhamos, deram-nos a fama hiperbólica de pior trânsito do mundo. Vem um paulistano, fluminense, curitibano, enfim, um motorista de outra localidade, e nos diz que é quase impossível dirigir por aqui. Quando um brasileiro que foi fazer trabalho forçado em países desenvolvidos cujos habitantes, instruídos, preterem o serviço braçal, cá volta, sacramenta que, definitivamente, Assis tem o pior trânsito do planeta.

Pois bem. A cidade de pior trânsito da galáxia decidiu mudar o que, em reclamação, é consenso dentro e fora do perímetro urbano que define a Sucupira do Vale. E houve um vociferar contrário. Já disse isso, aqui, e repito e repetirei sempre: fui um dos inúmeros chatos que demonizaram as alterações. Fiz isso nas redes sociais, nas rodas de amigos e até naqueles momentos em que dirigimos e conversamos sozinhos. Sim, eu falo sozinho. Aliás, sozinho, não, falo comigo mesmo e, admito, tem hora que nem eu aguento eu mesmo com minhas reclamações. Se tivesse um terceiro eu, reclamaria de mim a ele nesses momentos introspectivos.

Foi nas mesmas redes sociais que uma amiga advertiu-me sobre o tempo necessário para, primeiro, tentarmos adequar nossa rotina à mudança. E, segundo ela, depois, decidir racionalmente se aquilo foi, no conjunto, socialmente falando como um todo, bom ou ruim para a cidade, e não para a ponta de cada umbigo. Sábias palavras daquela amiga, uma psicóloga com quem devaneio em conversas há algumas décadas.

Temos, na nossa rotina, determinadas intimidades na constituição de nossa agenda. Maluquices mesmo, que não são exclusividade da vida urbana. Recordo-me de uma situação em que um tio que tem sítio no Paraná (Barbosa Ferraz) teve um piti porque alguém havia tirado suas botas de borracha, que usava para tirar leite das vacas, do lugar. Acordei naquela manhã e estranhei o casal discutindo feio, cena que ainda não testemunhara. Fui saber, mais tarde – criança jamais participava de conversa de adultos, ainda mais naquela situação em que faca e pau-de-macarrão estavam quase digladiando -, que as tais garrochas estavam, na realidade, a dois metros do local onde tradicionalmente o tio retireiro as guardava. A ira dele estava centrada no fato de seu trajeto constar da retirada das botinas na varanda da casa, o caminhar por uma calçada de tijolos até a casinha de guardar ferramentas (na realidade, uma privada desativada) e, então, o calçar das botas de borracha de cor branca. Alguém havia deixado as botas distante, dali, 2 metros. E fora da calçada de tijolos, exigindo que meu tio pisasse na terra molhada pelo orvalho, encharcasse as meias e perdesse o conforto de ir retirar leite com os pés sequinhos e quentes. Não posso encerrar esse relato sem dizer que o responsável por aquelas botas estarem lá, a dois metros do local ‘certo’, sou eu, que as usei na noite anterior para pescar e, convenhamos, as enchi não só de água, mas barro, lama e qualquer outro elemento que contenha na barranca lá do rio Corimba.

Sei lá quantos anos meu tio passou, na vida, levantando cedo, tirando as botinas na varanda, percorrendo a calçada de tijolos só com meias nos pés e, enfim, calçando as botas de borracha sobre chão seco. Sei, sim, que um dia nessa vida de, hoje, 80 anos de idade, ele perdeu linha, carretel, anzol e toda a tralha, ou seja, perdeu o controle emocional que sempre lhe foi peculiar quando mexeram nessa rotina engessada. Quem está de fora e vê uma cena dessa define tudo aquilo como desequilíbrio (calma, meu tio não bateu em ninguém; apenas ficou azedo, mau humorado, durante toda aquela manhã, saindo de seu perfil pacato, sereno). Mas, como já passaram-se trinta anos desde aquele episódio, tive tempo suficiente para compreender as circunstâncias envolvidas. Nossa rotina, social, entendo, está intrinsicamente relacionada a uma intimidade que remete a um egoísmo que nos faz deixar de dividir determinadas circunstâncias conosco mesmo. Tanto que dificilmente reconhecemos esse egoísmo, que é um sentimento de posse definitiva e inalienável sobre as atividades que cristalizamos em forma de ritual.

