06 MAIO 2013
Cláudio Messias*
Dia desses vimos, na tela da TV, a imagem de uma câmera de
segurança que mostrou a reação de um policial que, de folga, não consentiu a um
assalto a estabelecimento comercial que frequentava. Bala daqui, bala dali e o
bandido tombou. Em ocorrências do gênero, ultimamente, além de roubar, provocar
o pânico geral, os bandidos ainda têm atirado e matado sem a mínima reação das
vítimas.
Também na hegemônica tela das TVs a notícia de um tiroteio,
no Rio. Bala daqui, bala dali, um passageiro de automóvel é atingido e agoniza.
Uma médica que estava com a família deixa carro e parentes de lado e faz os
primeiros-socorros, salvando aquela vida ao estancar o sangramento e reavivar a
vítima quando de parada cardiorrespiratória. Normalmente, essa vítima
agonizaria até a morte, por falta de socorro especializado enquanto a poeira
não baixasse.
O Brasil e o mundo viram as imagens de jovens que, munidos
de picaretas e marretas, improvisavam a abertura da espessa parede da boate
Kiss, em Santa Maria/RS, acreditando ser possível encontrar vida entre tantos
corpos ou, então, abrir uma passagem de ar que garantisse ao menos a esperança
de salvar vidas. Aqueles jovens muito provavelmente nunca haviam pego numa
marreta na vida, muito menos, trajados com a melhor roupa, saíram de casa para
tamanho esforço físico daquela ocasião.
Aqui em Assis, desde a semana passada, paira no ar uma
poeira tóxica. Esse tipo de poluente pode ser percebido no ar a partir de abril
e estende-se até dezembro. Em meus tempos de redação saía com Dagoberto
Nogueira (Gazeta do Vale), Paulo Cuca (Oeste Notícias) e Lúcio Coelho(Voz da
Terra) e dava, em circunstância assim, um giro por postos de saúde e pronto
socorros. Pauta tipo jabá, pois sabíamos exatamente o que encontraríamos. Filas
imensas de mães levando filhos para sessões de inalação ou idosos chegando a
ser internados, com dificuldade para respirar.
Aquele policial que reagiu e protegeu, mesmo à paisana, os
clientes que estavam no estabelecimento comercial nada pode fazer contra essa
poeira tóxica. Aquela médica que deu os primeiros socorros à vítima de bala
perdida no trânsito carioca poderia, sim, diagnosticar o problema respiratório
provocado por esse tipo de poluição assassina do ar, porém continuaria inerte perante
à origem do problema, a causa. Já aqueles jovens de Santa Maria ficariam na
dúvida sobre qual ar estaria mais intoxicado.
A qualidade do ar é um patrimônio, mas os fiscais ambientais
têm uma práxis que os torna tão frequentes quanto candidatos a deputado e peritos
técnicos. Aparecem sazonalmente e, na maioria das vezes, quando um desastre
ambiental já fez estragos muitas vezes irreversíveis. Acredito, inclusive, que
aqui, no Médio Vale do Paranapanema, não deva residir um fiscal sequer desses,
que tenha na prática cotidiana detectar prenúncio de problemas ambientais que
afetem diretamente os humanos, que, parece-me, são espécie.
Algum tempo atrás, na Sucupira do Vale, a causa principal
dessa nuvem tóxica fazia com que nos sentíssemos no próprio inferno. Refiro-me,
raro e exceto leitor, à queimada da cana-de-açúcar. Mais precisamente, dos
canaviais. Sim, hoje há incidência menor dessas queimadas. Mas, a prova
material de que elas, as queimadas, ainda existem está aí, na sua casa. Por mais
que sua empregada, sua esposa, você mesmo ou qualquer outra pessoa tenha lavado
seu quintal na tradicional faxina da sexta-feira, hoje, segunda, há cinzas
espalhadas por todos os lados. E nem nisso a natureza ajudou, pois a chuva de 9
mm prevista para o domingo resumiu-se a um chuvisco.
