20 Fevereiro 2013
Cláudio Messias*
Meu tio Miguel Sussel, na realidade tio de minha mãe, Luzia,
disse-me certa vez, lá pelos idos de 1983, que observando a rotina dos pássaros
e de outros animais que pertenceram ao ecossistema da Água da Cruz, nas
imediações do Tabajara, em Assis/SP, aprendeu diversas lições para a vida
humana. Um dos casos mais excêntricos é o de um tico-tico.
Tico-tico é um passarinho de pequeno porte. Como referência,
cito o pardal, fartamente visto nas cidades. Tico-tico é menor que um pardal.
No folclore caipira, o tico-tico seria, digamos, um bobalhão. Isso porque até
em letra de música sertaneja de raiz é retratado o cenário em que o tico-tico
faz o ninho, o chupim aproveita para colocar os ovos. Não raro veem-se fotos de
tico-tico alimentando filhotes de chupim (veja exemplo abaixo). E perceba que o
chupim tem porte bem maior, além, claro de ser totalmente preto.
Foto: Maza
Dizia tio Miguel que certa vez, tombando uma taboca (moita
de mato fechado), lá pelos idos de 1940, ali mesmo na Água da Cruz, na pausa
para o almoço havia o testemunho de um barulhento casal de joão-de-barro. No
alto da paineira era erguida a casa de barro das aves. E a matéria-prima,
buscada naquele que quando criança eu chamava de “riozinho”, um dos mananciais
que abastecem, hoje, a represa do horto florestal de Assis e, por consequência,
a represa do Cervo, principal fonte de água potável da cidade.
A terra esbranquiçada e fraca da margem do rio, também
chamada de saibro, era buscada em pequenas porções pelo joão-de-barro macho. Observando
melhor, contudo, tio Miguel percebeu que a cada descida ao rio e subida à
paineira havia dois pássaros na mesma rotina. O pássaro maior, com penas na cor
marrom predominante e bege no peito, era o joão-de-barro. E o outro pássaro
menor não era a fêmea de joão-de-barro. Era um tico-tico.
Mas o que faria um tico-tico na companhia do mestre de obras
joão-de-barro? Pronto. Estava definido o programa de meu tio no período da sesta de almoço. No lugar do cochilo, a oportunidade de admirar a relação entre
as duas espécies de pássaros. E nessa dança, a cada descida do joão-de-barro o
tico-tico também pegava uma porção de barro. No retorno à paineira, o joão-de-barro
colocava a porção na casa, ajeitava, e meticulosamente cumpria seu instinto. O
tico-tico, supostamente, engolia a porção de barro.
Quando tio Miguel terminou o descanso e afiava o facão para
continuar tombando aquela parte da mata, se deu conta de que o tico-tico já não
mantinha mais o mesmo pique de subidas e descidas desde a paineira até a margem
do rio. Para cada duas subidas e descidas do joão-de-barro, uma do tico-tico.
Já era o efeito do peso do barro no minúsculo estômago do tico-tico.
No final da tarde, meu tio voltou ao mesmo local para
recolher marmita e garrafas de água e café. O sol já tinha baixado no horizonte
e os pássaros todos ecoavam seus pios no cantorio do crepúsculo. Um olhar para
a casa do joão-de-barro. E nada do casal de joão-de-barro. Mas o tico-tico
estava lá, nos galhos baixos da paineira, quietinho, com as penas arrepiadas e
olhinhos meio abertos, meio fechados. O homem do campo, contudo, não intercede.
A natureza tem suas regras e interferir nelas já basta na forma de viver em
civilização.
Tio Miguel, na manhã seguinte, pouco depois do alvorecer, lá
estava batendo ponto junto com o casal de joão-de-barro. Iniciou mais um dia de
trabalho, não sem antes buscar com os olhos o tico-tico. Não avistou. O que
viu, sim, foram algumas penas espalhadas bem embaixo dos galhos onde no início
da noite anterior estava o tico-tico. Certamente, o passarinho que acompanhou o
joão-de-barro não suportou o próprio
peso no galho, caiu e foi devorado pelos animais que imperam na mata durante a
noite.
Esse causo contado por meu tio tinha uma justificativa, um
fundamento. Segundo o mais velho, não se deve repetir o hábito de outra pessoa
simplesmente porque é bonito o que ela faz. Tio Miguel se referia
especificamente aos vícios do cigarro e da cachaça, drogas lícitas que
experimentadas por impulso levam ao consumo compulsivo que, inconsequente, destrói
vidas, desestabiliza famílias e desestrutura futuros. Aderir ao que o outro faz
sem medir as consequências é comprometer o todo. E esse exemplo pode ser estendido a roubos e outras ações previstas como crime.
Em mais uma de minhas paradas por Assis vejo o prefeito
Ricardo Pinheiro assumindo a condição de tico-tico. E olha que ele, na metáfora
política, é tucano. Eleito com chapa pura, ou seja, sem coligações, o mais
jovem prefeito da história da cidade não está se dando conta de que está acompanhando o
joão-de-barro. Tem feito cessões e pactos que, tudo bem, são normais dentro do
jogo de interesses chamado de política. Cedo, contudo, demais.
Olho para o passado recente de Assis e vejo dois
ex-prefeitos que pagaram preço alto por terem colocado verdadeiros urubus nos
corredores do poder da Prefeitura. Pagaram preço caro para o próprio capital
político por terem aliado-se a pessoas com quem jamais deveriam ter subido no
mesmo galho. O resultado, todos sabemos, é o mesmo: essas pessoas saem do poder
pelas portas do fundos, deixam o rombo e quem assume e paga o preço é o
mandatário. É diretamente no nome do prefeito que vão Ministério Público e
Tribunal de Contas. E a ficha suja, claro, vem em primeira pessoa, não em forma
passiva.
Na paineira da vida, Carlos Nóbile e Ezio Spera acreditaram
na beleza das ações de quem subia dede o rio levando barro no bico até o galho
mais seguro. Aderiram ao jogo mas quando sentiram o efeito do peso das ações,
olharam para os lados e não mais viram os joão-de-barros, que, claro, tinham
lugar mais seguro e já pronto para dormir protegidos. Descobriram tarde demais
que tico-tico que acompanha joão-de-barro corre o risco de dormir feito
morcego. Porque o barro pesa no estômago e quando a fraqueza bate, o peso prevalece e o corpo cai. Só que aí a presa já está no prato do predador.
* Professor universitário, historiador e jornalista, é
mestre em Ciências da Comunicação pela ECA/USP.
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