Nesse semestre letivo 2018.2 estou orientando um trabalho de conclusão de curso em que uma estudante aborda, de forma muito competente, o empoderamento feminino decorrente de ações comunicativas de autoestima. E na ciência é assim, conforme a perspectiva do paradigma educomunicativo: a parte que ensina é, em via recíproca, também, a que aprende. E como aprendemos com nossos alunos!
Eis que nessa quinta-feira, 25, fizemos mais uma reunião de orientação de TCC, na universidade. Rotina normal, não fosse um detalhe: o clima de medo que pairou no campus, resultado de uma ação da Polícia Federal, que cumpria mandado de busca e apreensão por parte da Justiça Eleitoral. Alunos e professores confirmando aquilo que foi pauta dos estudos, em reflexão crítica da realidade, nos últimos meses: vivemos sob um estado democrático de direito que tentam transformar em extrato antidemocrático da direita. Momento ímpar de testemunhar, na prática, in loco, aquilo que os livros registram e teorizam como sendo capítulo negro de uma história não muito distante.
Distante das redes sociais e mesmo cá, do território do Blog, desde 2015, por motivos já expostos, tenho evitado entrar na zona de conflito da polarizada discussão que envolve uma pseudo esquerda, que mais mostra-se centrão, e uma direita que cada vez mais pende para a extrema direita. No entanto, quando o cotidiano das atrocidades sai do território virtual das plataformas digitais e atinge a porta de seu local de trabalho, o silêncio faz ecoar um grunhido do consentimento. E é hora de falar através das linhas, para evitar as entrelinhas.
De 2014 pra cá o Brasil testemunhou episódios não tão bons no sinuoso coletivo da cultura de massas. Aquele 7x1 para a seleção da Alemanha, na Copa realizada aqui, afetou a indústria do consumo de maneira díspar, a considerar que a hegemonia, na representação da maior economia da Europa, saiu ganhando, e a contra-hegemonia, na perspectiva de uma comunidade latino-americana de resistência, entendeu, por vez, que futebol, corrupção na gestão e alienação são tipos de farináceos empacotados em embalagens distintas a partir de uma mesma matéria-prima.
Se hegemonia, pois, está formulada no pretenso domínio das forças de produção e circulação de mercadorias, ideias e cultura, o eixo geopolítico brasileiro que quer deter o controle do capital nacional, qual seja, Sul-Sudeste-Centro/Oeste, passou por nova decepção apenas 3 meses após o Brasil ser eliminado, como anfitrião, na Copa que organizou. Em mapa ilustrativo, apesar de o azul de direita predominar nessas três regiões, foram o Norte e o Nordeste, vermelhos, que deram resultado final às eleições presidenciais cujo vigor, queiram ou não os polarizados debatedores, esgota-se nesse 31 de dezembro de 2018.
O futebol brasileiro experimentou um baixo-astral nacional demonstrado, agora, em 2018, em mais uma decepcionante eliminação em Copa do Mundo, na Rússia. Na perspectiva da gestão da comunicação, os admiradores do futebol canarinho confiaram sobremaneira que um técnico salvaria a Nação de mais um desgosto. O mais badalado treinador desde Telê Santana tinha em mãos parte dos milionários atletas pagos no mundo, em uma campanha pré-Copa que tornava o elenco candidato primaz ao título. Só que não. Vimos, no hegemônico cenário do futebol internacional, que um comandante e seus súditos diretos pouco ou nada podem fazer se a força contrária não o quiserem no topo.
Nesses últimos quatro anos o interesse da cultura de massas pelo futebol, no Brasil, declinou com o prestígio daqueles que, na hegemonia, administram essa indústria do consumo. Demonstração disso é que se Tite tivesse obtido êxito contra-hegemônico e seus comandados erguessem a taça na Rússia, o troféu seria recebido das mãos da Fifa por alguém que não seja o presidente da CBF. Sim, o mais alto comando do futebol brasileiro cumpre prisão domiciliar territorialmente interna, sob risco de sair de nossas fronteiras e cumprir prisão nos Estados Unidos. Por acusações de corrupção. Iria para a cadeia fazer companhia aos dois mais recentes presidentes da mesma CBF.
Os estádios de futebol, sejam eles construídos ou não para a Copa de 2014, acumulam sucessivos fracassos de bilheteria. O tal legado da Copa não serviu a nada. Ou, melhor, contribuiu para manifestações homofóbicas saídas das arquibancadas, como nos gritos "bicha", quando o goleiro adversário cobra lances como tiro de meta. Clubes que aceitaram mediar bilionárias construções de estádio hoje estão quebrados e com as receitas geradas pelos minguados públicos não honrando com o pagamento de obras imersas a um limbo de corrupção.
