sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

LUTO - O que aprendi com a morte

 Cláudio Messias*

Seo Messias conosco, sentado debaixo da jabuticabeira que plantou nos anos 1980.


A partir de ontem, 7 de janeiro de 2021, mudei minha postura no lidar com pessoas que estiverem vivenciando a morte de alguém. Palavras que enunciadas docemente, com a melhor das intenções, como "ele/a passou dessa para o melhor", "agora ele/a descansou" ou "do jeito que ele/a estava, agora tem o merecido repouso", não confortam. E digo isso por experiência própria, passada nesse 6 para 7 de janeiro.

Não há palavra que console a perda de uma pessoa, seja qual for a circunstância. Quem encontra-se diretamente no luto aceita, abraça, chora, lamenta, mas, de maneira alguma aceita a morte ou os enunciados que tentam amenizá-la. E por mais que estejamos nos sentindo preparados para a passagem da pessoa querida, não, definitivamente, não estamos. Talvez não haja alguém que consiga administrar essa sensação dolorida de ver uma pessoa querida partir, por mais que estivesse doente ou em estado irreversível conhecido por todos. A morte provoca uma dor, uma angústia, uma vontade incontrolável de reverter aquilo que é dito como a maior de todas as certezas humanas.

Ontem, às 13h25, sepultamos meu pai, José Messias, em Martinópolis/SP. Desde 2010, quando foi submetido ao mesmo procedimento cirúrgico pelo qual eu passaria em 2015, qual seja, correção de isquemia miocárdica grave, com implantação de safenas e ligação de mamária, nosso velhinho percorreu um trajeto doloroso, cruel, provocado por uma doença manifestada pós-operação: a miastenia gravis pseudoparalítica. Perdi as contas, e isso nem tem importância alguma, sobre as viagens feitas de Assis a Martinópolis e a Presidente Prudente nesses mais de 10 anos.

A pior fase, e se é que houve fase que tenha sido mais amena, ocorreu entre 2015 e 2016, quando a desestabilização provocada pela miastenia o levou inúmeras vezes à UTI e, no ápice da crise, a uma trombose de carótidas, sendo necessário um implante de prótese. Assim como das outras vezes, as fatídicas estatísticas das ciências da saúde erraram. Apesar de o implante da prótese ter sido bem-sucedido, no procedimento faltou sangue na parte esquerda do cérebro e pior do que perder os movimentos do lado direito, seo Messias viu comprometido seu bem maior: a fala.

Momentos difíceis, e já lidando com a morte, que rodeava cada vez mais e se mostrava próxima. Eu encontrava-me no período pós-qualificação do doutorado e entre uma página e outra da escrita estava diariamente no Hospital Regional de Presidente Prudente, junto com minha madrasta/mãe Gê e minha irmã Danielle, na época estudante de Odontologia, ou seja, uma mocinha que igualmente tinha de lidar com a formação e a esperança para que o pai não partisse.

Chegou um momento em que tínhamos de brigar com a morte, mas, também, com pessoas que prenunciavam a morte de seo Messias. Aroeira, o velhinho mostrava comunicação somente com os olhos azuis maravilhosos, nos dizendo "eu vou viver". Aquela era a verdade mais absoluta que existia pra mim, apesar de os médicos fatalizarem, diariamente, que não havia mais o que fazer. Meu pai era pele e osso, não falava, tinha uma sonda que o alimentava pelas vias nasais, estava todo roxo de tantas aplicações feitas, mas não cedia. Nos olhava, apertava aos mãos como quem diz "não desistam de mim". E não desistimos.

Por duas vezes a equipe médica pediu para chamar familiares, para a despedida. Nos encontrávamos na entrada do HR, todos/as, coma sensação de que a morte, sim, estava por ali, esperando. Na derradeira das vezes, o pároco foi chamado para o ritual cristão de bênção para a despedida eterna. Só que não. Seo Messias enquadrou-se na estatística de "menos de 5% de chance de sobrevivência". Recebeu alta no dia 16 de outubro de 2016, com a mesma sonda de alimentação via nasal. Se resumia a pele e osso, mas por dentro tinha uma força de vida que o fazia apertar nossas mãos.

