segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

PANDEMIA - O dia em que confirmei que, sim, tudo voltou ao normal

 Cláudio Messias*

Nesse domingo, 17 de janeiro, fiz meu trajeto de 15 horas de duração para sair de Assis, SP, e chegar a Campina Grande, PB. Cento e 20 quilômetros de carro até o aeroporto de Presidente Prudente, depois uma conexão relâmpago em Campinas, mais 3 horas até Recife, quase 5 horas de espera e, enfim, a aterrissagem na Rainha da Borborema.

Muitos imprevistos marcam viagens assim, que faço desde 2010, quando vim a Campina Grande, como pesquisador da USP, pela primeira vez. No caso específico desse domingo comi uma tapioca com queijo branco e uma fatia de peito de peru defumado no meu café preto de manhã, junto com Rozana. Seria a única refeição até as 16h20, quando o Airbus A330 da Azul desceu em Recife. A conexão em Campinas permitiu apenas que eu saísse do ATR, desembarcasse e, em conexão, imediatamente embarcasse no Airbus.

Ficar todo esse tempo sem comer, tudo bem, não afeta tanto, pois na vida do jornalismo cansei de trocar almoço por café da tarde à base de pão com presento e/ou mozarela. O que ainda não havia experimentado foi a sensação de sufocamento por que passei dentro do Airbus. Eu estava vendo o filme O Segundo Exótico Hotel Marigold e ria, muito, com a comédia que tem atores/atrizes indianos/as maravilhosos/as.

Em um dado momento, contudo, senti o ar rarefeito. A mesma sensação de que tenho reclamado, principalmente nas madrugadas, desde a cirurgia cardíaca de 2015. Notei que estava suando, apesar da climatização, bem feita, da aeronave. A moça sentada e corredor na poltrona ao meu lado estava desmaiada, de tanto que dormia. Acionei o comando de chamada da comissária de bordo. Ela veio, trouxe-me água (único 'alimento' que a ANAC autoriza servir em voos na pandemia), mas deu conta de que na realidade eu pedia socorro.

Batia, ali, a sensação de que eu precisava respirar ar puro e botar a cara na luz natural do dia. Mas, como fazer aquilo, a que sempre recorro quando estou em casa, nas madrugadas, com sufocamento, com a aeronave a sei lá quantos mil metros de altitude? Dialogando comigo a comissária tratou de traçar o diagnóstico de que eu estava em crise de pânico. Lamentou que não poderia sugerir à pilota (sim, a comandante daquele voo era uma mulher) alteração alguma de rota, mesmo tendo outros passageiros reclamando da mesma crise que eu.

Aceitei o copo de água que ela levou, tomei, mas recusei a medicação sugerida. Resisto o quanto posso aos ansiolíticos, tipo de medicação ao qual fui por vezes submetido desde a cirurgia cardíaca, principalmente em 2015, quando tive diagnóstico de Síndrome de BornOut, submetido que estava a situações de assédio moral em meu ambiente de trabalho. E, inclusive, até tinha na mochila, junto com meus medicamentos cotidianos, o frasco de ansiolítico. Optei, apenas, por adotar a estratégia do autocontrole, à base da meditação.

A cada 20 minutos ou meia hora a mesma comissária de voo passava e perguntava se estava tudo bem, ao que eu sinalizava que sim. Entre uma prosa e outra a observação da profissional sobre o índice elevado de passageiros, na pandemia, que apresentam estado semelhante ao meu naquele voo. Teoria dela, o temor decorrente da pandemia faz as pessoas desesperarem quando dão conta de que encontram-se aglomeradas dentro de uma aeronave e, pior, sem opção alguma de mudar o curso da situação.

Dei uma pausa no filme e, quando meditava, desconectei do mundo real por alguns minutos. Um cochilo mesmo. Despertei, terminei de ver o filme e, na sequência, vendo o painel mostrar que estávamos a 1 hora de Recife, decidi ver documentário do National Geographic sobre o duelo "Humanidade x Inteligência Artificial", de 40 minutos. A comédia deu lugar a uma séria reflexão acerca da suficiência que a humanidade terá para gerir as máquinas no ano 1 milhão, quando a vida poderá ser eternizada por androides programados, de maneira que o corpo, sim, morra, mas os dados da vida de cada um, não, podendo, esses, serem recarregados em uma representação engenhosa da pessoa morta, que fica, assim, eternizada.

Bastou o cenário futurista mexer com a cabeça, com o raciocínio e lá veio, de novo, a sensação de pânico. Estava em meu semblante e a comissária, quando passou pelo corredor, parou e afirmou, em vez de perguntar: "o senhor não está bem de novo". Mas, a situação já estava mais administrável e consegui reencontrar o equilíbrio, sem ter a sensação de que precisava levantar e sair do lugar, como ocorrera horas antes.

Quando a aeronave desceu em Recife levamos mais de meia hora para desocupá-la por completo. Eu estava na fileira 33A e, portanto, fui um dos últimos a deixar o Airbus. Aliás, nesse aspecto, as restrições decorrentes da pandemia fazem gerar uma mudança de comportamento que faz da desocupação de aeronaves um problema no mundo todo, e não somente no Brasil. Os/as apressados/as que sequer esperam a aeronave parar por completo e congestionam corredores batendo com bagagem de mão na cabeça de quem está sentado agora têm de esperar. Sentados. Vivi para ver isso acontecer um dia, e nessa viagem de ontem testemunhei a cara de insatisfação dos/as apressados/as por três vezes.