O esvaziamento das arquibancadas no pós-Copa reflete, igualmente, nas salas de TC das residências. Os canais abertos protagonizaram a debandada do clube da falcatrua. Com faturamento em queda tão vertiginosa quanto os índices de audiência do meio televisão, ninguém quer pagar o alto preço dos pacotes de transmissão. Se a UEFA Champions League é o terreiro do que há de melhor no futebol mundial, a própria Globo declina de pagar por suas transmissões. A mesma Globo que perdeu a parceria da Band nessas transmissões e ficou sozinha, inclusive, para mostrar os jogos do Brasileirão.
Na Tv paga o cenário é ainda pior. A hegemonia por trás do Esporte Interativo, que esbanjava na cara de pau ser contra-hegemônico, não aguentou o próprio faraônico e misterioso projeto e declinou da articulação que previa retirar clubes do feudo da Globo, almejando para 2019 democratizar as transmissões do Campeonato Brasileiro. De múltiplos canais próprios o EI resumiu-se a partes isoladas de programação de canais pagos que já exibiam algumas transmissões esportivas, como o são Space e TNT. Se aconteceu a anunciada revolução nas transmissões, ela ocorreu na forma de hidden news (Messias, 2018), ou seja, as notícias ocultas, não informadas, em que há o fato, mas não a notícia.
Futebol e eleições, vemos, estão estritamente ligados enquanto pauta do agendamento de consumo. As eleições norte-americanas acontecem no mesmo momento em que, no Brasil, elegemos prefeitos e vereadores. Ficamos focando os olhos àquilo que acontece no limite de nossas cercas e não mensuramos os reflexos vindouros de processos eleitorais manifestados na América do Norte e na Europa. E foi assim que a insurgência de um manifesto oculto de extrema direita enraigou em nossa democracia, sem que nos déssemos conta. Uma cegueira branca protagonizada pelo discurso de que a seleção nacional, composta pelas cinco regiões administrativas, estivesse desordenada o suficiente para que um salvador da pátria reaparecesse, tal qual em 1989.
Desgostamos do futebol e da política ao ponto de não enxergarmos a realidade. Éramos a sexta economia do mundo dias atrás, integramos o bloco denominado BRICS, com Rússia, África do Sul, China e Índia, e experimentamos respeitados avanços na educação, mas o que nos convence, dentro do que ouvimos, é que o país lidera rankings contestáveis disso ou daquilo. Somos quem mais joga canudos de plástico nos rios, produzimos o maior número de lixo eletrônico do planeta e pirateamos marcas como ninguém. Se antes havia pesquisa de tudo, agora há ranking de tudo. Parâmetros advindos de pesquisas feitas em outros países, cuja confiabilidade, por mais que seja contestada, é apresentada nas elas das TV e nos sites de notícias como sendo verdade absoluta. Basta uma pauta de redação e o parâmetro será um desses rankings que rebaixam o Brasil.
A tentativa estratégica da hegemonia de mostrar o Brasil como um território de risco foi iniciada, de maneira mais escandalosa, em 2002, quando, nessa mesma época de eleições, surgiu, no Exterior, o Risco Brasil. Aquilo que o mundo entendia como possibilidade de catástrofe latino-americana confirmou-se como projeto socioeconômico sólido o suficiente para fazer emergir a tal da Nova Classe C, cujo poder de consumo salvou indústria, comércio e a própria mídia hegemônica que mediava o caos não fundamentado.
Assistir ao cenário em que a hegemonia tenta rebaixar a autoestima do Brasil é, na forma figurada, semelhante à imagética cena em que o marido machista tenta controlar a independência da esposa xingando-a à base do assédio moral. Somos a Nação das belezas naturais, porém nada podemos fazer além de cuidar dessa beleza e servir à hegemonia com um modo controlado de produção, sem autonomia de reflexão. Nessa perspectiva, somos lindos, porém burros e incapazes de mudar sozinhos nosso destino. Se fazemos algo nobre, é ação de exceção à regra. E quando nos comparam com os outros, somos sempre a parte que leva menos vantagem.
É com esse discurso eleitoral que chegamos ao pleito para escolher quem nos governará a partir de 2019. Não somos mais a 6.a economia do planeta, tudo bem. Mas, somos a 8.a economia. Caímos duas posições nesse ranking ridículo de comparação. Só que nos acostumamos historicamente mal com o futebol, de maneira a não aceitar colocação que não seja a primeira. Basta recordar que um goleiro brasileiro esnobou a medalha de vice-campeão em torneio de futebol, forma arrogante de não aceitar a vitória do adversário.
Em 2014 a culpa pelo resultado das eleições presidenciais foi do Nordeste. Veículos estamparam nas ruas o adesivo com os dizeres "A culpa não é minha. Votei no Aécio". Nas redes sociais o nordestino ganhou estereótipo de culpa por tudo que de pior ocorreu nesses últimos quatro anos, como se a eleição fosse distrital e o peso das urnas do Nordeste e do Norte fosse maior que o das demais regiões. O Brasil reelegeu Dilma, e não somente duas regiões. Mas, no oportunismo, valeu ignorar o horário de verão, a disparidade de fuso horário de um país com dimensões continentais, e demonizar o não real. Bastaram dois anos para, depois, os adesivos de não culpabilidade desaparecessem, assim como os 'aecistas' ofuscados pela JBS.
