20 MAIO 2013
Cláudio Messias*
A alvorada dessa terça-feira, 21 de maio, será a primeira
sem o contemplar de Vágner Staut. Um homem que acordava cedo e assim, primeiro,
situava-se sobre tudo o que ocorria. Primeiro ao seu redor. Depois, à média
distância. E, enfim, no global. Nas primeiras horas dessa terça-feira somente o corpo de Vagner despedir-se-á, rumo a Santo André.
Vágner nos deixou hoje, segunda-feira, 20 de maio, às 12h45.
Os amigos sabem, contudo, que ele vinha prenunciando sua partida desde janeiro.
Mais precisamente, desde a segunda-feira passada, dia 13, quando seu estado de
saúde agravou. Parecia mais uma pegadinha de suas tantas travessuras de
linguagem. Partiu à sua característica, sem que a maioria notasse. Sempre fez
isso nos churrascos da nossa turma da hidroginástica no clube. De repente, cadê
o Vágner? Foi embora de mansinho.
Conheci Vágner nos tempos em que ele era proprietário da
loja Pé de Meia. Chegamos a viajar juntos a Londrina, em meus tempos de editor
da Gazeta do Vale. Naquela cidade paranaense fui apresentado e entrevistei, na
década de 1990, os empreendedores que ressuscitaram o prédio da antiga
Riachuelo, em Assis, e transformaram em shopping. Londrina, por sinal, o quintal
da casa daquele meu amigo.
Retomei o contato com Vágner há três anos. Foi dele o
convite para eu começar a fazer, no clube, hidromusculação, nome másculo que deu à
hidroginástica. Dizia, com o humor que lhe era peculiar, que hidroginástica
remetia a algo feminino. Difícil, teorizava, explicar à família e aos amigos
mais tradicionais que todos os inícios de noite iria ao clube fazer
hidroginástica. Ou hidrogay, como homofobizava em tom de brincadeira.
Na piscina aquecida Vágner era um dos primeiros a chegar.
Dava 18h45 e lá estava ele, com sunga e touca, dentro da água. Fiquei três anos
ouvindo, dele, que fazia ‘hidro’ havia 14 anos. Seriam hoje, pois, 17 anos. Mas
por alguma razão ele parou nos 14. Certo, porém, é que ele ganhava tempo para,
antes da ginástica, fazer aquilo que se costuma cumprir logo cedo, nos cafés da
vida: prosear e ficar a par de tudo.
Fazendo os exercícios na piscina conversávamos de tudo. Eu
tinha de ficar do lado direito dele, pois o ouvido esquerdo, reconhecia, já não
captava os sons com a maestria de outros tempos. Naquele trânsito dentro d´água
ele dava dicas de culinária, principalmente no preparo de peixes e outros
pratos finos. E permanentemente recomendava uma passagem por um restaurante
japonês na entrada de Londrina, anexo a um shopping popular de confecções.
Londrina, aliás, era o destino dele às sextas-feiras. Vágner
fazia hidro e saía, com sua jaqueta felpuda, direto para a sauna, às segundas e
quartas. Às sextas, fazia a barba no vestiário da piscina aquecida mesmo, pois
tinha compromisso: pegar a esposa e ir para a cidade paranaense, ao encontro da
filha e das netas. Como ele amava as netas!
Bom apreciador da culinária e turista fanático, orgulhava-se
de dizer que conhecia praias de praticamente todos os estados brasileiros.
Tinha apreço especial por Salvador, pelo Nordeste. E confessou, certa vez, ter
colocado os negócios à venda, em Assis, decidido a abrir uma porta de comércio
ou em Fortaleza, em Recife, Natal ou Aracaju, suas capitais preferidas.
Quando estive em Portugal e na França, ano passado, recebi
orientações antecipadas de Vágner. Queria, ele, que eu alugasse um carro e
dirigisse pelo interior da França, para saber, sim, o que é rodovia de
qualidade, sem viadutos e, principalmente, buracos. A melhor viagem de sua
vida, recorda-se, foi feita a Paris, com passeio pelo interior e extensão a
outros países da Europa.