A cena, quinze anos atrás, era de um campo que à noite ardia
em brasa. E a revolta contra aquilo partia mais das autoridades do que
necessariamente da comunidade. Se, por um lado, o Ministério Público cobrava
ações das usinas para que as queimadas fossem reduzidas, ao ponto de serem
estabelecidos prazos para o gradativo fim dessa prática, por outro, a
dependência econômica urbana desse segmento fazia com que a sociedade regional
interpretasse o desastre ambiental com o típico “está ruim, mas está bom”. A
usina polui o ar e apodrece o corpo, mas dá o emprego que garante o sustento do
mesmo corpo.
Trabalhei 3 anos e meio dando aulas em Presidente Prudente,
até 2011. Saía de Assis às 17h00 e cá chegava após a meia-noite. Todas as
noites, diversos pontos de queimada de canaviais. Atropelei, também, diversos
animais silvestres que, desesperados e em fuga das chamas, cruzavam a SP-270.
Incêndios assustadores, que consomem em questão de minutos centenas de hectares
de cana. Um canavial inteiro queima muito rápido, pois somente as folhas, a
palha, entram em combustão. Suficiente, contudo, para dizimar qualquer espécie
animal incapaz de competir com a velocidade supersônica com que as chamas
avançam.
As cinzas dessas queimadas atingem altitude incrível. Sobem
levadas pelo calor das chamas e caem, fragmentadas, dezenas de quilômetro
adiante. Subissem e caíssem no próprio canavial e teríamos somente uma parte do
problema. A questão é que essa nuvem tóxica vem para a cidade, imunda quintais
e, o que é pior, provoca doenças respiratórias em ricos, pobres e miseráveis.
Parece-me que fiscais ambientais, prefeitos, vereadores, juízes e promotores
fazem parte dessas três classes sociais.
Muito me estranha a ausência de uma parte que já citei ali,
alguns parágrafos atrás: o Ministério Público. Fico com a sensação de que
promotor público não respira o mesmo ar que eu, tem carro cuja pintura detém um
tipo especial de cristalização, capaz de fazer com que a fuligem da cana
queimada não acumule e torne-se visível, e, ainda, more em um tipo de
residência que não tenha telhado, quintal, janela. Ah, sim, moraria em
apartamento. Mas apartamento tem sacada, janela e, pelo que eu saiba, não
existe acesso exclusivo do Fórum a nenhum tipo de edifício residencial da
cidade.
Tenho poucas críticas ao Ministério Público em Assis. Aliás,
caso faça um resgate nos meus registros de cobertura jornalística na região
deve dar 10 boas notícias para cada único fato negativo. Mas, no aspecto
ambiental, confesso ter certa reticência quando olho para o Médio Vale e vejo a
atuação dessa parte do Juduciário.
Cito como um dos exemplos a conturbada fase de retomada e
conclusão de construção do complexo hidrelétrico de Canoas, no rio Paranapanema.
Os Ministérios Públicos Estadual e Federal, juntos, exigiram o cumprimento de
todos os acordos ambientais assumidos antes da construção, tanto do lado
paulista quanto do paranaense, diretamente impactados pela obra. Em dada
circunstância, estudos mostravam que algumas espécies de peixes seriam prejudicadas
pelo fato de, na corrida pela reprodução, durante a piracema, encontrarem nas
usinas um obstáculo artificial. Lá estavam o Ministério Público de olho, as
usinas na mira.
Estabeleceu-se a implantação de escadas para a transposição
de peixes, que, em suma, utilizariam aquele atalho para continuar subindo ou
descendo o rio durante a dança do acasalamento. Tive a oportunidade de ver uma
dessas escadas, alguns anos atrás. Ou melhor, tentar avistar. Soube que a
estratégia artificial não deu certo e que dois fenômenos ocorreram
concomitantes. Primeiro, os peixes deram um jeito de continuar a dança do
acasalamento sem escada e, assim, as espécies ameaçadas não desapareceram do
mapa hidrográfico. O outro fenômeno é que a vegetação gostou, e muito, de
alimentar-se da mistura de ferrugem e lodo das escadas, inúteis.