No caminho de Prudente a Martinópolis eu dirigia e tinha meu pai ao lado. Dani e Gê estava atrás e tinham de segurar a cabeça dele, que estava deitado no banco, porque o velhinho sequer conseguia controlar o pescoço. Eu via aquela cena e me perguntava se a morte não estaria também ali no carro, só esperando.

Fizemos do quarto de Dani um quarto de hospital. Colocamos cama hospitalar e os aparelhos necessários. Profissionais de saúde diariamente dar o amparo, pois a alimentação era feita por sonda. Uma fonoaudióloga o acompanhava, exercitando para que reaprendesse a falar, depois da paralisia parcial. Uma fisioterapeuta o orientou a reaprender a andar. E como bom aluno da vida, seo Messias enganou a morte, de novo. Nunca mais voltou a falar com a nitidez de antes, mas fazia o suficiente para ser compreendido. Deixou a sonda e passou a alimentar-se normalmente, primeiro auxiliado e, depois, autônomo. E, claro, voltou a andar para pequenas caminhadas dentro do quintal da casa.

Não nos comunicamos com a morte, mas ela, quando manifesta-se, nos ensina a evitá-la. É mais ou  menos como você caminhar à beira de um precipício: se cair, morre, e o jeito é medir melhor os passos para que a probabilidade de ir parar no fundo seja, se não anulada, ao menos reduzida.

Com a cirurgia cardíaca de meu pai, em 2010, passei a monitorar minha saúde, anualmente, com cardiologista. Até passar por dois enfartos, em 2014, em Campina Grande e Recife, e em fevereiro de 2015 ser submetido à cirurgia cardíaca. Não desesperei. Pelo contrário, administrei família e amigos, assustados com a costumeira estatística da morte das ciências da saúde. Assim como meu pai, dada a gravidade do meu caso, carrego a cicatriz no peito por ter 4 ligações safenas e uma mamária. 

Há, pois, uma estratégia para fugir da morte, mesmo quando ela está ali, ao lado, ganhando força nas palavras de pessoas acostumadas com vítimas que por conveniência estacionam na condição de vítimas, sem forças para afrontar a maior das certezas humanas de encerramento de ciclos. E a estratégia, não tem jeito, é querer viver e, sabendo que isso não depende só de suas forças, deixar isso claro a quem tem a sua tutela. Necessário, pois, que esses tutores de sua resistência sejam tão fortes quanto você.

Com meu pai eu aprendi a recorrer a uma força interior que desconhecia. Discuti com médicos, briguei com diretores de hospital e cheguei a fazer boletim de ocorrência quando quiseram dar alta para que meu pai saísse direto da UTI para casa, para "despedir-se da família em casa". Liguei 190, pedi viatura da polícia em outra situação similar. Noutras vezes, acionei amigos e mesmo nosso advogado em família em Assis, por não aceitar que transferissem meu pai do cuidado das ciências da saúde para a tutela da morte.

De tanto lidar conosco, a morte talvez também tenha aprendido algo, já que as relações de ensino e aprendizagem são permeadas pela troca, pelas experiências, de maneira que quem ensina, quando o faz, aprende e apreende com o/a interlocutor/a.

Seo Messias, percebemos, mostrou-se um tanto abatido no Natal de 2020. Em 'live' familiar, já que a pandemia nos cerceou da passagem da ceia natalina com o patriarca, seu semblante era um tanto abatido. Pensei que pudesse ser pela distância de todos/as por conta da Covid-19. No Ano Novo, a primeira recaída de saúde, com dores abdominais. Dias depois, uma ida à Santa Casa e a constatação de líquido no abdômen e a possibilidade de uma diverticulite ou questões do aparelho urinário.

Acionado, agendei atendimento com dr. Ravísio, urologista que nos atende desde 2016 em Prudente e responsável por meu pai ter saído com vida do HR. Seo Messias seria atendido no estacionamento da clínica, para não expô-lo à Covid, já que Prudente é a única região de São Paulo em fase vermelha de isolamento. Às 13h40 do dia 6 de janeiro, anteontem, meu pai desfaleceu em meus braços quanto tentávamos colocá-lo no carro e levá-lo a Prudente.