O bom humor era a marca daquele meu amigo. Típico de um
senhor de 62 anos, ele contava a mesma piada ao menos uma vez a cada dois
meses. E sabia que repetia o repertório. Tanto que perguntava e ao mesmo tempo
esculachava: “já contei a piada do japonês? Se contei, você vai ter que ouvir
de novo”. E lá ia ele recontar a anedota, dentro da piscina. E o filho-da-mãe
contava piada sem rir, o que somado ao fato de sabermos que era a décima,
vigésima vez que ele contava a mesma piada, tornava o resultado inevitavelmente
risível.
Quando comecei a fazer hidroginástica com aquele grupo do
clube comentei com Vágner sobre uma piada relacionada ao “juiz e a mulinha’.
Como era uma piada longa e demandava concentração nos detalhes, ele disse que
preferia que eu contasse em um dos churrascos ou jantares que realizávamos uma
vez ao mês, para comemorar os aniversários do grupo todos juntos. Mas, como
nessas festas rolavam conversas diversas e quase nunca os grupos e rodas se
repetiam, não surgia a oportunidade de eu contar a tal piada.
Em janeiro deste ano o nosso primeiro jantar foi feito na
boatinha do clube. Foram reunidas as famílias, pois os churrascos semanais, no
quiosque do mesmo clube, eram reservados somente aos maridos. Vágner havia
passado por uma cirurgia na próstata, estava alguns quilos mais magro e
apareceu, estiloso, com óculos de jovem. Ainda em recuperação, estava abatido,
mas com um semblante saudável. Tirou um tempo, deixou a esposa à mesa e
dirigiu-se ao balcão, onde eu reabastecia meu copo com chope. E cobrou que eu
contasse a piada da mulinha.
Não havia ambiente para eu contar a piada, que tem teor
impróprio e só deve ser contada, defendo, em meio a roda de amigos, e não em
ambiente que envolva famílias. Vágner, então, desafiou que eu cumprisse a
promessa de fazer “arrumadinho de carne-de-sol” que aprendi a preparar em Campina
Grande, na Paraíba, e, cá em casa, contasse a igualmente prometida piada,
reunindo nossas famílias. Topei e agendamos o jantar para o mês seguinte.
Passado aquele jantar no clube, Vágner reapareceu, na hidro,
algumas vezes. Na última delas, esqueceu-se de levar a touca de natação que eu
havia encomendado, uma vez que em sua loja, a Maria G, ele revendia esse tipo
de artigo. Não titubeou e, no vestiário, abriu a mochila e deu-me a sua própria
touca, de cor preta. E disse: “vai usando essa até que eu traga a nova”.
Vágner não chegou a levar touca nova. Sentindo a ausência de
meu amigo de hidro, em março fui à loja Maria G com meus dois filhos, Vítor e
Júlio. Os levei para comprar cuecas e, na ocasião, ter notícias sobre a saúde
de meu amigo. Soube, pelas funcionárias, que ele havia tido algumas quedas
dentro da loja, o que em consulta médica foi diagnosticado como tumor no
cérebro. E não era qualquer tumor. Precisava ser retirado, sabendo a família,
com antecedência, que haveria sequelas.
Conversei com meu amigo ao telefone e senti sua fala
desconexa. A gravidade, eu sabia, correspondia ao semblante das funcionárias da
loja, entristecidas com o prenúncio de partida do chefe. Fiz a opção por não
visita-lo, sabendo que já estava em cadeira-de-rodas. Queria guardar a imagem
de meu amigo saudável. Àquela altura, o médico que faria a cirurgia em sua
cabeça pedia exames e mais exames, mas, na realidade, prolongava a vida de meu
amigo, dando-lhe a oportunidade de mais alguns dias junto à família.
