A morte do amigo que jamais conheci
*Cláudio Messias
Passar pela terra, em vida,
significa, na prática, transitar por representações daquilo que entendemos como
realidade. Realidade. Essa subjetiva marca de identidade pessoal, mais
significativa do que aquilo que formalmente atribuímos a impressão digital,
pois o que uma cabeça pensa uma mão jamais toca. Ninguém, a não ser eu, vive o
que eu vivo, enxerga o que eu enxergo e conclui o que eu concluo.
Tenho uma concepção muito particular
sobre o tempo. A imaterialidade da passagem de cada um de nós é a mais concisa
definição de tempo. Via de regra ficamos cá, em vida, por mais de cinquenta
janeiros. Alguns raros dobram essa média, centenários que são. Não tive, não tenho
e quero não querer desejar o centesimal. Prefiro a brevidade, desde que intensa
como ora o é.
Em 2014, numa pesquisa conjunta
com o professor Joseph Straubhaar, da Universidade do Texas, em Austin, EUA,
desafiei, mediante método científico, mensurar o consumo midiático abordando
pessoas, do meu convívio, que se encaixam em quatro gerações. Jovens com até 19
anos, adultos com até 44 anos – minha idade, à época -, outra faixa de adultos
com até 64 anos e idosos a partir dos 65 anos. As conclusões empíricas de tal
levantamento ficaram no plano teórico de meu doutoramento. Mas, a valia
epistêmica do experimento foi para a minha tese e incorporou no meu modo
particular de entender o tempo da vida.
A conversa vai ficar muito chata
se eu começar a falar de teoria e de estudos culturais. Vou ficar no senso
comum, falando a partir do e para o saber popular. Mas, não deixarei de citar a
cultura, esse combustível que move a vida e é responsável, não tenho dúvidas,
pela existência soberana da raça humana. Se um dia, pois, nos destacamos
enquanto espécie e através do tempo buscamos a sobrevivência, o fizemos porque
nos organizamos socialmente a partir de uma base essencial, que é a cultura.
Toda e qualquer projeção de desenvolvimento e progresso para o futuro incerto do
tempo, nosso, advém da cultura.
Interessante notar que a vida,
aqui entendida como tempo individual de cada sujeito, seja fracionada em
quartos. No primeiro deles, aprendemos a ser o que querem que sejamos. No
segundo, começamos a querer ser algo que não necessariamente queriam que
fôssemos. No terceiro, somos. E no quarto, concluímos se conseguimos ser o que
queríamos ou se fomos aquilo que quiseram. Esse ciclo todo pode, resumidamente,
ser definido na tríade ser cuidado, cuidar e ser cuidado. Nascemos sob
proteção, crescemos protegendo e terminamos ao menos querendo ser protegidos.
A velocidade do tempo é
determinada pela forma como concebemos cada uma dessas fases que vão desde o
primeiro abrir de olhos até o fechar definitivo. E há contradições nisso. Uma
criança, ainda em formação da razão, ignora, na sua ingenuidade, as amarguras e
os percalços e, em tese, vive os momentos que, mais felizes, serão parte
solidificada da lembrança. Não raro, um adulto suspira, em emoção, ao recordar
das boas fases da infância. E quando essa mesma razão, maturada na fase adulta,
desintegra-se com a fragilização do corpo, não é exatamente a felicidade que
predomina.
Nascemos e morremos sem o domínio
pleno da razão. Infância feliz, velhice melancólica. Ser adulto, pois, é fazer
a gestão própria do tempo, sabendo administrar as alegrias vindas de um passado
não muito distante e a vindoura melancolia de se preparar para a mais certa das
etapas de cada um. O tempo, assim, nos lança para uma trajetória, geralmente
plena na maturidade que vai dos 20 aos 60 anos de idade.
Olhar coletivamente a humanidade,
como fazemos nas amostras de pesquisas no território das ciências humanas, é
ignorar as arestas. A rotina nos mostra a despedida de amigos ou conhecidos que
sequer conheceram a fase adulta, plena, ou tiveram a oportunidade de
experimentar a melancolia de aguardar o fim natural. O tempo desses personagens
esgotou arbitrariamente sobre a cultura, sobre a razão. Cada um dos raros e
excetos leitores dessas linhas, agora, lamenta ou lamentou a despedida de
alguém nessas circunstâncias, poucos dias ou horas atrás.
Essa impotência ante ao tempo,
incerto, de cada um remete a desafios cada vez mais profundos das ciências, em
especial a medicina. Cobranças sociais ao extremo injustas pedem o
prolongamento da vida, como se possível fosse dar uma prorrogação ao tempo. Há,
nesse aspecto, inúmeras formas de morte, mas via de regra duas delas esgotam o
tempo dessas pessoas das quais nos despedimos dentro do que concebemos como
precocidade da vida. Uma são as tragédias, outra são as doenças graves.
No rol de casos cotidianos a
incoerência prevalece. Ora sabemos de um comilão e beberrão que explodiu em
enfarto fulminante, ora deparamos com magrelos, bem dispostos e avessos a
bebidas que somente tiveram o fim, diferente, pelo tamanho do caixão. Amigos
alegres, rodeados por familiares, com patrimônio garantido para os dependentes,
foram acometidos por determinada enfermidade e em questão de semanas
tornaram-se apenas lembrança.
