sexta-feira, 20 de agosto de 2021

NOSTALGIA - Minha curiosidade com o que havia dentro da máquina de escrever

 

Cláudio Messias*

Hoje decidi retomar minha escrita aqui nesse espaço do blog. Sei, claro, que nos tempos atuais de consumo instantâneo de informações os textos longos, minha característica desde os tempos de redações, andam um tanto preteridos.

Não tenho estatística que fundamente isso, mas, parece-me, a maioria prefere os textos curtos. Não por acaso as redes sociais tornaram-se disseminadoras de informações incompletas (não me refiro a notícias falsas). Sabe-se de algo e antes de aprofundar na busca pela informação completa, compartilha-se aquilo que se sabe, nem que seja conhecimento parcial.

Não me abalo. Afinal, nesses 36 anos atuando na ou estudando a comunicação jamais busquei o consenso, a unanimidade ou a aprovação da maioria. Aqui, no blog, sempre me refiro aos raros e excetos leitores.

Mas, não voltei a escrever para patinar nesse assunto. A comunicação, assim como a língua, é viva, mutante e em suas metamorfoses exige adequações, adaptações e renúncias, às vezes. Meus textos longos, são, pois, renúncia.

O prazer pela escrita, de minha parte, remete à infância. Na máxima de que pisando no terreno das Humanidades nunca fui lá sequer mediano nas Exatas meio que faz e fez sentido em minha vida, apesar de ser adepto e por conseguinte simpático às estatísticas, às probabilidades e, por que não, aos algoritmos.

Na pesquisa científica meus passos perpassam, não por acaso, pelas abordagens quali-quantitativas. Tornei-me um fascinado, no doutoramento, pela meta-análise e no estudo das variáveis. Escrever, pois, uma tese no terreno das ciências sociais aplicadas tendo por base números que sinalizam probabilisticamente para certa razão no comportamento humano de consumo é, nesse prisma, um fascínio.

Na infância um mecanismo de escrita despertava minha curiosidade: a máquina de escrever. Observava aquelas Olivetti, via as pessoas apertando com certa força as teclas, as fitas de tecido carregadas com tintas nas cores preto e vermelho e as folhas sendo giradas a cada linha preenchida.

Minha curiosidade não estava relacionada ao que era escrito, mas, sim, à forma como aquela geringonça fazia com que o que estava na intenção comunicativa do/a digitador/a saísse na folha de papel.

No meu imaginário era mais ou menos como observar um automóvel. Você o vê em movimento, acostuma-se com isso e o que está em síntese é a estética do sensível, fenômeno fundamentado pelo francês Jacques Rancière e que nos mostra que no cotidiano de repetições das ações humanas ficam submetidos a uma camada invisível da percepção eventos que fundamentam aquilo que por vezes nos comove.

Um/a datilógrafo/a repetia incontáveis vezes, no seu cotidiano, a digitação em folhas de papel que sua comoção sobre o objeto denominado máquina de escrever só era despertada em situações como pequenos defeitos que impediam o funcionamento. Uma tecla travada, a fita bicolor que saía do carrinho de alinhamento ou pura e simplesmente um defeito no mecanismo central.

As antigas máquinas de escrever careciam de manutenção periódica. Substituição da fita bicolor era feita conforme a demanda. A fita ia sendo usada e simplesmente esgotava, chegava ao fim. Em momento assim tinha-se que retirar uma tampa superior e fazer o rebobinamento da fita. Uma fita era passível de ser usada duas vezes. No máximo, três vezes, pois a impressão do que era digitado ia ficando “apagada”, desgastada.

Trabalhar com máquina de escrever significava, ao longo do tempo, duas coisas básicas, na característica estética comum de um/a datilógrafo/a: desenvolver a lesão por esforço repetitivo (LER) e as pontas dos dedos, principalmente os indicadores direito e esquerdo, mesclando as cores preto e vermelho.

Havia quem usasse flanelinhas ou mesmo pedaços de papel na tentativa de fugir do borrão de tinta nos dedos, mas, sem chances, as mãos não ficavam limpas. Para piorar, os rolinhos de fita de tinta bicolor continham um tecido com composição química à base de álcool, ou seja, você sujava os dedos e a tinta secava rapidamente, penetrando nos poros e nas impressões digitais.

Terminou o drama de escrever à máquina e sujar as mãos? Não. Além da fita de tinta bicolor ainda haviam as folhas de papel carbono. Se a folha digitada exigia uma cópia, usava-se uma folha de carbono. Se três cópias, duas folhas de carbono. Mais que isso e uma quarta cópia sairia praticamente ilegível.

Quem desenvolveu lesão por esforço repetitivo usando máquinas de escrever certamente piorou esse quadro se praticou a escrita com folhas em até 3 cópias. Isso porque a força da batida em cada tecla tinha de ser maior em comparação a escrever cópia simples.