Minutos antes, quando cheguei à casa deles, deparei com nosso velhinho com um semblante que ainda não havia testemunhado nele. Os olhos azuis estavam baixos, o rosto, pálido. Pegou em minhas mãos e quando Gê perguntou "quem é ele?", não soube responder, o que era considerado normal, pois entre as sequelas da cirurgia de setembro de 2016, nas carótidas, estavam apagões momentâneos de memória, ora reconhecendo ora não reconhecendo as pessoas, mesmo as mais próximas.

Pegou em minhas mãos e, como sempre, mesmo não me reconhecendo, as alisou com as dele, em manifestação de carinho. Mal erguia os braços. Em um momento fixou os olhos em mim e assim ficou, ouvindo o que eu dizia: "tudo vai ficar bem, fique tranquilo". Dessa vez, contudo, seo Messias parecia não acreditar. Gê o chamou para sentar no sofá, erguermos suas calças de agasalho e irmos para o carro, mas ele não reagia. Em frações de segundos só passava pela minha cabeça uma estratégia para, sim, continuar driblando o fim, a que administrava havia anos.

A distância entre o sofá e o carro parecia quilométrica e eu já me dava conta de que não, não iríamos para Prudente. O correto era ir para a Santa Casa de Martinópolis. No entanto, quase com as pernas arrastadas por nós, seo Messias desmoronou. Começou a babar, não respondia nem respirava. O segurei nos braços e com auxílio de Gê o deitamos no sofá. Os olhos estavam paralisados, a dentadura ficou atravessada na boca, os braços renderam. Gê quase desmaiou e tive que intercalar socorrê-la e intervir no velhinho. Os olhos fecharam, mas, de repente, reabriram. De pálido ele retomou a pele corada, aos poucos movimentou as mãos, suficiente para acariciar minha mão e uma das cachorras de estimação.

Acionamos o Resgate, que chegou rápido. Na avaliação preliminar um dos três bombeiros chamou-me do lado e comunicou que os sinais vitais do velhinho estavam fracos demais. O imobilizaram e no transporte recomendaram que Gê fosse comigo de carro, e não na viatura. Meia quadra depois da saída a viatura parou por quase um minuto, e depois seguiu. Na chegada à Santa Casa, quando da abertura da ficha de paciente, o bombeiro chamou-me novamente, comunicou a necessidade de intervenção no meio do caminho. Seo Messias, quando adentrou de maca na emergência, encontrava-se com olhos fechados, imóvel.

Quarenta minutos depois, a jovem médica que o atendeu chamou a mim e Gê pela segunda vez. Na primeira, havia informado que a pressão arterial estava um pouco baixa mas que o preocupante eram os batimentos cardíacos, abaixo de 90. Como sou muito de comunicação visual entendi um semblante de preocupação por trás de todo um discurso que pedia tranquilidade a nós. No segundo diálogo, a confirmação de que a estratégia de driblar o fim havia cessado. Todas as tentativas foram feitas, disse a médica. Quando perguntamos o que aquilo queria dizer, a confirmação: "seo Messias não resistiu e faleceu".

Nesses momentos difíceis não sei de onde tiro forças para manter o equilíbrio, e dessa vez não fugi à minha própria regra. Gê desmoronou novamente e a própria médica emocionou-se. Dei a notícia usando o carregador de celular da médica, na sala dela. Um a um dos grupos de família de Whatsapp e meu irmão e minhas duas irmãs. Segurei firme, talvez ainda não entendendo a dimensão de que a aroeira havia cedido.

Nos permitiram fazer uma despedida imediatamente após a morte. O coração de meu pai parou de bater às 15h06. Às 15h30, depois de ir buscar Danielle no consultório odontológico onde atende, entramos os três na sala de enfermagem. O corpo estava coberto por lençol, estático. Debaixo, um rosto de quem repousava. Apenas a dentadura, de novo, ficara com uma parte para fora.

Inevitável pedirmos para ele acordar, abrir os olhos como sempre fez. Mas, não. Não tinha semblante de sofrimento, nem de tristeza. Parecia o mesmo seo Messias de sempre, quando dormia, com a boca em semblante de pessoa feliz que ele sempre foi.