Sou cético em relação a destino
e, agnóstico, tenho alicerce na crença de uma força criadora que coletivamente
a minha raça define como Deus. Talvez eu seja parte da lembrança de meus
familiares e meus amigos quando as pesquisas do genoma humano mostrarem, já no
nascimento, o sequenciamento do tempo que cada sujeito tem. Sabemos, hoje, das
predisposições que, reconheço, ajudam a dar sobrevida. Eu próprio, em 2015, fui
submetido a cirurgia cardíaca para aplicação de quatro pontes de safena e
ligação de uma mamária. Não fosse o cardiologista que fez a mesma cirurgia, mas
em meu pai, em 2010, e eu enfartaria silenciosamente, uma vez que portador sou
se doença cardíaca congênita. A mesma enfermidade que nos iguais 46 anos meus,
atuais, tirou, em um sítio na zona rural de Assis, a vida de meu avô, pai de
meu pai.
A medicina nos mostra os sinais
quanto a longevidade ou não do tempo de cada um, mas não indica nosso prazo de
validade. Insuficiente para uma sociedade cada vez mais doente. Minha preocupação,
nesse ínterim, hoje, passada a fase de reabilitação pós-cirurgia cardíaca, é se
meus dois filhos podem herdar a doença, que é congênita. Exames recentes
mostram que “ainda” não. Ainda. E esse ainda é advérbio de tempo, de maneira
que daqui a duas décadas possamos ter boas ou más notícias relacionadas à
referida herança.
A perecibilidade de cada corpo
pode estar indicada no seu rótulo de marco zero, que é o cordão umbilical.
Expectativa, pois, que famílias vindouras possam preparar-se para o melhor, que
é a saúde plena, e o pior. E isso talvez atenue a dor que nos corrói ao ver uma
inocente vida com apenas seis janeiros completos desenvolver não só uma, mas
algumas formas de câncer. A mesma sociedade que se comove ante ao caso de um
menino assisense internado e em tratamento há um ano, em São Paulo, tem poderes
impotentes iguais aos dos médicos. Ambas as partes não sabem o que fazer ante a
um cenário em que um corpo novinho em folha, sem vícios ou sintomas das
amarguras da vida, tem as células destruídas por causas que a medicina
desconhece.
Uma semana atrás um homem de
pouco mais de 40 anos de idade teve o corpo transportado de Presidente Prudente
a Três Lagoas, em Mato Grosso do Sul. Um acidente, anos atrás, fez formar um
coágulo no cérebro. O tempo, dele, quase esgotou, mas a medicina fez intervenção.
Ali por volta de início de setembro de 2016 uma tomografia na cabeça apontou um
coágulo e um tumor em formação. E eis que o esgotamento do tempo voltou a dar
sinais.
O nome desse homem é Thales.
Pacientes, em hospitais, são todos gatos pardos. Ou seja, são pacientes. Roupas
iguais, camas iguais, quartos todos iguais, fica a impressão de que todos que
ali estão têm o mesmo nome, o mesmo documento de identidade. O que muda, na
prática, são as causas que levaram cada sujeito ao leito hospitalar. Ou seja, a
maneira como a natureza escolheu dar esgotamento individualizado a diversas
formas de tempo.
Thales era trabalhador do campo,
forte e falador. Otimista, fazia fé que todos os demais pacientes apresentassem
melhora e fossem, futuramente, a Três Lagoas. Lá, iria lhes levar para pescar
tucunaré. Ou seja, viver a vida, aqui nesse exposto definida como ato de cumprir
com a linearidade do tempo. Meu pai, com 75 anos de idade e acometido por um
aneurisma de carótida, era um dos pacientes daquele terceiro andar do Hospital
Regional de Presidente Prudente. Sua chance de primeiro resistir à anestesia
geral e, depois, suportar a cirurgia para aplicação de uma prótese, era
inferior a 5%.
Havia, lá, uma voz que
certificava a plenitude de êxito na cirurgia. Era Thales, que emocionava-se com
a fragilidade do corpo daquele homem que desde 2010 enfrenta batalhas para
manter-se com o tempo ativo. E foi assim que ele assistiu ao trâmite em que meu
pai foi para a sala de cirurgia, superou todas as estatísticas então
desfavoráveis, teve alta da UTI e retornou para o quarto, agravado por sequelas
do aneurisma que comprometem os movimentos do lado direito do corpo e, por
consequência, o impedem de falar e ter autonomia para alimentar-se.
Com meu pai no quarto, Thales foi
para a cirurgia dias depois. Nos encontrávamos, até então, em circunstâncias
típicas de hospital, ou seja, tempo limitado à permanência de visitas e sem
condições de, por exemplo, trocar informações básicas, como telefones pessoais
e endereços, já que o combinado era, num futuro vindouro, propiciar o
reencontro entre aqueles dois pacientes tão afinados na rotina.
Da sala de cirurgia o
sulmatogrossense foi para a UTI. Quando meu pai teve alta, dia 11 de outubro,
seu colega de internação foi para o quarto. Comemoração das duas famílias, pois
nós, apesar do estado crítico de meu pai, findávamos mais uma rotina de semanas
no hospital, enquanto os familiares de Thales contavam os dias para igual
retorno para casa.
Uma complicação, contudo, fez com
que Thales voltasse para a mesa de cirurgia. Novo procedimento, condução para a
UTI e, dia 22 de outubro, a notícia: ele havia falecido. Aquele sorriso torto,
decorrência do primeiro acidente de trânsito, cessou. O tempo de Thales
esgotou, em um tipo de fim provocado pela rotina humana, e não pela natureza
humana. E isso faz lembrar uma reflexão que Rozana, minha esposa, fez da vida
dias atrás: sabemos, apenas, que nascemos, e acabamos tais quais aquela
formiguinha em que pisamos, sem ver, no caminho cotidiano. E para esse tipo de
fim não há teoria de tempo que dê conta.
* Professor universitário, historiador e jornalista, é mestre e
doutorando em Ciências da Comunicação pela e na ECA-USP.
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