Mexer no trânsito de Assis tirou do lugar as botas de borracha de todos nós. Ruas e avenidas que tinham mão dupla passaram a ter único sentido de direção. No máximo, condutores de veículos e usuários do transporte público tiveram de sair uma, duas quadras de seus trajetos. Metaforicamente falando, são os meus tios com as botas dois metros fora do lugar. E, claro, todos, principalmente eu, esbravejaram por horas, dias, semanas e... não, só dias e semanas. Um mês depois a maioria estava adaptada à mudança e transformou-a em mais uma intimidade intrínseca das rotinas individuais. Cada um, hoje, já sabe definir a própria calçada de tijolos que o leve ao destino final, em Assis, sem ter, para isso, de molhar as meias e esfriar os pés.

Falamos, pois, do interesse individual que cada um tem para tracejar seu direito constitucional de ir e vir com liberdade. A aprovação de alterações que atendam a um conjunto de interesses individuais resume-se, ora, a decisões que contemplem a coletividade. As rotatórias que vistas de cima pareciam construto alienígena, os canteiros centrais intermitentes que receberam apelido de muro de Berlim, separando o lado ocidental do lado oriental da avenida Dom Antônio, e a retirada de semáforos de cruzamentos de grande tráfego não só afetaram a rotina da cidade como deram margem a fatalismos como “agora, sim, vai começar a morrer gente no trânsito de Assis”.

Pessoas continuaram morrendo na cidade, mas não necessariamente por conta das alterações na engenharia de tráfego. Dos casos que tive conhecimento pela imprensa local, se alguém morreu foi por imprudência de algum dos lados envolvidos. Aqui mesmo, perto de casa, no cruzamento entre a André Perine e a Santos Dumont, onde já vi duas mortes provocadas por acidentes de trânsito (isso, nos anos 1970 e 1980), as colisões entre veículos continuam, dois anos após as mudanças feitas no trânsito (a André Perine passou a subir no sentido centro>barro e a Santos Dumont, igualmente). Ouve-se o estrondo, os cães latem, todos saímos aos portões para verificar a gravidade e eventual necessidade de acionar o Resgate, e lá está um veículo de um lado, outro veículo do outro, com a culpa daquele que, subindo a Santos Dumont, não estava atento ao sinal de “pare” aéreo, em forma de placa, e de solo, em forma de pintura na cor branca que toma a rua de um lado a outro, já que a via tem mão única. A culpa, pois, não é de quem alterou o trânsito; é de quem faz o trânsito.

Já disse isso aqui e repito. Proprietários de oficinas como meu amigo Jura, da vila Ribeiro, afirmam que o movimento de proprietários de veículos que buscam reparos em funilaria caiu consideravelmente em Assis nos últimos 24 meses. Cai por terra, aí, a piadinha das rotatórias e do canteiro central da Dom Antônio. Sem cruzamento, o risco de colisão transversal diminui a patamares irrisórios. Rotatórias tiraram o lugar de semáforos que mesmo em pleno funcionamento tinham colisões sérias de veículos e eliminaram o argumento conflitivo de “ah, o sinal estava amarelo e eu achei que dava” e “ah, não estava amarelo não porque já estava verde para mim”.

Chegamos, enfim, ao trânsito central. A avenida Rui Barbosa passou a ter mão única em 2012. Parecia, mesmo, o fim do mundo prenunciado pelos maias. Em dezembro o comércio iria perder, as pessoas ficariam horas tentando encontrar lugar para estacionar e, depois, comprar, e a própria Rui Barbosa viraria pista de corrida. Dos três argumentos que li nas redes sociais ou ouvi de amigos, o único que realmente assusta é o terceiro. Atravessar a Rui Barbosa de um lado para o outro fora da faixa é correr o risco de ser atropelado e morrer, dada a velocidade com que alguns condutores trafegam. Mas, espera lá. Na Europa e nas cidades anunciadas como tendo um trânsito melhor que o de Assis deve-se atravessar uma rua ou avenida na faixa de pedestres ou fora dela? Ah, sim, na faixa de pedestre. Então o que temos a discutir, agora, é somente uma maneira de reduzir a velocidade dos veículos, problema que radares fixos ou móveis, somados a pesadas multas, resolve aqui, no planeta e na galáxia.