A escada de transposição de peixes dar certo ou não é
subjetivo. O importante é que houve intervenção do Ministério Público, um grupo
econômico poderoso foi afrontado por esse braço da Justiça que representa os
olhos da sociedade como um todo, e tão importante quanto gerar energia elétrica
ficou estabelecida uma relação de respeito com a natureza.
Mas, enquanto Ministério Público, governos estaduais,
prefeituras e sociedade discutiam as tais obras de compensação ambiental das
usinas de Canoas, canaviais eram queimados. E continuam sendo queimados. A
diferença é que os peixes encontraram maneiras de adaptarem-se na reprodução,
mas crianças, adultos e principalmente idosos continuam enfrentando os mesmos
problemas decorrentes de doenças respiratórias. É a cinza que adentra pulmões.
A situação, senhores promotores de Justiça, é seríssima. Não
sei dizer pelas narinas dos senhores, mas as nossas, ardem. Os olhos,
igualmente, ardem. Sei de casos de pessoas cuja pele de braços e rosto coçam e
escamam. E tudo isso ocorre de abril a dezembro. Lavar o carro, o quintal e
varrer a casa são ações que com ou sem essa nuvem tóxica precisam ser feitas.
Podia, sim, haver essa sujeira seca, negra, dede que os problemas respiratórios
não viessem de brinde.
Imagino que o custo dessa chuva seca negra não seja pequeno
para os cofres públicos que o próprio Ministério Público zela quando de acesso
a pareceres dos Tribunais de Contas. Criticamos tanto a cultura nacional de
remediar e não prevenir, mas nada fazemos quando o simples fazer-cumprir da lei
é ignorado. Ações coletivas deveriam ser movidas contra as usinas produtoras de
açúcar e álcool, responsabilizando-as por esse tipo de farra.
E se estamos falando de lei, vamos a ela. Quando de minha
época de redação vigorava um Código Florestal brasileiro “muito novo”. Sim,
estou sendo irônico, pois datava de 1965. A Lei 4.771 foi promulgada em um
contexto em que a monocultura da cana ainda não reinava hegemônica. Hoje,
contudo, temos o vigor da Lei 12.651/12, e o denominado Novo Código Florestal estabelecendo
como crime a prática das queimadas no campo, sem restrições.
Pela legislação em vigor, portanto, quando você, raro e
exceto leitor, vir um ponto de queimada, à noite, entenda que ali houve um
incidente ou acidente, e que aquela imensidão de chamas não estava programada.
As cinzas que caem sobre o seu quintal e adentram suas narinas com
consequências como as que afetam um paulistano em pleno trânsito na Marginal
Tietê terão sido rastreadas e os responsáveis, punidos, assim como está na lei.
E o mais interessante nisso tudo é que na transição entre as
versões velha e nova do Código Florestal prevalece uma coincidência. Incrível,
mas é fato. É mais fácil encontrar cabeça de bacalhau no lixo de peixaria, ver
Roberto Carlos de bermuda e encontrar um chester vivo, do que deparar com
queimada de canavial durante o dia, antes das 17h00. A noite cai, o marginal
reina e o pulso, ainda pulsa.
*Professor universitário, historiador e jornalista, é mestre
em Ciências da Comunicação pela ECA/USP e responsável pelo Blog do Messias (www.claudiomessias.blogspot.com.br).
SEQUÊNCIA INFERNAL - Fotos feitas em uma noite de setembro de 2010, às margens da SP-270, proximidades de Rancharia/SP. Em menos de 10 minutos o fogo dominou e destruiu tudo, menos a cana-de-açúcar.
Foto: Blog do Messias
O fogo começa como um foco pequeno, no horizonte
Foto: Blog do Messias
Viatura da Cart chega e fica à margem da rodovia
Foto: Blog do Messias
O fogo consome todo o canavial, a pouco metros de uma mata densa
Foto: Blog do Messias
Toda essa fumaça sobe a centenas de metros para, depois,
fazer cair cinzas sobre nossas casas e intoxicar nossos pulmões
Foto: Blog do Messias
Estaciono meu carro no acostamento para registrar as
imagens, mas o calor é insuportável, mesmo a 50 metros de distância
Foto: Blog do Messias
Saindo, de carro, percebo o fim da queimada.
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