E nessa postagem estou falando diversas vezes dela, a pandemia. Muito bom ver que o comportamento dos passageiros teve de mudar com a pandemia. Mas isso, dentro das aeronaves. Porque fora delas a cultura do desrespeito, da parte de passageiros e da parte de quem faz a gestão de aeroportos, continua idêntica. Máscaras que só cobrem o queixo são vistas aos montes dentro dos aeroportos. E as salas de espera, apesar de terem assentos marcados para que se respeite o distanciamento social, são repletas de pessoas sentadas em todos os lugares, permitidos ou não.

A pior de todas as cenas eu assisti no aeroporto de Recife. Como disse, cheguei pouco depois das 16 horas e sairia para Campina Grande às 22h00. Sempre, nessas ocasiões, antes da pandemia, eu aguardava na sala de embarque, onde há opções de alimentação. caras, mas estão lá, fazendo evitar que se saia do embarque e, depois, tenha-se de fazer todo o procedimento de revista, necessário, de embarque.

Assustei quando vi aquela multidão, no final da tarde de domingo, ou nas filas de embarque em frente aos respectivos portões, ou sentados. Outras filas ainda eram formadas nos quiosques de alimentação. Tive, ali, não uma crise de pânico, mas uma revolta imensa. Pessoas de todos os estados e de outros países aglomeradas, usando porcamente as máscaras, enfim, em um ecossistema perfeito para o contágio por Coronavírus. 

Não titubeei e saí, pelo portão de despacho de bagagens. Minha esperança era que a praça de alimentação do piso 3 estivesse menos congestionada, pois recebe passageiros que estão chegando para embarcar e têm pouco tempo para comer. Sentei, comi um filé de frango à bolonhesa, tomei  mais de um copo de 500 ml de chope, dialoguei com a família e alguns amigos, enfim, relaxei. 

Perto das 21 horas fiz novamente o embarque e deparei com um saguão menos cheio. Nas poltronas de espera conheci padre Pedro, um jovem com menos de 40 anos de idade pároco no centro histórico de São Luiz, capital do Maranhão. Como lá estive em 2019, em São Luiz, proseamos sobre a maravilha que é o centro histórico da capital maranhense, com sua história de relação com os negros e lamentamos as cenas que, apesar do número reduzido de passageiros, se repetiam: brasileiros e estrangeiros indo pra lá e pra cá com as máscaras no queixo, como se nada estivesse acontecendo no Brasil e no mundo.

Eu e padre Pedro, então, tivemos consenso na conclusão de que, sim, tudo voltou ao normal. Eu citei a comprovação disso quando comentei a cena que vi, em Viracopos, na manobra do ATR que levou-me de Presidente Prudente. Já no ônibus da concessionária do aeroporto visualizei, algumas dezenas de metros adiante, a aeronave da Azul adesivada para buscar milhões de doses e insumos de vacina na Índia mas que, na realidade, estava ali transportando cilindros de oxigênio para Manaus. A foto está anexada a essa postagem.

A aeronave adesivada para buscar vacinas que não vieram


Para a nossa tristeza, a vida voltou ao normal e comprovamos isso quando vemos aeronave adesivada e locada com dinheiro público sem nunca ter deixado o solo para buscar vacina alguma, dentro de uma estratégia de fazer pioneirismo de saúde pública em um momento em que mil pessoas morrem por dia, desde março passado.

Naquela tarde de domingo, enquanto um genocida fazia estratégia de guerra que mais lembra o filme dos anos 1980 Top Secret - Super Confidencial para distribuir vacinas pelo país, do outro lado um não menos genocida ignorava comandar o estado da Nação onde mais pessoas são contaminadas e/ou morrem por Covid-19 e vibrava, com semblante de dar medo, ter vacinado a primeira brasileira contra a doença.

Fiz as contas aqui e com os números do tal consórcio de imprensa as 207 mil mortes contabilizadas no Brasil até o final de semana passado permitem concluir que perdemos vidas que correspondem à queda, sem sobreviventes, de 470,45 aeronaves Airbus A330 Neo, cuja capacidade é para 440 pessoas, entre passageiros e tripulação.

Com um ano da pandemia no país prestes a ser completado, é como se 1,2 aeronaves Airbus A330 caíssem a cada dia no Brasil nesses últimos 365 nefastos dias da nossa história contemporânea. E ainda temos que ligar a TV ou acessar as plataformas digitais e deparar com um governador de estado e um presidente da República fazendo das semelhanças pessoais (me recuso a definir a intriga como diferenças) algo maior do que as vidas perdidas e, pior, as que estão por vir.

De ontem para hoje, pelas estatísticas oficiais, enquanto Dória e Bolsonaro faziam seu teatrinho de horror, dois Aribus A330 caíram, imageticamente, sem sobrevivente algum. Eles, governantes, acostumaram com o cheiro da morte. E nós, vítimas, nos acostumamos com isso tudo, pois, como disse, não é que tudo voltou ao normal; nada saiu do normal nessa pandemia toda. A crise da saúde é que está mostrando quem são cada uma das pessoas que foram escolhidas para estarem onde estão, nos cargos que ocupam.

* Professor universitário, historiador, é doutor em Ciências da Comunicação pela ECA/USP.

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