Falamos que Assis tem o pior trânsito do mundo porém esquecemos de admitir que quem faz o fluxo do trânsito são os motoristas. Se dirigimos nesse trânsito somos, portanto, os piores motoristas paulistas, brasileiros, terráqueos. Estacionar sem, antes, dar seta, e colocar o carro em fila dupla; virar sem dar seta; meter a mão na buzina sem compreender que o carro da frente está dando passagem a um pedestre na faixa, ou aguardar que o subsequente da frente estacione na vaga; falar ao celular dirigindo e ter a sensação de que trânsito e carrossel de parque de diversão são a mesma coisa; dirigir a 50km/h porque a placa indica esse limite de velocidade e ignorar que, na realidade, essa é a velocidade MÁXIMA tolerada e que racionalmente deve-se, portanto, dirigir abaixo dessa média. Apenas alguns fatores que, presentes em nossas bizarrices cotidianas distribuídas 24 horas por diante no tráfego de Assis, fazem a nossa fama de pior trânsito do mundo. E veja que nem entrei no detalhe dos motociclistas que voam pelo lado direito das filas de carros e dos ciclistas, que não entendem bicicleta como sendo um veículo e transitam na contramão.

Falar, pois, que a avenida Rui Barbosa piorou com a implantação de mão única de direção é fácil. Difícil é sair da arrogância pessoal que faz de cada um, um coletivo de péssimos condutores. Um coletivo que dá ao todo a fama de pior trânsito do mundo. Custa à cultura local compreender que trânsito é feito por pessoas, e não veículos. Quando um acidente ou incidente trava determinado corredor de tráfego, são pessoas que atrasam a compromissos, chegam tarde em casa, e não veículos. Aquela vaga que fica 10 horas por dia ocupada no centrão comercial de Assis pertence, via de regra, ao mesmo comerciante ou comerciário que reclama que o movimento caiu depois das mudanças de trânsito. Pessoas que há dez, vinte, trinta anos não abrem mão do conforto de ter as botas de borracha ao alcance dos pés, em detrimento do conforto de seus clientes, mas escoram-se no argumento de que é o trânsito da cidade que barra o desenvolvimento desde 2012.

Ainda há, pasmem, quem apenas olhe dessa forma ao próprio umbigo e não tenha coragem de romper as cercas que feudalmente delimitam seu mundo de pequenez que o impede de enxergar que fora da Rui Barbosa há vida. Com o tráfego distribuído pela Smith de Vasconcelos e pela Floriano Peixoto houve um elo de ligação comercial com a Nove de Julho, com a Ana Barbosa, enfim, o centro financeiro de Assis expandiu-se. Ou essa aristocracia de Assis acorda e reconhece que, hoje, há dezenas de nova lojas e pontos comerciais sendo instalados fora do eixo central da Rui Barbosa, ou ficará fadada a vender e manter as portas abertas até que a velha geração tão ultrapassada quanto ela parta dessa para uma melhor. Se espertos fossem e tino comercial tivessem, tratariam imediatamente de olhar outros pontos comerciais alternativos das redondezas e repetiriam o movimento que faz o centro financeiro distribuir-se de forma homogênea. Comércio heterogêneo, meu amigo, só nas primeiras décadas da fundação de Assis, cem anos atrás.

É da mentalidade de lideranças que cobram a revisão do trânsito de Assis que sobrevive uma cultura de falsa sensação de eternidade da subserviência da comunidade local. Passou da hora de essas pessoas acordarem para o fato de Assis ter o Amigão, o São Judas, o Max, a Americanas, o Walmart e, logo, o Confiança e o Makro. Se é para pagar caro como sempre pagamos literalmente para consumir na cidade, que paguemos caro com conforto e variedade. Nem cobrar caro é, mais, exclusividade dessa aristocracia ultrapassada dominante. Dominante, não. Pseudo-dominante, pois a cidade faz uma leitura da realidade, os aristocratas fazem outra.