Sim, isso que escrevo agora pode representar uma maluquice para quem hoje tem a idade dos meus filhos (25 e 23 anos) ou mesmo meus/inhas alunos/as. Difícil conceber que esses teclados macios, feitos à base de plástico e, em alguns casos, com luzes coloridas de fundo, um dia foram antecedidos por aquelas geringonças. Teclado macio às mãos, tela cuja luminosidade pode ser controlada ante aos olhos, a possibilidade de apagar erros de digitação e, quer coisa!, dar um “control+p” de comando e a impressão de quantas vias for necessário ocorrer sem borrões nos dedos.

Você, raro/a e exceto/a leitor/a, pode estar perguntando onde estava meu fascínio ao observar, na infância, uma máquina de escrever em funcionamento, usando, como usei, o exemplo de ver um automóvel em movimento. Minha curiosidade, pois, era centrada no que estava dentro da máquina, que fazia uma tecla de cada vez atingir o papel.

Certo dia, lá pelos idos de 1981 (eu tinha 11 anos de idade), meu irmão mais velho, Claudinei, que trabalhava no escritório de contabilidade Alevato, em Assis, SP, apareceu em casa um com máquina de escrever Olivetti, portátil. Era verde e, pra mim, uma coisa linda de ver.

Nossa família sempre foi pobre, com condições financeiras bem complicadas. Pai ferroviário, mãe lavadeira, nós não passamos fome, ao menos que eu me recorde, mas, éramos de uma realidade em que as roupas que eu usava, assim como os calçados, eram aquelas e aqueles que meu irmão mais velho havia usado. Roupa nova, só uma peça de cada, no final do ano, comprada nas Casas Pernambucanas e para ser paga no crediário durante o ano. E a roupa nova comprada em dezembro era para ser usada no Natal e no Ano Novo. Depois disso, era usada para “sair”, ou seja, para visitar alguém, ir a um casamento ou festa, enfim, em situações especiais. Usar para ir à escola, jamais, até porque os uniformes eram obrigatórios.

Em uma situação domiciliar como essa não cabia dinheiro para comprar folha de papel. E eu usava, para digitar naquela máquina de escrever, papel de pão, outro artigo que as gerações atuais desconhecem. Sim, os pães eram vendidos em formato bengala, hoje chamados de baguete, e embalados e folha de papel jornal. Alguns eram embalados em folha de papel seda de jornal.

Esse papel jornal era reciclado. Não raro, algumas folhas traziam letrinhas, que nada mais eram do que resultado da reciclagem de papeis usados, entre eles o jornal de notícias. Eu, cuidadoso, antes que o papel fosse manchado por manteiga ou margarina, recolhia aquelas folhas e guardava, pois nela desenhava, enfim, reaproveitava o que já era reaproveitado.

Até hoje sou resistente ao desperdício de papel. Não só pelo fato, hoje sei, de isso ser pensamento sustentável, mas, principalmente, por ter convivido com uma situação socioeconômica em que sequer folha de papel tínhamos em casa. Nossos cadernos eram aproveitados ao máximo, sendo encerrados sem folhas em branco de sobra. Igualmente, nossas canetas esgotavam a tinta e os lápis só eram descartados à base de “toquinhos” que não cabiam mais nas pequeninas mãos de crianças.

A máquina de escrever portátil levada por meu irmão servia para eu registrar meus escritos. Primeiro eu o observava usando e depois, repetia as ações. Lembro que levava mais de um dia para completar uma folha inteira datilografada, sempre cuidadoso para não errar na digitação e não comprometer esteticamente a página.

Avançando na técnica de digitar, escrevi minha primeira história. Um conto sobre o que mais me perturbou na infância, ou seja, vampiros. Não consigo resgatar os motivos de temer tanto os vampiros, mas, sei, foi esse personagem que ilustrou minha primeira historinha digitada.

Não recordo mais do enredo. E nem sei onde foi parar aquela historinha digitada. Guardei parte do meu acerco pessoal até os 21 anos de idade, quando fui morar com minha mãe, então separada de meu pai havia três anos. Três anos depois me casei e, assim, os pertences todos da vida de solteiro foram parar em local que desconheço, podendo, inclusive, ter sido o lixo.

Daquele tempo, nos anos 1980, até hoje fomos sobremaneira influenciados pela tecnologia nos nossos modos de consumo e produção cotidianos. Das máquinas de escrever avançamos para os computadores desktop e notebook. Igualmente, não dei conta de apenas ver o funcionamento estético dessas máquinas.