O fundo do poço da auto-estima, porém, atingiu o limite. O brasileiro está se dando conta de que não, não é por acaso que o país seja a oitava economia do planeta. Nosso PIB está crescendo entre 1% e 1,5% ao ano, mas está crescendo. Na retórica capitalista, não importa que entrem centavos ou reais, importa é estar entrando dinheiro. Melhor ter a receber do que a pagar. Ora, se é isso que reina, então não somos o país do caos. De Risco Brasil passamos a ser objeto de Economia Emergente. Isso, sem fazer qualquer menção a legenda ou coligação política.
A inércia advinda de decepções coletivas nos últimos anos fez assustar quem monitora o cenário político vindouro. Não se entendia, até poucos dias atrás, como um meme virtual, saído do estereótipo daquilo que pode ser considerado pior na política do país, poderia estar ganhando a força que ganhou após passada a Copa da Rússia. O pesadelo do 7x1, somado a um discurso hegemônico que rebaixamento da auto-estima nacional, produziu uma sensação de viralatismo de que qualquer coiso resolve os problemas nacionais. Mas, os milhões de Maria da Penha parecem ter dado um basta nessa forma domiciliar, nacional, de prática da violência verbal de rebaixamento da identidade nacional.
Saímos de um primeiro turno das eleições presidenciais com a hegemonia quebrando a cara com o fiasco, nas urnas, de um PSDB que dessa vez não só perdeu a final da copa eleitoral, mas, foi descartado já nas eliminatórias. Nem na final os neoliberais chegaram, para desespero de um mercado ávido pela retomada absoluta do controle de um país que em uma década e meia esteve sob gestão da força popular de produção.
A auto-estima do brasileiro foi tocada, começando pelo Nordeste, que permaneceu vermelho no mapa ilustrativo da divisão de interesses desse país. O discurso de ódio que anunciava exterminar o vermelho do país à base da bala não foi aceito por aqueles que votaram verde no mesmo mapa geopolítico do primeiro turno. E esse verde foi, aos poucos, ganhando tom avermelhado com a fuga do debate acerca da fórmula secreta que tiraria a Nação do caos em que nunca esteve, assim como ante a um discurso arbitrário de ataque ao estado democrático de direito na forma de suas instituições mais sólidas.
Se iniciamos esse trajeto político atual com um 7x1 no feudo do futebol, passamos para um cercamento eleitoral contemporâneo em que o país da educação e da revolução social silenciosa venceu, na prorrogação, por 5x4, em 2014. Esse placar, três semanas atrás, mostrava uma derrota, nas urnas, por 4x2, goleada que fez ecoar pelo território nacional o brado temeroso da ditadura. O marido violento voltou a falar mais alto e causou estranheza às Marias da Penha, que despertaram ante a um discurso galante de quem, na prática, doutrina o domínio à base da força, em detrimento da liberdade individual de buscar a autonomia.
Em três semanas esse placar eleitoral mostrou a goleada ser ampliada para 6x3. Mas, a Maria da Penha nacional temeu, e não tremeu. A reação, dentro do tempo normal de jogo, está mostrando que antes de chegar aos 40 minutos do segundo tempo já temos um 5x4, com o time que está perdendo jogando muito melhor. Os comentaristas do jogo, sentados nas confortáveis cabines da hegemonia, desmerecem a auto-estima nacional, dizendo que a essa altura a reação da parte supostamente derrotada é tardia, devendo prevalecer o favoritismo de quem tem o domínio do placar.
De hoje até domingo há muita bola para rolar no país. A tela da hegemonia não consegue mensurar o cotidiano que desenrola dentro dos lares das Marias da Penha nacionais. Isso exposto, o placar de 5x4 não está correspondendo ao que citam os olhos filtrados dos críticos que são pagos para dar recorte da realidade a partir de edição própria de visão de mundo. O maior colégio eleitoral do país já deu sinais de que esse jogo não só já empatou, como virou, mas os comentaristas ainda se sustentam em sistemas táticos de 4-4-2 ou 3-5-2 para justificar o injustificável.
No domingo à noite, se a zebra for confirmada, os maridos violentos vão culpar a vítima pela punição coletiva que sofreram, como é prática das sociedades dominadoras. Pesquisas terão falhado no resultado final, mas herdarão o mérito por terem sinalizado para uma possível virada, mesmo que essa possibilidade fosse rotulada como sendo a mais improvável.
O 5x4 das Marias da Penha Nacionais pode vir trazendo consigo a consolidação do Vox Populi, em meio ao sepultamento definitivo de Datafolha e Ibope, que já há muito tempo mais erram do que acertam, no limite da margem de erro de credibilidade da desesperada hegemonia direitista.
* Professor universitário, historiador e jornalista, é doutor em Ciências da Comunicação pela ECA/USP.
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