Na manhã do dia 13 de maio Vágner entrou com vida na sala de cirurgia,
em Londrina, para sair dela, hoje, uma semana depois, em forma de um corpo sem alma. Uma alma que, naquele
momento, já brilhava na forma de uma estrela. Uma estrela, não. A estrela. Uma
enorme estrela, como eu escrevi na minha despedida anunciada no Facebook.
Perdemos um grande homem, um grande amigo, um excelente avô, e ganhamos uma
estrela brilhante no céu.
A piada da mulinha eu conto a ele no reencontro.
Privilegiados são os anjos que, desde ontem, terão de esconder o riso quando
Vágner contar repetidas vezes as piadas sobre Deus, o diabo e os reles mortais.
Atualização - 20 Maio, 16h32: Recebi a confirmação da morte de Vagner Staut
às 16h30 de hoje. Na semana passada, quando escrevi o texto acima, a mesma
notícia chegara a toda a cidade de Assis, nos mais variados pontos. Era,
contudo, mais uma comprovação sobre o quão forte era Vagner. Lutou pela vida
heroicamente, após uma cirurgia em cujos detalhes não entro e deixo a cargo de
familiares e amigos mais próximos. O que sei, sim, é que Vagner segurou firme,
o quanto deu, em algum ponto fixo aqui da terra, rendendo-se ao eterno mundo
celeste, ao lado de Deus, convencido de que sua missão já estivera cumprida.
O danado de meu amigo me fez chorar duas vezes. Senti demais
a perda na primeira notícia, que cá chegou na noite da segunda-feira da semana
passada. Tive um baque, não consegui dormir à noite e na terça, quando veio a
confirmação do equívoco na divulgação que partiu de Londrina, onde ele estava
internado, iniciei minha preces a Nossa Senhora de Fátima, de Quem sou devoto,
pedindo pelo retorno do meu amigo querido. Agora, claro, as lágrimas são
inevitáveis novamente. O que nos conforta é saber que Vágner só foi convencido
sobre ir definitivamente embora depois de muita negociação lá na porta do céu.
Assim, não sobra dúvidas: ele está bem, ao lado do Pai. Seu legado cá fica,
para que eternizemos em forma de ótimas lembranças.
Sarrista que era, Vagner aqui permaneceu para vibrar com a eliminação do Corinthians, na quarta passada, pelo Boca Juniors, na Libertadores. E já tem, a essa altura, uma justificativa para desmerecer o título paulista do arquirrival contra o Santos, ontem. É, meu amigo, será difícil suportar a falta de um interlocutor para os mais variados assuntos dessa vida passageira, de passarinhos.
Sarrista que era, Vagner aqui permaneceu para vibrar com a eliminação do Corinthians, na quarta passada, pelo Boca Juniors, na Libertadores. E já tem, a essa altura, uma justificativa para desmerecer o título paulista do arquirrival contra o Santos, ontem. É, meu amigo, será difícil suportar a falta de um interlocutor para os mais variados assuntos dessa vida passageira, de passarinhos.
Foto: Arquivo familiar/Facebook
Vágner e a esposa, Patrícia : tristeza pela perda de um amigo querido, especial
*Professor universitário, historiador e jornalista, é mestre
em Ciências da Comunicação pela ECA/USP.
Um comentário :
Obrigada, Cláudio, pela linda homenagem ao meu irmão Vagner Staut. Ele era tudo isso mesmo, alegre e com um senso de humor incrível. Até na hora de ir para a sala de cirurgia ele contou uma piada para o anestesista.
Acreditávamos que tudo iria correr bem. Ele estava tranquilo e passava essa sensação para nós, mas Deus tinha outros planos para ele e com certeza ele deve estar começando a contar todo seu repertório de piadas lá no lugar que Deus reservou para ele.
Era meu único irmão. A dor está grande mas é diante destas homenagens que vamos nos confortando. Obrigada.
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