Cansei, nos anos 1990, de pagar 40 reais para que técnicos de informática viessem à nossa casa para formatar HD ou colocar computadores em rede. Claro, assim como as máquinas de escrever, passei a abrir os computadores. Primeiro, troquei HD, depois, pentes de memória, depois, processador, até que chegou o dia em que troquei uma placa-mãe.

Com o Windows 98, formatar um computador ou simplesmente reinstalar o sistema operacional requeria colocar a máquina em rede. Tive que aprender sobre máscara de rede, gateway e outros elementos que envolvem trabalhar em rede. Ou seja, muito mais que abrir um computador, era necessário entender todo o conjunto de funcionamento.

As versões Windows XP e Vista, assim como as sucessoras, eliminaram esse trabalho todo, fazendo a programação de rede do computador de forma automática, mas, ainda assim, vivíamos em situações em que para não pagar os tais 40 reais em uma visita praticamente semanal dos técnicos, tínhamos de continuar buscando entender o funcionamento.

Hoje, aos 51 anos de idade, recordo disso tudo com esse estilo nostálgico de escrita. Não, não prefiro aquele tempo, jamais, em que o papel era colocado na máquina e a digitação exigia sujar os dedos com tintas. Muito menos tenho saudade da época da impressora matricial, antecessora das janto-de-tinta e laser atuais.

Cada tecnologia teve seu tempo e, sim, precisamos observar o uso desses recursos como nos mostra Jacques Rancière e a estética do sensível. Muitos podem, sim, nascer, viver e morrer sem ter precisado um dia sequer saber como as coisas funcionam, principalmente quando sabem que seja qual for o problema, haverá alguém para repará-lo. Não condeno isso, absolutamente.

Porém, quando não entendemos como as coisas funcionam, ou seja, ficamos observando a caixa de fora da máquina de escrever ou vendo apenas o automóvel em movimento, temos chance maior de desenvolver a ignorância, no sentido de ausência de conhecimento. Ninguém precisa saber como um computador funciona, nem tem por regra aprender a consertar um. Isso está na cultura cotidiana de cada um/a, configurada pelas necessidades, ora por vezes, essas, movidas pela curiosidade.

É com esse olhar que vejo, indignado, a discussão aparentemente encerrada nessa semana, vinda de Brasília, acerca da volta do voto impresso. Que o sistema de voto eletrônico não seja totalmente confiável, disso não tenho dúvida, pois há tecnologia, indústria hegemônica e Estado envolvidos no desenvolvimento dessa tecnologia. Nada que envolva o que denomino, em minha tese de doutorado, hegemonia plena, ou seja, que envolva mercado, Estado e Igreja, é totalmente confiável. Aliás, o totalmente confiável é utópico.

Mas, o que vemos nesse debate é uma parte que renuncia-se a conhecer a tecnologia por trás da caixa da máquina de votação eletrônica e, pior, não viu problemas quando esse mesmo sistema de votação, que nos permite conhecer eleitos/as em questão de horas e até mesmo no própria dia do pleito eleitoral, os elegeu por mais de uma vez no passado dessas últimas duas décadas.

Em momento algum a parte que critica o sistema de votação em urna eletrônica fez uso do exercício de gestão que o regime democrático lhe assegurou, nas mesmas urnas, e publicamente foi visitar a indústria que produz os equipamentos, os tais hardwares, e desenvolve os softwares. A ignorância, no sentido de ausência de conhecimento, se faz mais árdua nesse sentido, pois o pior ignorante não é aquele que diz desconhecer algo, mas, sim, aquele que renuncia conhecer sobre algo.

A Câmara dos Deputados, dentro dos pressupostos do Estado Democrático de Direito, barrou qualitativamente a iniciativa de retomar o voto impresso. Não, não quer dizer que estejamos sob o mais seguro dos sistemas de votação, pois o uso de urnas eletrônicas é uma coisa e o processamento dos dados das votações, fazendo chegar tal fluxo até o Tribunal Superior Eleitoral, é outra coisa. Sabemos que as urnas eletrônicas não trabalham em rede, mas ingênuos seremos se entendermos que via cartórios eleitorais os dados coletados por seções e zonas eleitorais não cheguem a Brasília via rede. Auditorias sérias nos mostram, periodicamente, muitas vezes sob convocação em forma de desafio, público, por parte da Justiça Eleitoral, que esse sistema de votação e coleta de dados até hoje não foi fraudado. E confiamos.

Compreendo o discurso de quem defende o voto impresso, situando os sujeitos dessa voz na citada ignorância advinda de desconhecimento, seja por ausência de conhecimento, seja por renúncia ao mesmo. Inevitável, porém, imaginar tais defensores, em comportamento análogo, com as pontas dos dedos sujas de tinta.

* Jornalista e historiador, tem mestrado e doutorado em Ciências da Comunicação pela ECA/USP.

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