Dialogando com a médica e as enfermeiras que tentaram mantê-lo vivo, a informação: morte por parada cardiorrespiratória. Ouvindo a minha narrativa desde o ocorrido na casa dele, a confirmação: o excesso de líquido no abdômen, associado inicialmente a uma diverticulite, na realidade devia-se a uma falência dos órgãos. O coração, enfraquecido, já não tinha mais condições de abastecer aos órgãos vitais, nem alimentar o sistema que oxigena o cérebro.

Todos, a partir de então, aprendemos com a morte. E a morte, não tenho dúvidas, aprendeu conosco através de seo Messias. Ela tentou levá-lo da forma como leva as demais pessoas que não a encaram. Mas meu pai a encarou por mais de 10 anos, e foi aroeira, como ele próprio definia, descartando ser eucalipto.

De tanto perder para meu pai e considerando a inevitável passagem humana final, a morte, como certificou a médica da Santa Casa, proporcionou uma partida sem dores. Seo Messias partiu dentro de um sono profundo e eterno, despedindo-se de nós sem que sequer pudéssemos nos preocupar. Sim, ele nos surpreendeu quando morreu, pois em ocasiões anteriores, muito piores, ele superou.

Nosso José Messias completaria 80 anos de idade no dia 15 de maio de 2021. Estávamos programando uma festa em família para ele, dentro das condições permitidas na pandemia, mas quando se tocava no assunto ele dizia que, primeiro, tinha a festa de aniversário do Cláudio, em fevereiro, recordando que em 2020 comemoramos meus 50 anos em uma chácara alugada de meu amigo Fernando, em Assis, ocasião em que ele, Gê, Dani, Gabriel e o pequeno Enrico aqui estiveram, última ocasião, antes da pandemia, em que parte da família esteve reunida com o velhinho.

Com toda essa experiência, ao longo de 10 anos de luta pela vida, aprendi muitas coisas importantes para fazer prevalecer a vida, mas, igualmente, coisas importantes para administrar melhor a morte. Por exemplo, desconhecia trâmites relacionados velório, sepultamento e documentação para liberação de corpo. Sempre que vamos a velórios vemos a estrutura pronta e, assim, teorizamos o que seja essa vivência. Até nisso a morte nos afeta, pois precisamos deixar a dor da perda de lado e encarar a burocracia da vida civil.

Estamos, sim, todos/as de passagem nessa vida. Se me perguntarem o que seja a vida não tenho dúvidas na resposta: viver é ter boa relação com a morte. Bobagem extrema discutir o início e o fim, ou seja, de onde viemos e para onde vamos após a morte. O simples fato de sabermos que não seremos eternos nos faz colocar a morte como companheira desde o início da vida.

Quando fiz minha cirurgia cardíaca em 2015 tive uma recaída 90 dias depois, já estando em Campina Grande, de volta ao trabalho. No Hospital João XXIII ouvi de um cardiologista algo que é duro, dói nos ouvidos, mas, quando aprendemos a lidar na relação com a morte, entendemos como sabedoria das ciências da saúde: quando nascemos, temos nosso prazo de validade pré-determinado pela nossa natureza humana. A medicina, pois, intervém para que essa regra natural seja quebrada.

O que o médico quis dizer é que eu, aos 45 anos de idade, deveria estar morto. A cardiologia, contudo, fez uma intervenção que me deu uma sobrevida. A lei da natureza estava, assim, contrariada. Se o coração estava consertado, os demais instrumentos da orquestras continuavam desgastados. Não era, pois, para eu ter muita esperança com planos que ultrapassassem os próximos 15 ou 20 anos.

Já se passaram 6 anos, ou 1/4 dessa previsão fatalista. Mal sabe a medicina que aprendi com meu pai a negociar com a morte. Uma interação familiar em que traçamos nossas estratégias para chegar ao limite da possibilidade de existência. Ela, morte, vai entender. E que permita a todos que a encaram uma partida tão serena como foi a de seo Messias, o meu guerreiro de maior respeito.


* Professor universitário, historiador, doutor em Ciências da Comunicação pela ECA/USP.

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