Um plebiscito foi decidido como forma de medir a aprovação, ou não, da opinião pública sobre mudanças, novamente, no trânsito de Assis. Aliás, mudanças, não. Retrocesso, pois mudar seria voltar ao que era antes. Já que não dá, mais, para ter o tradicional e velho comércio caro que reinava na cidade 10, vinte anos atrás, que o façamos mediante retomada do que era o trânsito antes de 2012, durante 106 anos. E se você, raro e exceto leitor, me disser que o resultado do plebiscito deve ser respeitado por tratar-se da vontade popular, nem assim me convencerá. E explico por que.

Vivo em Assis há 43 anos. Tudo bem, em parte considerável desse tempo trabalhei, como jornalista, fora daqui. Mas, como é sabido, jamais deixei de morar em Assis. Trabalhei fora, residindo aqui. E olha que ninguém entre meus amigos de fora nunca me acusou de ganhar dinheiro lá e vir gastar e capitalizar em Assis. Só que isso é outro assunto, é outra história. Estou falando de plebiscito, que remete a votação, a eleição. Há mais de uma década olho com receio o movimento eleitoral de Assis, nas urnas formalmente geridas pela Justiça Eleitoral. Não quero chegar ao ponto de colocar em xeque esse democrático processo que tanto tempo de história custou. Mas, a forma como alguns representantes chegam aos poderes legislativo e executivo causa-me resignação. Não vejo suspeita de fraude, nem corrupção. Vejo, sim, sinais de poder a qualquer custo.

Já tivemos eleição de prefeito envolta a escândalo de pesquisa em véspera de eleição. E também já tivemos eleição com 7 candidatos, ausência massiva de eleitores na urna e prefeito eleito com menos de 15 mil votos numa Sucupira do Vale com mais de 60 mil votantes. Isso é fato, está nos arquivos dos jornais locais, em forma de documento formal. Ora não sabemos votar, ora não sabemos em quem votar. E o resultado final não corresponde àquilo que a ampla maioria aspira. Um plebiscito, pois, representaria, nessas condições, o todo? Uma urna colocada no centro da cidade é capaz de buscar a opinião daquele consumidor que vai ao centro uma, duas, cinco vezes ao mês, ou contempla quem está diariamente, lá, porque de lá é?

Algumas empresas reclamam das mudanças no trânsito e pedem a revisão disso. E isso deve ser respeitado, pois a história recente mostra empresa chegando ao legislativo na representação de vereador eleito. Respeitemos, pois, esse poder de compreender suficientemente um processo eleitoral ao ponto de ocupar uma vaga preciosa na Casa de Leis que é a base simbólica do estado democrático de direito, uma vez que ali deveriam estar vereadores que representem os interesses da população consumidora e não de quem determina o consumo.

Considerada a votação nesse plebiscito, que se investiguem os mecanismos que levaram aos resultados e, ponderado aquilo que se pode entender como vontade popular, resolva. Voltar a Rui Barbosa a mão dupla de direção, que fique bem claro, precisa ser uma decisão que tenha líderes responsáveis, que assinem e assumam os desdobramentos, pois são essas pessoas que precisam ser cobradas caso haja eventual situação adversa, como aumento no número de acidentes no trajeto, assim como o movimento no comércio central não seja retomado. Reclamações haverá, todos sabemos, pois as botas de borracha terão sido, novamente, tiradas do lugar. Só vou ter, agora, de me conter com as reclamações.


*Professor universitário, historiador e jornalista, é mestre em Ciências da Comunicação pela ECA/USP.

Um comentário :

Wilson Pires de Souza disse...

Ei Cláudio, como vc sabe, não moro mais em Assis mas visito regularmente a cidade. As alterações no trânsito desde o seu início, se não me engano em julho de 2012, foram benéficas. Em todas as minhas passagens por aí, escutava reclamações e, quando dava minha opinião favorável às intervenções viárias, ouvia... mas vc não mora aqui!!! Como sempre, sua análise foi perfeita sem falar que a estória ilustra perfeitamente a situação. Está mais seguro e mais rápido transitar por Assis e diria ainda mais fácil estacionar na Rui Barbosa. O trânsito somos nós, talvez a melhor mensagem registrada pelo texto. Valeu!